23 Outubro 2008
“As mortes foram marcadas pela brutalidade com que ocorreram, sendo que em alguns casos os presos tiveram suas cabeças decapitadas.” Essa é a situação atual dos presidiários de Rondônia e que foi relatada pelo advogado Gustavo Dandolini, em entrevista, realizada por e-mail, à IHU On-Line. Com base em denúncias como esta feitas pela Justiça Global e pela Comissão Justiça e Paz, do qual Gustavo é membro, relacionadas principalmente aos casos de violação dos direitos humanos no Presídio Urso Branco, um pedido de intervenção federal foi encaminhado ao Supremo Tribunal Federal. Em oito anos, esta instituição registrou os casos de mais de cem presos que foram vítimas de homicídio, revelando a falta de tratamento dada aos presos pelo governo do estado.
Durante a conversa que tivemos com Gustavo, ele relatou a situação em que se encontra os presídios de Rondônia e comparou com todo o contexto carcerário brasileiro, sobre a compreensão da população em geral acerca dos direitos humanos e ainda analisou as condições de trabalho dos agentes penitenciários. Segundo Dandolini, “é evidente a falência do Estado em promover e defender a dignidade humana do cidadão que goza plenamente dos seus direitos civis e políticos, que dirá então com relação ao preso”.
Gustavo Dandolini é advogado e representante da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Porto Velho.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como o senhor definiria a situação carcerária no Brasil atualmente e, em especial, como está a situação hoje em Rondônia?
Gustavo Dandolini – Em alguns pontos, acredito haver semelhança entre ambas, a exemplo da superlotação dos presídios, insalubridade nos ambientes de cárcere, insuficiência de profissionais do Estado para atender a demanda existente, falta de atividade laborativa para os presos, dentre outras. Assim, de um modo geral, a Lei de Execuções Penais vem sendo desrespeitada tanto aqui quanto em outras unidades federativas. Porém, em Rondônia, notadamente no presídio Urso Branco, existem algumas peculiaridades que marcaram os últimos anos de história desta unidade prisional. Falo das mais de cem mortes ocorridas desde o ano 2000 até o momento, muitas delas cometidas por agentes do Estado em pleno exercício de suas funções. As mortes foram marcadas pela brutalidade com que ocorreram, sendo que em alguns casos os presos tiveram suas cabeças decapitadas. Os maus-tratos a presos também têm sido a tônica nos presídios de Rondônia, especialmente no Urso Branco (Dr. José Mário Alves da Silva) e no Urso Panda (Edvan Mariano Rozendo), ambos na Capital. Os agentes, quase sempre despreparados para o desempenho da função, utilizam a coação física e psicológica para castigar o preso e ao mesmo tempo impor certa ordem e disciplina na prisão, pois, acreditam que assim agindo serão respeitados “temidos” pelos presos e isso contribuirá para manter a cadeia sem rebeliões ou motins. Chega a impressionar como essa terrível lógica da violência impera entre os agentes do Estado (Policiais Militares e Agentes Penitenciários).
IHU On-Line – Por que, em sua opinião, a situação do direito dos cidadãos que estão presos chegou a este patamar que está hoje?
Gustavo Dandolini – O preso não é hoje considerado cidadão dentro do cárcere e sim um sujeito sem direitos ou, traduzindo, não passa de um “bandido e vagabundo”. Essa é a concepção que se tem do preso, infelizmente. Aliás, é evidente a falência do Estado em promover e defender a dignidade humana do cidadão que goza plenamente dos seus direitos civis e políticos, que dirá então com relação ao preso.
IHU On-Line – Quando se fala em direitos humanos para quem está preso, logo se pensa nos "bandidos" apresentados pela mídia, como um pai que mata um filho, alguém que abusa de um menor, enfim. E de certa forma, para a sociedade em geral a situação dos presidiários é justificável. O que não sabemos sobre o direito dessas pessoas que estão presas?
