Por: Jonas | 24 Mai 2016
Ele é um dos melhores teólogos espanhóis. Tanto, que o próprio Papa Francisco está tomando “emprestados” alguns de seus conceitos, ligados à Teologia Popular. Entusiasmado defensor da liberdade, José María Castillo apresenta seu último livro, “La Humanidad de Jesús” (Trotta), onde defende uma fé frente aos que, hoje como ontem, preferem o artificioso e o ritual. “Sobra-nos religião e nos falta humanidade”.
Fonte: http://goo.gl/oSvcsd |
A entrevista é de Jesús Bastante, publicada por Religión Digital, 21-05-2016. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
O que quer dizer com esta frase?
Na Teologia, quando se estuda a figura de Jesus, resulta que, historicamente, na Igreja, houve mais dificuldade para aceitar a humanidade de Jesus que a divindade de Jesus. O que quer dizer que se entendemos por divino tudo aquilo que se encarna no sagrado, na Igreja, o sagrado manda mais que o profano. Que, traduzido ao problema que apresento aqui, quer dizer que o sagrado manda mais que o humano e se sobrepõe ao humano.
Deparamo-nos com a dificuldade que estamos experimentando com tanta frequência e em assuntos enormemente importantes. Por exemplo, como em nome de um suposto direito divino se limitam ou simplesmente se eliminam os direitos humanos.
Em nome do divino ou sagrado, limita-se a liberdade de pensar, falar, escrever... Coisas tão elementares como é amar. E aproveito para recordar um artigo de Karl Rahner que me impressionou muito, no qual se perguntou por que para amar mais a Deus, precisamos amar menos a um ser humano. Ou precisamos renunciar ao amor humano.
Isso é muito estranho. Porque uma das coisas que mais cativa no Cristianismo é, justamente, que Deus se faz homem para assumir todo o pecado da humanidade e oferecer uma nova porta de salvação. E, no entanto, a figura de Jesus que deveria ser a do mais humano dos homens, passou a uma excessiva divinização, conforme apresenta no livro. Como se não fosse importante que Deus tenha se feito homem, que é o germe do Cristianismo. Sem este fato é impossível que a salvação aconteça.
É a chave. Não podemos esquecer que nós não somos de condição divina. Mas, ao contrário, somos seres humanos. E a partir do humano temos que compreender o transcendente. O divino. E não nos é possível, porque Deus não está ao nosso alcance. Se estivesse, seria um ser todo-poderoso, mas não Deus. Nem sequer o conceito de infinito, porque isto significa o humano, mas sem limites. E Deus não é nem isso, é uma realidade que está em um âmbito ao qual não temos acesso. É incomunicável nesse sentido.
O Cristianismo, que solução deu a esse problema? Simplesmente, o “Mistério da Encarnação”, onde o transcendente se fez visível, tangível e próximo, humanizando-se. E se humanizou em Jesus que, sem deixar de ser divino, fez-se plenamente humano. De tal maneira que na medida em que conhecemos a humanidade de Jesus, é o único caminho que temos para conhecer quem é Deus, como é e o que quer.
No entanto, durante séculos, foi se sepultando essa figura humana em uma série de normas, ritos, judicaturas, mistérios, dogmas de fé, etc., que tornaram a figura de Jesus em algo distinto. Até o ponto em que a Igreja de hoje não se parece ao que Jesus queria, ou se parece ao que os outros foram promovendo. Você se centra muito na figura de Paulo.
Aqui há várias coisas.
Primeira: Jesus foi plenamente humano e o fato é que os evangelhos, da forma como chegaram a nós, assim o apresentam. A primeira coisa que teve que enfrentar foi o religioso e o sagrado, da forma como naquele tempo eram compreendidos. E, por isso, Jesus enfrentou o templo, os sacerdotes e os rituais, as normas religiosas. E o enfrentamento foi tão duro, que chegou um momento em que a instituição religiosa se deu conta de que, ou acabavam com ele ou ele acabava com eles. O final do capítulo 11 do Evangelho de São João, após a ressurreição de Lázaro, é chave. O Sinédrio se reuniu, com urgência, e eles planejaram: ou ele, ou nós.
É interessante isso que você diz, porque Lázaro é uma figura muito relevante e muito esquecida.
Além disso, cada dia vai ganhando espaço relacionar o Lázaro de João, irmão de Marta e Maria, com o Lázaro citado por Lucas na parábola, com o avarento, o glutão. Aquele morreu e foi ao paraíso, e este ricaço morreu sem se importar com as pessoas que morriam de fome diante dele. Exatamente o que se está conhecendo e sendo visto, agora mesmo, na Espanha. Ricaços que se enchem de dinheiro e como já não cabe nos bancos da Espanha, guardam-no nos paraísos fiscais do mundo.
Logo aparecerá algum bispo nos famosos documentos do Panamá.
Eu temo que possa ocorrer.
Vamos parar por aqui.
