09 Outubro 2011
Bernardo Kliksberg, considerado o pai da Gerência Social, conversou com o Página/12 sobre a crise financeira, a pobreza e o desenvolvimento, entre outros temas. Kliksberg é considerado em nível mundial como um dos principais especialistas em temas de pobreza e pioneiro na ética para o desenvolvimento. Atualmente, é assessor especial da Organização das Nações Unidas (ONU) e foi convocado para integrar o comitê assessor da Organização Mundial da Saúde (OMS).
A entrevista é de Cristian Carrillo e está publicada no jornal argentino Página/12, 08-10-2011. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
A crise financeira internacional evidencia uma forte regressão das políticas sociais, a partir dos planos de ajuste a que são submetidos vários países. Acredita que esta tendência vai se aprofundar?
Os dados são alarmantes. Portugal acaba de reduzir drasticamente seu orçamento na Educação em 8%. Por sua vez, a Grécia baixou o salário de seus professores e médicos. Nos Estados Unidos, o grupo conservador denominado Tea Party exige cortes severos em todos os programas sociais. A austeridade que se está impondo na Europa não é uma austeridade para todos, compartilhada, mas que aponta como uma de suas vítimas principais as políticas sociais. Isso tem custos, não é de graça. Assim, os autodenominados indignados estão dizendo em todas as partes, com grande simpatia de setores mais amplos da população, que isso não é impune. Afirmam, como informou o The New York Times há poucos dias, que o sistema político está abandonando os cidadãos. Estamos perdendo o sentido de responsabilidade pelos outros. A maior crise é de legitimidade. "Pensamos que os líderes não estão fazendo nada por nós", se ouve com frequência.
A crise também provocou um forte debate sobre o papel do Estado para salvar as assimetrias do mercado. Qual é a sua opinião?
É fundamental. Como está demonstrando a crise econômica mundial, a política pública é imprescindível. Na Argentina, a ditadura militar assassina dizia que "diminuir o Estado é aumentar o País". Dizia isso ao mesmo tempo que em todos os países desenvolvidos o Estado crescia, e foi decisivo para o avanço econômico no Japão, Coreia do Sul, Europa ocidental, Canadá e os países nórdicos. Também recordamos o "Menem fez isso". Desarticulou o Estado, reduziu brutalmente o funcionalismo público, privatizou de forma selvagem e criou incentivos para que se tornassem os mais qualificados. Os resultados foram os esperados. Em resumo, esse diminuir o Estado significou diminuir o País, deixar o terreno livre para a corrupção desenfreada e os monopólios, e deixar vastos setores da população sem os serviços públicos mais elementares, como água potável. Quando os dirigentes da nova empresa pública de água, criada por Néstor Kirchner em 2006, chegaram aos seus escritórios encontraram apenas algumas secretárias e máquinas de escrever. A política pública de água, como muitas outras, consistiu em seu desmantelamento.
Nos anos 1990, o governo e alguns comunicadores plantaram a ideia de que o Estado não consegue administrar com eficiência.
É claro que pode. Isso é demonstrado pelo Estado argentino, que montou em tempo recorde, e com gerência social da mais alta eficiência, o maior programa social da história das políticas sociais do país. Me refiro logicamente ao Renda Universal por Filho, estabelecido pela presidenta Cristina Kirchner, o qual chega a mais de 3,5 milhões de crianças desfavorecidas. Ou o simples fato de que se fazer o documento de identidade em qualquer lugar, e em prazos mínimos, protegendo o tempo dos cidadãos. Ou que uma instituição pública, como a Invap de Bariloche, seja uma referência mundial em tecnologia de ponta e esteja vencendo licitações em nível mundial para exportar reatores nucleares para fins pacíficos. O que se requer é um Estado de uma qualidade diferente da dos anos 1960. Um Estado que mostre a cara, que esteja onde estão as pessoas que dele necessitam, não encerrado em escritórios distantes, em horários impossíveis para os pobres e com formulários que não conseguem preencher. Um Estado que tenha gerência profissional de alta qualidade, carreira administrativa, capacitação contínua e mobilize o compromisso de serviço e ético de seus funcionários.
O Chile foi tomado durante muitos anos como exemplo a seguir em matéria de política econômica e hoje conta também com seus indignados.
É similar à Argentina da década dos anos 1990. O país cresceu, mas não se desenvolveu. Pelo contrário, o modelo menimista triplicou a pobreza, fez a exclusão explodir, produziu recordes históricos de desigualdade, cultivou o egoísmo exacerbado e reduziu a participação. Com 23% de desemprego com que terminou a convertibilidade, a liberdade real deixou de existir.
Em seus mais de 50 livros, insiste na ideia de uma economia com rosto humano. Como se pode ligar o crescimento com um desenvolvimento sustentável da sociedade?
É preciso diferenciar um estágio de crescimento com o de desenvolvimento. Um desenvolvimento real e sustentável significa crescer, mas assim mesmo integrar socialmente, universalizar a saúde e a educação de boa qualidade, dar acesso à cultura, fortalecer a participação cidadã, cuidar do meio ambiente, eliminar as discriminações por gênero, étnica e outras formas, possibilitando assim o pleno exercício da liberdade. A Argentina dos últimos oito anos cresceu a altas taxas, mas ao mesmo tempo se desenvolveu. Todas estas dimensões que foram arrasadas nos anos 1990 melhoraram substancialmente. Os investimentos sociais duplicaram, assim como o orçamento em Educação em termos do PIB, e é o maior da América Latina. O acesso à saúde se ampliou e o desemprego é muito menor que em países desenvolvidos. As pessoas agora têm liberdade real. Contudo, não basta, é preciso avançar muito mais, aprofundando o modelo.
No livro que escreveu junto com o Prêmio Nobel Amartya Sen, Primeiro as Pessoas, analisa as desigualdades em saúde na América Latina. Em que se evidenciam essas diferenças?
A questão das desigualdades é fundamental, como o entenderam os estudantes chilenos que lutam por igualdade na educação, com o apoio, segundo as últimas pesquisas, de 90% da população. O acesso à saúde é muito díspar na região. A distância na mortalidade infantil dobra em Monterrey, no México, quando se vai do município rico de San Pedro Garza, onde morrem 18,4 crianças sobre cada mil antes de completar os cinco anos, aos municípios vizinhos desta mesma cidade: General Zaragoza (37,9) e Mier e Noriega (37,5). A mortalidade materna nas populações indígenas do Peru é quase 10 vezes a das áreas urbanas. A expectativa de vida se reduz nas grandes cidades quando se toma o metrô e se percorre algumas estações das áreas de classe média às zonas pobres.
Como se pode reverter esta situação?
As desigualdades podem ser enfrentadas, primeiro, investindo pesadamente em saúde de qualidade para todos. Ao mesmo tempo, agindo sobre os determinantes sociais em saúde, assegurando entre outros água potável. Assim mesmo, elevando os níveis em educação. Na Argentina se mostrou com os excelentes resultados obtidos na redução da mortalidade infantil, materna e geral, por programas exemplares como Remediar, Medicamentos Genéricos e outros em marcha na atual gestão. No Uruguai, são impactantes os resultados obtidos com a Reforma Integral da Saúde da Frente Ampla, e no Brasil de Lula e Dilma, pelo fortalecimento dos conselhos municipais participativos de saúde. A participação na saúde da população é uma estratégia vencedora, como indicam as conquistas dos Municípios Saudáveis, desenvolvidos com uma liderança de excelência, pela Organização Panamericana de Saúde.
Qual é o gasto necessário para que um Estado possa combater a pobreza?
Uma distinção que tratei de trazer para este debate é que deveríamos diferenciar de uma vez por todas entre gasto e investimento. Quando falamos de saúde ou educação, não é "gasto social", como é denominado. Isso é puro investimento, dos mais produtivos que uma sociedade pode fazer. Segundo os estudos da OMS, o retorno sobre o investimento em saúde é de 600%. Em educação se multiplica muitas vezes. Ganham, com ela, as pessoas, as famílias e o país. É por isso que deveríamos deixar de falar de gasto social, que se associa com algo prescindível, para começar a tratá-la como investimento e imprescindível.
Me corrijo então: qual deveria ser o investimento?
Não deveria ser menor, segundo a Unesco, a 6% do PIB em Educação, e o mesmo, de acordo com a OMS, em Saúde. Na América Latina está próximo a 4% em Educação e em 3% na Saúde. Inclusive em países de alto crescimento como o Peru, está em 2% em ambos os campos. Estes níveis são inaceitáveis. Significam que não são uma prioridade real para os elaboradores dos orçamentos, digam o que queiram no discurso. Na Argentina, no Brasil e no Uruguai são hoje prioridades reais. A Argentina investe atualmente 6,5% do PIB em Educação, mas é preciso continuar aumentando estes investimentos, que são a melhor aposta num desenvolvimento integral e no melhoramento da equidade.
Em seus escritos também trata do tema da ética empresarial. São conhecidos os debates sobre Responsabilidade Social das Empresas, mas na prática parece mais um eufemismo que uma realidade.
A responsabilidade empresarial está aumentando e não é um presente gracioso para os donos das empresas. Economistas muito conservadores, como o norte-americano Michael Porter, sustentam que a empresa privada está em um de seus pontos mais baixos de legitimidade histórica. Contribuíram fortemente para isso a especulação selvagem em Wall Street e o que o presidente Barack Obama chama de "cobiça desenfreada". No entanto, outra parte da sociedade civil está cada vez mais organizada em muitos países, exigindo ética dos líderes políticos. E agora a reclamam também dos empresários. A isto se somam os pequenos investidores, muito ansiosos por ética, depois das gigantescas fraudes e das más administrações, e os consumidores responsáveis que preferem comprar produtos de empresas "verdes" ou orgânicas, sem manchas éticas. Um dos empresários mais bem sucedidos dos Estados Unidos acaba de fazer um apelo que teve muita repercussão no mundo empresarial desenvolvido, solicitando que se aumentem seriamente os impostos dos mais ricos para que os sacrifícios sejam realmente compartilhados. Foi Warren Buffet quem disse no Parlamento norte-americano: "Não nos mimem mais".
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"A maior crise é de legitimidade", afirma especialista em pobreza e desigualdade social - Instituto Humanitas Unisinos - IHU