Gustavo Dandolini – Na verdade, a maioria da população brasileira sequer sabe dos seus direitos humanos básicos (saúde, educação, liberdades, moradia, informação, igualdade etc.). A falta de consciência da população sobre os seus direitos e sobre os meios que se tem para garanti-los faz com que estas pessoas vivam à margem da cidadania, ou seja, não conseguem atingir um nível de maturidade política que lhes permitam exigir do Estado e da própria sociedade o devido respeito para com os direitos humanos, cujas características são a universalidade, a interdependência, a inalienabilidade e a imperatividade. Como a temática dos direitos humanos quase nunca está na pauta das discussões políticas que são repercutidas pela grande mídia, a maioria da população não compreende a importância dos direitos humanos e de como eles estão presentes no seu cotidiano. Dessa forma, parte da mídia se julgou no “direito” de deturpar essa temática e inseri-la num contexto exclusivamente prisional, levando a população de um modo geral a crer que os direitos humanos servem para “proteger bandido”. Com isso, a verdade é que o fato de sabermos muito pouco sobre os direitos das pessoas presas decorre do fato de sabermos muito pouco sobre os nossos próprios direitos. Sem descobrir nossa própria dignidade não há como descobrir a dignidade do outro.
IHU On-Line – Onde começa o problema carcerário, para o senhor?
Gustavo Dandolini - Bem, acredito que o problema começa na própria cultura das autoridades que pensam que a cadeia é a solução da violência no país. O Brasil é um dos dez países que mais prendem no mundo. A população carcerária cresce significativamente a cada ano. Isso gera um aumento proporcional na oferta de vagas dentro do sistema, o que de fato não tem ocorrido, levando á superlotação das unidades prisionais. Considerando que a superlotação é fator desencadeador de inúmeros outros problemas que afetam o sistema, tenho que o problema carcerário começa na própria política criminal que privilegia a privação da liberdade em detrimento de outras medidas mais eficazes e também mais econômicas para os cofres públicos, tendo em vista que cada preso custo em média R$ 1.388,00 reais ao mês para o Estado de Rondônia. Mudar a política de encarceramento é determinante para solucionar os problemas que afligem o sistema carcerário no Brasil.
IHU On-Line – Como está ocorrendo a intervenção federal no estado de Rondônia em decorrência da situação dos inúmeros problemas que aconteceram na Casa de Detenção José Mário Alves? O que é necessário para que massacres como este que ocorreu neste mês não aconteçam mais?
Gustavo Dandolini – Na verdade, o que existem é o pedido de intervenção federal feito pelo Procurador-geral da República em trâmite no Supremo Tribunal Federal (IF/5129), cuja relatoria compete ao Ministro Presidente Gilmar Mendes. Portanto, no âmbito jurídico, a discussão será travada no Supremo. Em Rondônia, como não deveria deixar de ser, a possibilidade de intervenção no Estado levou as autoridades políticas dos três poderes e do Ministério Público a formarem um mutirão contra a medida. Fala-se até em decretação de estado de emergência no sistema prisional do Estado, o que segundo alguns, facilitaria o envio de recursos federais para auxiliar o Estado.
Não se sabe ao certo se a intervenção federal resolveria de uma vez por todas as mazelas nos presídios de Rondônia. Todavia, esperar iniciativas do Governo de Rondônia não dá mais. É preciso se fazer alguma coisa para mudar essa triste realidade que permeia o sistema prisional do Estado, ao que a intervenção pode servir como instrumento eficaz de promoção da dignidade humana do preso. Para evitar novos massacres é preciso mudar a situação deplorável que se encontram os presídios atualmente, humanizando-o, o que certamente desmotivará novas rebeliões e mortes.
IHU On-Line – E como está a situação daqueles que trabalham diretamente com os presos em Rondônia?
Gustavo Dandolini – Quanto aos agentes penitenciários e policiais militares que fazem a segurança dos presídios, a situação não é muito diferente daquela vivenciada pelos presos. Começa pelo ambiente de trabalho, que é tão insalubre quanto o interior das próprias celas. A segurança ofertada aos agentes públicos também é precária, tanto que sequer são disponibilizados coletes a prova de balas para eles. No final do ano passado, no Urso Branco, um agente penitenciário morreu em decorrência de ferimento à bala, ocasionado por um preso que portava arma de fogo no momento em que se tentava dar início a um motim, contido oportunamente. Fora isso, existe também a questão da defasagem salarial que atinge a categoria, mal remunerada diante dos riscos a que são expostos e do grau de responsabilidade da atividade que exercem em nome da sociedade.
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Situação do Presídio de Urso Branco/RO: uma afronta aos direitos humanos. Entrevista especial com Gustavo Dandolini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU