06 Abril 2016
Enquanto o motu proprio Summorum pontificum criava uma irrealidade fictícia, a exortação apostólica Amoris laetitia irá responder a realidades urgentes, que esperam uma palavra nova, fresca, não autorreferencial. John Allen tenta colocar no mesmo plano um dos vértices da autorreferencialidade eclesial e um documento que tenta sair dela. Isso me parece muito injusto e muito incorreto.
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, leigo casado, professor do Pontifício Ateneu S. Anselmo, de Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, de Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, de Pádua.
O artigo foi publicado no seu blog Come Se Non, 04-04-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Se um atento jornalista como John Allen parece estar tão submetido a pressões da expectativa do texto da Amoris laetitia, a ponto de não saber sentir qualquer alegria e de se dispor melancolicamente a uma "triste recepção" do texto – como ele demonstra no seu artigo Pope’s big call on Communion may mean little on the ground [O grande chamado do papa sobre a Comunhão pode significar pouca coisa in loco], disponível aqui, em inglês – evidentemente algo de grande deve estar em jogo.
Gostaria de resumir brevemente as duas teses do famoso comentarista estadunidense:
- Os documentos vaticanos têm natureza diferente: podem ser encíclicas, instruções, motu proprio, mas essa é uma classificação formal, embora pudesse ser mais útil distinguir entre aqueles de que se fala nos jornais, mas que têm pouco efeito na realidade, e aqueles que, em vez disso, conseguem influir realmente na realidade eclesial. E aqui Allen cita um exemplo de documento "ininfluente", ou seja, o Summorum pontificum, mas o exemplo serve para que o jornalista levante a hipótese de que a próxima exortação apostólica também pode ter um destino semelhante;
- A Amoris laetitia – continuando a sua reflexão e propondo também um arriscado paralelo com a Humanae vitae – estará destinada a ter pouco efeito por dois motivos: por um lado, porque ela oferece a comunhão a muitos que não vão mais à missa; por outro, porque ofereceria uma solução caso a caso para situações irregulares individuais, não fazendo nada mais do que confirmar o que já acontece em grande medida. Eis provada – de acordo com Allen – a falta de efeito do próximo documento.
Se é totalmente legítimo que um jornalista possa fazer as suas bravas profecias sobre um texto desconhecido, contudo, um profeta da desventura tão incoerente seria difícil de ser inventado, se não fosse real. E isso por pelo menos três motivos:
a) Ele propõe uma comparação sem qualquer fundamento e apenas "retórico"
Allen reivindica a liberdade de distinguir entre documentos eclesiais de acordo com um critério muito "prático". Mas ele faz isso pondo em comparação dois textos totalmente incomparáveis, senão pelo fato de terem sido assinados por pontífices romanos. Mesmo a um olhar superficial, todos podem compreender que entre Summorum pontificum e Amoris laetitia aparecem vistosas dessemelhanças:
- um motu proprio, como o próprio nome diz, é iniciativa de um indivíduo, enquanto a exortação apostólica pós-sinodal é o fruto de uma complexa mediação da escuta da Igreja e do episcopado;
- o Summorum pontificum determinou uma subtração de competências episcopais, enquanto a Amoris laetitia certamente proporcionará um incremento da autoridade episcopal.
- o Summorum pontificum reabre o uso de práticas que a reforma litúrgica tinha oficialmente superado, enquanto a Amoris laetitia muito provavelmente irá propor uma releitura abrangente da tradição matrimonial e familiar, abrindo para novas perspectivas a ação pastoral e a formação eclesial.
Mesmo considerando apenas esses três perfis – mas outros poderiam ser citados de modo pertinente – é evidente que o exemplo é forçado e enganoso. O resultado decepcionante do Summorum pontificum se deveu precisamente à sua falta de fundamento na realidade e à sua abstração; aplicar essas categorias para a Amoris laetitia significa ignorar não só a gênese, mas também a realidade familiar a que o próximo texto tenta dar resposta.
Enquanto o Summorum pontificum criava uma irrealidade fictícia, a Amoris laetitia irá responder a realidades urgentes, que esperam uma palavra nova, fresca, não autorreferencial. John Allen tenta colocar no mesmo plano um dos vértices da autorreferencialidade eclesial e um documento que tenta sair dela. Isso me parece muito injusto e muito incorreto.
b) Ele oferece indiretamente uma leitura redutiva do documento, esmagado apenas sobre os "problemas de irregularidade"
Igualmente significativo é o fato que, sobre o texto futuro, Allen parece se lembrar apenas do versante de remédio para as "irregularidades". Não se deveria esquecer que o próximo texto, tal como elaborado pelos dois Sínodos, tentará reler integralmente a pastoral matrimonial e familiar, dando uma meditação abrangente sobre ela.
Sobre esse ponto, Allen não parece disposto a ouvir. Quase como se, para ele – só para ele? – os únicos problemas delicados devem ser aqueles das respostas às "irregularidades". Ele não parece captar o impulso com que o Papa Francisco quis, desde 2013, instar a uma reflexão abrangente, que saiba repensar integralmente a "alegria do amor", para honrar o positivo e para remediar o negativo, de acordo com um estilo e uma linguagem novos.
Sobre isso, Allen parece se manter surpreendentemente indiferente e quase entediado. Como se temesse ter que reconhecer que não é a patologia, mas a fisiologia matrimonial e familiar que merece um profundo repensamento.
c) Ele propõe outra comparação imprudente, com a Humanae vitae
Por fim, para completar o quadro, Allen propõe um paralelo entre a Amoris laetitia e a Humanae vitae: no segundo documento, Paulo VI havia dito "não", enquanto no primeiro documento talvez Francisco vai dizer "sim". Aqui também a comparação é ilusória. Não só porque a Humanae vitae era um documento "específico" sobre um tema, enquanto a Amoris laetitia é um documento de fôlego amplo e abrangente, mas principalmente porque não se trata de dizer sim ou não, mas de articular de outra forma a linguagem e o estilo com que se abordar as questões, colocando novamente no seu lugar as prioridades. Mas são justamente as prioridades que esse comentarista demonstra não querer mudar.
John Allen – como já tinha acontecido com outro jornalista na última coletiva de imprensa "nas alturas" com o Papa Francisco –, propondo uma "profecia" tão distorcida e parcial da próxima exortação apostólica, também demonstra não querer falar da boa saúde e da doença do matrimônio e da família, mas apenas discutir um único "curativo"! E, com essa tristeza e indiferença no coração e na boca, ele corre o risco de encontrar sob os seus olhos, no próximo dia 8 de abril, não o texto da Amoris laetitia [a alegria do amor], mas o da Acediae maestitia [a tristeza da apatia].
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Como reduzir a "Amoris laetitia" a um "curativo". Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU