26 Julho 2011
Panikkar e Eckhart: dois retratos de homens de fronteira, um deles que morreu em agosto do ano passado na Espanha; o outro, remoto, porém provocativamente inquietante ainda hoje.
A análise é de Gianfranco Ravasi, cardeal e presidente do Pontifício Conselho da Cultura, em artigo publicado no jornal Il Sole 24 Ore, 24-07-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
O fato de habitar em territórios de fronteira não protegidos por cortinas de ferro inevitavelmente comporta intrusões. E isso não vale só para a topografia, mas também para a teologia. Se quisermos colocar de outra forma, podemos dizer que o uso apaixonado e reiterado do "para-doxo" leva às vezes ao "hetero-doxo", sem que, no entanto, o pêndulo não possa retornar ao ponto de partida.
Gostaria de propor agora, de modo muito simplificado, dois retratos de homens de fronteira, um deles perto de nós, tanto que morreu em agosto do ano passado na Espanha; o outro, remoto (porém provocativamente inquietante ainda hoje), contemporâneo de Dante, tanto que suas datas extremas são próximas às do grande poeta (1260-1327 aproximadamente).
Partamos, portanto, do nosso contemporâneo, "mestiço" já na sua gênese biológica, sendo filho de mãe catalã e de pai indiano, mas por toda a vida cultivador de uma "mestiçagem" cultura e religiosa de equilíbrios delicadíssimos. Estou falando de um pensador muito original, Raimon Panikkar, do qual a editora Jaca Book iniciou há tempos a imensa coleção da sua Opera omnia.
Ele confessava, de fato: "Não vivi para escrever, mas escrevi para viver de modo mais consciente e para ajudar os meus irmãos com pensamentos que não surgem da minha mente, mas brotam de uma Fonte que pode se chamar de Espírito". Ele conduziu a sua existência e a sua busca ao longo de uma verdadeira encruzilhada de fronteiras espirituais: a católica, a hinduísta, a budista e a secular, construindo pontes, escavando túneis, abrindo estradas, alinhando-se em caminhos altos onde se pode contemplar todos os panoramas, mas também avançando em vales de limites incertos.
O próprio desenrolar do seu pensamento era uma insone oscilação entre gêneros diversos: da especulação ao símbolo, da análise à poética, da documentação à intuição, da filosofia à mística. Análogo era o desdobrar do seu arco-íris temático, que se sustentava sobre um eixo cristológico que, no entanto, se ramificava ao longo de todas as direções e das múltiplas cores das religiões fundamentais, a cristã, a hebreia, a hindu e a cósmica. Era árduo tê-lo como companheiro de viagem teológica: também me aconteceu – que o conheci, e ele sempre me considerou com afeto – de me encontrar perdido diante da sequência acelerada e febril das suas paisagens teológicas.
Inesquecível para mim foi um diálogo público com ele sobre um livro tão "fluido" como o de Jó (São Jerônimo o comparava a uma enguia ou a uma moreia!) no Duomo de Milão, diante de uma imensa multidão fascinada e transtornada ao mesmo tempo.
É por isso que, se quisermos desenhar um retrato de Panikkar, o caminho mais pertinente é o adotado por um jornalista de grande fineza humana, espiritual e intelectual, Raffaele Luise, que optou pelo gênero narrativo com dois protagonistas essenciais, o mestre e o discípulo. A incandescência do pensamento de Raimon, de fato, dificilmente podia ser coagulado no molde frio da crítica teológica, porque o transbordaria constantemente. O divino, o humano e o cósmico não tinham nele protocolos codificados e rígidos. As fronteiras eram justamente dissolvidas por uma hermenêutica que tendia a entrecruzar não só as religiões entre si, mas também as culturas e as espiritualidades, em uma cristologia total, mas não atribuível à coerência de um sistema.
Com Luise emerge assim o homem Panikkar, crente apaixonado, amigo doce, mestre de uma sabedoria oriental transcrita e fundida com a ocidental. Penso que muitos "laicos" alérgicos aos discursos religiosos ficarão surpresos em descobrir como é séria, fecunda e original a busca espiritual, da forma como aflora dessa "história" biográfica. Certamente, os teólogos e os filósofos encontrarão coisas a serem objetadas, assim como eu também me embaracei naquela noite e em outras ocasiões diante do fluxo de um pensamento tanto epifânico e "sem fronteiras" ou "ilimitado".
Mas a sua interculturalidade e inter-religiosidade continuam sendo um terreno onde agora nos reencontramos necessariamente, mesmo que com os pés plantados nos respectivos territórios nativos.
Passemos agora ao outro personagem que nos obriga a uma longa navegação para trás no rio da história. O seu nome era Johannes Eckhart, mas para todos permaneceu sempre como o Mestre Eckhart. Ele também foi um homem das fronteiras, ou melhor, afeto pelo gosto de fixar o olhar nos abismos mais vertiginosos.
O tradutor dos seus escritos em alemão antigo e latim na Itália é um estudioso que também gosta dos "para-doxos", ou seja, das teses "borderline" (basta ler o final da introdução do texto que estamos apresentando), Marco Vannini. A ele devemos a versão do Livro das Parábolas do Gênesis, que ofereceu alguns (mas não os únicos) materiais aos censores eclesiásticos de Eckhart, a partir do arcebispo de Colônia.
É curioso notar que, no fim, ele foi condenado por algumas das suas proposições "para-doxais" e até "hetero-doxas" à revelia, uma revelia particular, porque ele havia migrado para a pátria eterna pelo menos há um par de anos.
O interesse dessas páginas, que se assomam sobre o texto bíblico do Gênesis para arrancar dele a sua "casca literal" de forma que brilhe "o sentido mais recôndito", é de índole hermenêutica. A inteligência é a chave que abre as Escrituras. A razão é o instrumento indispensável para atravessar a cortiça e fazer resplandecer a verdade de Deus escondida nas Escrituras. As "parábolas" da Bíblia, portanto, devem ser evisceradas com o conhecimento filosófico (sobretudo tomista), para que revelem o seu fruto de luz.
E aqui o organizador toma posse para coenvolver o antigo mestre medieval na tese a ele cara do primado da elaboração filosófica clássica com relação ao texto sacro basilar.
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Raimon e Eckhart, mestres do espírito - Instituto Humanitas Unisinos - IHU