19 Outubro 2011
"Cada vez que hoje me perguntam se eu acredito que é melhor ou não acreditar em Deus, eu costumo responder que isso não tem importância, já que, se Deus existisse, o importante seria que ele acreditasse em nós, como Dom Romero me havia dito".
A opinião é do jornalista, filósofo e teólogo espanhol Juan Arias, correspondente no Brasil do jornal espanhol El País, Anteriormente, havia sido correspondente no Vaticano e fez a cobertura jornalística de algumas sessões do Concílio Vaticano II, tendo também acompanhado muitas das viagens dos papas Paulo VI e João Paulo II.
Eis o texto.
Um amigo me pergunta por que, em tempos de crise, inclusive as econômicas como na atualidade, o ser humano se refugia mais na fé em Deus. Difícil responder a essa pergunta, já que, para mim, se Deus serve para alguma coisa deve ser para os tempos de alegria e de felicidade, não para os tempos do medo.
Os pais do cientista e escritor Leonard Mlodinov se salvaram das garras do Holocausto. Ele mesmo salvou a sua vida no fatídico 11 de setembro, nos porões de uma das Torres Gêmeas em Nova York, quando se afundou. Em uma entrevista recente, perguntaram-lhe no Brasil o que ele sentia ao saber que Deus havia salvado milagrosamente a sua vida e a de seus pais. Ele respondeu: "Não foi Deus, mas sim o acaso". E acrescentou: "Que Deus seria esse que salva meus do nazismo e deixa morrer seis milhões de outros judeus?". "Que Deus seria esse que me salva do atentado terrorista de Nova York e deixa morrer outras 3 mil pessoas?".
Difícil encontrar Deus nos escombros da morte.
Leitores que não conheço costumam me perguntar, uns com respeito, outros, menos, se eu penso que, sem Deus, se acaba vivendo melhor. Escrevi há 40 anos um livro intitulado El Dios em quien no creo. Esse tinha sido o título de um artigo publicado no extinto jornal Pueblo de Madri. Havia passado pelos censores franquistas. Talvez porque pensaram que, se falava de Deus, não poderia ser nada subversivo. E era, para a Espanha católica e fechada de então.
O então arcebispo de Madri, Casimiro Morcillo, me chamou ao seu escritório. Ele me disse que o artigo estava ajudando os espanhóis a se tornarem ateus, porque afirmava, entre outras coisas, que, se Deus existe, não podia haver o inferno e que não podia curar uns e deixar outros morrerem. Mostrei-lhe a carta que eu acabava de receber de um casal jovem, em que me diziam que haviam recortado o artigo e conservado para quando seus dois filhos pequenos fossem maiores. "Nós não somos crentes, mas se um dia nossos filhos quiserem acreditar, gostaríamos que acreditassem nesse Deus irreconciliável com o inferno", diziam.
Não serviu de nada. A partir daquele dia, além da censura franquista, a Igreja de Madri impôs outro censor para a minha coluna do Pueblo, que se intitulava Las cosas claras. Sobre aquele livro, nascido desse artigo e traduzido hoje para 10 idiomas, duas senhoras bem arrumadas, quando voltavam de trem de Assis, onde ele havia sido publicado, olhando com receio para a capa, me perguntaram: "Esse livro é a favor ou contra?". "Isso depende, senhoras", lhes respondi.
Cada vez que hoje me perguntam se eu acredito que é melhor ou não acreditar em Deus, eu costumo responder que isso não tem importância, já que, se Deus existisse, o importante seria que ele acreditasse em nós, como Dom Romero me havia dito, talvez em sua última entrevista antes de ser assassinado a tiros enquanto celebrava a Eucaristia.
Somos mais felizes sem Deus? Depende, senhores. Difícil se sentir livre e realizado com o Deus que os ditadores amam e adoram – com os quais, certamente, a Igreja sempre se entendeu melhor do que com os democratas –; difícil com o Deus absolutista incompatível com a democracia ou com o Deus que desconfia da sexualidade.
É difícil que as pessoas, jovens ou adultas, não tragam consigo a sombra de um Deus castrador, aquele sobre o qual, em um colégio de religiosas, a madre superiora tinha escrito nos banheiros das alunas: "Deus está te olhando".
O famoso poeta brasileiro João Cabral de Melo Neto, quando estava por morrer, quis falar com um sacerdote da Teologia da Libertação. Confessou-lhe que era ateu, mas que, naquela hora final, atacava-lhe o medo "daquele inferno de que me falaram quando criança na Igreja". O teólogo disse que, além de o inferno não existir, um poeta nunca teria lugar nele. Esse teólogo era Leonardo Boff, condenado ao silêncio pelo então cardeal Ratzinger e hoje Papa Bento XVI.
O Deus do medo é o Deus que não merece existir. O medo é argamassa humana, é a arma de todos os poderes da Terra, não tem nada de divino. É tirano. Só a felicidade é libertadora. O medo é usado e abusado pelas Igrejas institucionais. Jesus nunca impôs medos aos que o seguiam. Ele os tirava. Ele também os teve. Teve medo de morrer, suou sangue perante a iminência de sua morte, pediu explicações a Deus sobre por que deixava que o matassem se era inocente. E dele tiveram medo os hipócritas e os poderosos, nunca os desprezados ou indignados.
Aquele profeta tinha só um "pecado": não acreditava no sofrimento, nem na dor, nem na morte como armas de redenção. Não suportava ver alguém sofrer. Não gostavam dos mortos e os ressuscitava. Nunca pediu aos seus apóstolos que fizessem jejuns e penitências, nem que fossem heróis ou virgens. Estavam todos casados, como ele.
E ele não foi um profeta fácil: exigiu, com naturalidade, algo que nos parece loucura: devolver o bem pelo mal. Ele sabia que a felicidade – que era a sua única teologia – se engendra na paz e não na guerra, no perdão e não na vingança.
Vivemos melhor sem Deus? "Depende, senhores". Sem aquele que oferecem as igrejas, que não te permite morrer em paz, nem fazer amor sem que te espie como um policial, vivemos melhor. Vivemos melhor sem o Deus que procura se adonar do mais sagrado do ser humano: sua liberdade e sua consciência. Pelo menos, sem ele, vivemos com menos medos, o que não é pouco.
E com o Deus em que Dom Romero acreditava quando o crivaram de balas no altar, por defender os pobres contra o poder, vivemos melhor?, alguns se perguntarão. Vivemos melhor com o Deus que sempre aposta nos que perdem, o Deus daquele Jesus que não só perdoou na cruz aos que blasfemavam contra ele, mas que até os desculpou: "Perdoa-lhes porque não sabem o que fazem" , expressão máxima do amor supremo que não humilha nem quando perdoa?
Acredito que como melhor se vive é sendo fiel à voz da consciência, mais severa do que as leis, porque não é possível burlá-la, e que constitui a única fonte de liberdade. O cardeal Newman, convertido do protestantismo ao catolicismo, foi um defensor do primado da consciência sobre a lei. Na Carta ao Duque de Norfolk conta que, se se visse obrigado a fazer um brinde, o faria "primeiro à consciência e depois ao papa". Newman tem uma frase que, ainda hoje, depois de dois séculos, continua deixando os cabelos da Igreja e dos teólogos tradicionais em pé: "Prefiro me equivocar seguindo a minha consciência do que acertar contra ela". A Igreja defende, ao contrário, que a consciência deve ser formada antes. Por ela e com medo, é claro.
Vivemos melhor sem Deus? Depende. Talvez tenhamos, às vezes, a tentação de acreditar em alguém mais do que humano, capaz de exorcizar a crueldade que semeia o planeta com mortos inocentes, que pisoteia os que não têm poder, que exalta os explorados, que discrimina os diferentes, que violenta as crianças, que quer impor o seu Deus, que humilha a liberdade. Mas esse não será, antes, o Deus dos nossos sonhos?
Poderíamos viver melhor só com o Deus – se existisse – capaz de tirar de nós, mortais, o medo supremo da morte, sem a qual, curiosamente, as religiões deixariam de existir, como afirmava Saramago. Viveríamos melhor com o Deus que não nos proibisse sonhar. Existe?
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Vivemos melhor sem Deus? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU