22 Abril 2016
“Não temos aqui uma mensagem enfraquecida, nem é apenas a defesa de um modelo patriarcal e heteronormativo. Não é também uma mensagem inclusiva no grau que deveria ser. Porém, considerada de uma perspectiva ampla, estamos diante de uma visão exigente e convincente do amor”, escreve Julie Hanlon Rubio, teóloga, ao comentar a Exortação Apostólica Amoris Laetitia, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 19-04-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Julie Hanlon Rubio leciona ética cristã na St. Louis University, em Missouri. Os seus escritos focam o matrimônio, a família, a sexualidade e a questão de gênero.
Eis o artigo.
Tanto na direita como na esquerda, os comentadores estão enlutados pela oportunidade perdida em Amoris Laetitia, afirmando que este documento pouco acrescenta ao que já se sabia. Embora não cumpra plenamente as expectativas de nenhum dos dois grupos, esta exortação apostólica articula uma teologia do matrimônio a um mundo desejoso de amor ao mesmo suspeito das ideias tradicionais a respeito do casamento.
Para os da direita católica, Francisco diz muito pouco sobre a normatividade da família heterossexual, sobre a ameaça que representa o casamento homoafetivo, sobre a imoralidade da contracepção e sobre a impossibilidade de aceitação de um segundo casamento. Grupos tradicionalistas pressionaram o papa nos Sínodo de 2014 e 2015, pedindo clareza nestes temas.
Segundo o colunista do New York Times Ross Douthat, o papa não contraditou a doutrina, mas, ao propor ensinamentos oficiais com uma “falta de confiança”, propostas carentes de autocrítica, ele intermediou uma trégua, porém deixou a Igreja mais enfraquecida.
Alguns na esquerda católica criticam o documento por sua visão limitada e excludente do amor. Segundo a teóloga feminista Mary Hunt, em artigo publicado na revista online Religion Dispatches, “existe somente um ideal – o do sexo heteronormativo sem métodos contraceptivos em casamentos monogâmicos – em relação ao qual todo o resto é derivado, menor, carente e/ou proibido”.
A exclusão dos casais homoafetivos e o juízo contrário à contracepção são decepcionantes. Muitos esperavam que o papa fosse trazer boas novas com esta exortação apostólica no tocante a estes difíceis. Não é isso, porém, o que aconteceu.
Todavia, o descentramento da ética sexual que tem marcado este papado permanece em vigor. Mesmo que os católicos progressistas continuem, com razão, insistindo numa maior inclusão, importa observar o que não está dito no documento.
Diferentemente do que se lê na carta pastoral da Conferência dos Bispos Católicos dos EUA de 2010, intitulada “Marriage: Love and Life in the Divine Plan”, nós não vemos o casamento homoafetivo sendo identificado como uma ameaça à instituição do matrimônio. Enquanto que os bispos do país fizeram da luta contra o casamento homoafetivo um objetivo central da defesa do matrimônio, Francisco mostra-se preocupado com outros temas.
Diferentemente de Familiaris Consortio, exortação apostólica pós-sinodal de 1981 escrita pelo Papa João Paulo II, Amoris Laetitia não diz que os que usam métodos contraceptivos “degradam” e “manipulam” a sexualidade humana, a si próprios e a seus parceiros. Aí não se apresenta o planejamento familiar natural como algo essencial ao casamento cristão.
A preocupação central de Amoris Laetitia é fornecer uma teologia do matrimônio credível. Antes de os bispos se reunirem nos Sínodos de 2014 e 2015 em Roma, eles aprenderam nas sondagens feitas junto aos fiéis leigos que, para muitos deles, os ensinamentos sobre o matrimônio e a família eram obscuros e pouco convincentes.
Com uma humildade incomum em documentos papais, Francisco reconhece o fracasso da Igreja na comunicação, dizendo: “Outras vezes, apresentamos um ideal teológico do matrimônio demasiado abstrato, construído quase artificialmente, distante da situação concreta e das possibilidades efetivas das famílias tais como são. Esta excessiva idealização, sobretudo quando não despertamos a confiança na graça, não fez com que o matrimônio fosse mais desejável e atraente; muito pelo contrário”.
Em vez disso, Francisco diz querer apresentar uma visão de matrimônio “mais como um caminho dinâmico de crescimento e realização”. Busca seguir Jesus trazendo um “ideal exigente” com sensibilidade à fragilidade dos seres humanos.
Justapondo o ideal cristão com certas tendências culturais problemáticas, o papa evita generalizações simplistas sobre o individualismo e o consumismo. Ele se preocupa com uma “cultura do provisório”, em que as pessoas trocam de relacionamento com demasiada facilidade, temerosos de um compromisso de longo prazo que vá necessariamente limitar as suas escolhas. Ele associa o desejo pela independência com uma dificuldade em sustentar uma comunidade, o que, em última análise, deixa muitas pessoas a sós.
Francisco sabe igualmente que forças econômicas fazem ficar mais difícil optar-se pelo matrimônio, tanto para os pobres (que carecem de possibilidades para um futuro) como para os privilegiados (que possuem tantas outras opções). As mesmas forças tornam mais difíceis de sustentar um casamento. Ele manifesta uma preocupação especial pelas famílias desestabilizadas ou dilaceradas pela migração e por aquelas que vivem em extrema pobreza.
Após descrever os desafios que as famílias enfrentam, o papa conclui dizendo: “Partindo das reflexões sinodais, não se chega a um estereótipo da família ideal, mas um interpelante mosaico formado por muitas realidades diferentes, cheias de alegrias, dramas e sonhos”.
É a partir da base, das diversas experiências das famílias, que o papa procura reformular a visão católica.
Nas partes do documento que são exclusivamente suas, Francisco busca comunicar a beleza de um casamento para toda a vida. Bem perto da superfície da exortação apostólica encontra-se uma consciência aguda do quão suspeito muitas pessoas estão com relação a este ideal.
Central nesta sua visão está a fidelidade, que se fundamenta no “sentido de pertencer completamente a uma única pessoa” e no desafio de “envelhecer e gastar-se juntos”. Embora aparentemente em desacordo com o amor apaixonado, Francisco sustenta que o amor em si exige fidelidade.
Não há nenhum romantismo ingênuo aqui, tampouco a ideia de que uma pessoa irá me completar…
O papa insiste que cada pessoa mantenha a sua própria autonomia e que não enxergue o outro (ou a outra) como “seu ou sua”. Ele cita o teólogo alemão Dietrich Bonhoeffer, que defende que cada cônjuge deve ser realista quanto ao que a outra pessoa pode dar, deixando de “esperar dessa pessoa aquilo que é próprio apenas do amor de Deus. Isto exige um despojamento interior”.
Francisco não procura defender que a procriação é uma exigência do matrimônio, mas sim que o amor é inerentemente generoso. O matrimônio é mais do que duas partes. As famílias não devem se imaginar como um “um recinto fechado, procurando proteger-se da sociedade”. Pelo contrário, o comprometimento delas com os outros reforça o seu amor.
Francisco cita o poema “Te Quiero”, do poeta uruguaio Mario Benedetti, em que se lê:
“Se te amo, é porque és
o meu amor, o meu cúmplice e tudo
e na rua, lado a lado,
somos muito mais que dois”.
Ciente de como as pessoas podem se magoar – e se decepcionar – umas com as outras, o papa volta, repetidas vezes, ao tema do perdão. A advertência de Martin Luther King Jr. a amarmos os inimigos porque até mesmo “a pessoa que mais te odeia tem algo de bom nela” vale para o matrimônio, na medida em que o papa convida os cônjuges a verem Deus nos seus pares imperfeitos, não importa o que eles fizeram.
A prática do perdão faz parte de um todo maior: o amor é alegria, mas a alegria “deve ser cultivada”. Fomos feitos de amor, ansiamos por ele e ele é o que nos traz a maior felicidade. Mas o amor também vai inevitavelmente significar sofrer e lutar juntos, é um “compromisso mútuo, para o amadurecimento do amor”.
Não temos aqui uma mensagem enfraquecida, nem é apenas a defesa de um modelo patriarcal e heteronormativo. Não é também uma mensagem inclusiva no grau que deveria ser. Porém, considerada de uma perspectiva ampla, estamos diante de uma visão exigente e convincente do amor.
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Francisco apresenta uma visão convincente do amor - Instituto Humanitas Unisinos - IHU