Enquanto isso, vemos famílias sem trabalho, crianças sem escola, enfermos sem remédio, nem cura..., o desastre. Isto é o Lázaro do Evangelho de Lucas. O rico também morre, assim como todos aqueles que têm os paraísos fiscais a seus pés irão morrer. O avarento, aquele que se vestia de púrpura e ouro, com banquetes todos os dias, que pediu do Hades que Lázaro voltasse de entre os mortos para avisar seus irmãos, que deviam ser tão sem-vergonhas como ele. Porém, Abraão lhe disse: “Contam com Moisés e os Profetas; que ouçam a eles!”. E isso é o que toma o Evangelho de João e vincula com a ressurreição de Lázaro. Aí está o morto que ressuscita. O que os sumos sacerdotes decidiram?: matar Lázaro novamente. Diz o Evangelho de João e, é claro, a Jesus. Reúnem-se com urgência e se dão conta de que o projeto de Jesus era um conflito impossível de conciliar. E nós apanhamos para o tornar conciliável, o que nem os sacerdotes do templo de Jerusalém, nem Jesus, fizeram. Nós o conciliamos e assim temos esta Igreja. O que aconteceu? Entre a morte de Jesus e os Evangelhos surge, no Novo Testamento, a figura de Paulo.
Mas, se Jesus vem para modificar esse sistema, esse sistema lhe mata e, ao final, com o passar do tempo, conciliando, é esse sistema que está vencendo na Instituição, não estamos traindo a nova aliança que Jesus veio trazer entre Deus e os homens?
Estamos traindo-a e daí o conflito, a tensão e os problemas que o Papa Francisco está sofrendo. Porque o Papa é um homem que por formação, sua educação jesuíta, precisou ser muito mais conservadora. Contudo, sua humanidade é tão profunda, tão sensível a tudo o que é a dor humana, a injustiça contra os fracos, as crianças, os enfermos..., que não pode se calar, nem suporta estar acima dos demais, nem quer ter privilégios. Há teólogos que se perguntam por que não toma decisões mais determinantes. Eu colocaria esses teólogos ali, para que tomem as decisões.
Além disso, eu tenho a opinião de que se este Papa ou outro deseja mudar as coisas por medo de um golpe na mesa, estaria dando razão aos que pensam que a Igreja não tem caminho sinodal, dialogado. Penso que estão tentando dividir o jogo e que todos nos sintamos responsáveis. E as mudanças que estão ocorrendo são porque o povo estimula. O conceito do pontificado de Francisco e o de Teologia de José María Castillo são muito parecidos.
Bom, é que a cada dia eu vejo com maior clareza, a coisa tem que ir por aí. Porque não se trata de mudar cargos, nem de tomar decisões nisto e naquilo. O importante é mudar a maneira de fazer Teologia. A maneira de governar. A maneira de viver perto das pessoas. Saber o que o povo demanda.
Ontem, conversando com Reyes Mate, grande pensador, especialmente este assunto, ele dizia uma grande verdade: as duas grandes cabeças pensantes que houve no cristianismo, no século passado, foram, primeiro, Bonhoeffer, que foi morto pelo nazismo, no final da Segunda Guerra Mundial. E o outro Juan Bautista Metz, que disse uma coisa impressionante: a cristologia, ou seja, o saber sobre Jesus e o poder falar sobre ele, é constitutiva ao seguimento de Jesus. Os apóstolos não aprenderam cristologia lendo livros sobre o assunto, nem escutando conferências, nem Jesus se dedicou a dar conferências de Teologia. Dedicou-se a viver de uma maneira. E lhe seguir era viver dessa maneira, o quanto era possível. Jesus vivia com as pessoas. Estava perto dos doentes e crianças. Dos pobres e excluídos. E essa é a cristologia que aprenderam.
A novidade deste livro é explicar que entre Jesus e sua morte, e seu nascimento e os Evangelhos, que são posteriores ao ano 70, estão as cartas de Paulo. Que nem conheceu ao Jesus terreno da história, nem deu mostras de se interessar muito em conhecê-lo.
E teve seus conflitos com Pedro e com outros.
E, sobretudo, que sem conhecer Jesus, nem os evangelhos, pôs-se a organizar as primeiras igrejas. As primeiras comunidades eram igrejas domésticas. Como tinha a formação de um bom judeu e sua experiência de Jesus era a do ressuscitado, isso foi o que transmitiu.
Mais espiritual.
Mais espiritual e mais religioso. Mais ritualista e normativo. É verdade que Paulo explicou que todos somos iguais para a salvação, que não é a lei o que nos salva. Porém, tudo olhando para o transcendente. No imanente, o que fez foi organizar igrejas domésticas. E se eram domésticas, deviam ser em casas. E se se reuniam em casas, tinham que ser de pessoas com dinheiro. Então, o que ocorria era que os líderes das igrejas eram pessoas com dinheiro.
Para fazer justiça a Paulo, sem ter considerado estes ricos convertidos, a Igreja não teria conseguido fazer todo o processo de evangelização e toda a criação de uma cultura e de uma sociedade nova, ao longo de todo este tempo.
Efetivamente. Estou completamente de acordo e me alegro por ter levantado o assunto. Porque Paulo, como bem notou Hans Küng, fez duas grandiosíssimas e geniais contribuições. Primeira: estendeu o cristianismo por todo o império. Portanto, converteu o pequeno movimento de Jesus em um movimento universal, naquele que então era o mundo conhecido. E, em segundo lugar, socializou aquele movimento nos costumes da sociedade. Porém, aquilo que teve um preço e isso eu explico no livro.
Há quatro problemas nos quais Paulo entrou. Lendo Paulo saltam à vista quatro questões que se relacionam muito diretamente com a moral, que hoje nos preocupa e nos interessa.
Primeiro, o tema do sexo. Por que o sexo masculino precisa ser mais dominante, com mais direitos e poder que o feminino (?). Em definitivo, a desigualdade. A gente não leva em conta isto. Não é a mesma coisa falar de desigualdade e de diferença. Porque a diferença é um fato, mas a igualdade é um direito.
Segundo: o modelo de família. O modelo patriarcal. Para mim, o mais genial que o Papa atual escreveu, ou seja, o amor conjugal é um amor de amizade. E o argumenta e o repete. Dizer isto é revolucionar a família.
Ou compreendê-la.
Claro. A terceira questão é a da escravidão. A escravidão é a chave da economia. Compreendo que isto é uma leitura marxista. É que nisto Marx acertou a mira. E isto explica por que os ricos puderam acumular a riqueza que possuem: à custa de milhões de escravos que trabalharam para eles. E continua acontecendo hoje. Porém, o que ocorre, é que hoje acontece sem o estigma da escravidão. À primeira vista, todos somos iguais em dignidade e direitos, quando na realidade não somos. Além disso, ocorre outra coisa, antigamente aquele que comprava um escravo tinha que lhe dar de comer todos os dias. Hoje, aquele que tem escravos que trabalham para ele lhes dá o que considera. E tudo certo. Os outros que se virem e eu tenho uma conta no Panamá.
E a quarta. É a submissão à autoridade constituída. Não esqueçamos que quando Paulo escreveu isto era o tempo de Nero. Que não era exatamente um modelo exemplar de governante. No início do capítulo 13 da Carta aos Romanos, Paulo disse que a autoridade é estabelecida por Deus. E, portanto, o que a autoridade manda é vontade de Deus. E é preciso se submeter a Deus, submetendo-se à autoridade. Isso, se eu prego hoje em qualquer esquina da Venezuela, ou da Rússia, ou da França, correm comigo, com toda a razão.
Jesus não se meteu nestes problemas, mas simplesmente viveu.
Na realidade, disse que a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Está dizendo que sejamos cidadãos, e bons crentes. Colocar a cada um em seu lugar.
Que imagem de Jesus possui hoje, após tantos anos estudá-lo e vivê-lo?
Primeiro irei dizer como não o imagino. Não o imagino como um padre. Não seria bispo, é claro. Não teria nenhum cargo. Seria um profeta itinerante que defende com uma vida irrepreensível, e que poderia ir dizendo: “se não acreditam no que digo, ao menos olhem o que faço”. Que é o que Jesus não parava de dizer. Ou, com outra imagem: a árvore se conhece pelos frutos que produz. Seria um profeta itinerante, próximo a tudo o que é sofrimento, dor, miséria humana. Não porque teria feito um voto de pobreza. Porque o voto de pobreza que os religiosos fazem hoje é uma das maiores fontes de segurança que existe. Segurança econômica.
Não o compreendo.
Aquele que pertence a uma comunidade religiosa, possui a vida assegurada. Nunca lhe faltará nada. Isto é avaliado por quem a teve e, de repente, um dia, depara-se na rua. É o meu caso. A incerteza te apresenta muitas perguntas que aqueles que possuem voto de pobreza não se fazem.
Jesus estaria ocupado e preocupado com os pobres, mas não a partir de um voto de pobreza.
Claro, seria uma pessoa que compartilha a habilidade com estas pessoas, a condição, a sorte. E seria um homem enormemente livre para falar, para atuar. Não andaria se misturando com partidos políticos, mas andaria se preocupando com as necessidades das pessoas.
Precisamos encerrar. Esse Jesus se pareceria um pouquinho com você.
Não, absolutamente. Se desejar, outro dia dedicamos um tempo para esse assunto. Não me importaria. Eu não tenho nada a esconder. Além disso, se chega o dia de dizer coisas, irei dizê-las.
Não, seria parecido com muitas pessoas boas e desconhecidas. Jesus, quando se pôs a reunir um grupo e disse que era de Nazaré..., eu sou do Puebla de Don Fadrique, um povoado perdido no último rincão da província de Granada. Sou um pobre que tento, busco, quero, mas chego aonde chego. Que não é muito longe.
Chega muito e chega bem. Um prazer, José María. Sempre é um prazer quando vem nos apresentar livros como este. “La humanidad de Jesús”, editado por Trotta.
Obrigado a vocês e avante com Religión Digital, que é um elemento muito importante em todo o mundo de língua espanhola, sobretudo.
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“Jesus vivia com as pessoas. Essa é a cristologia que os apóstolos aprenderam”. Entrevista com José María Castillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU