24 Setembro 2012
A pessoa certamente tem o dever de buscar a verdade, e fazer isso é, de fato, a sua grandeza, mas ela não pode ser obrigada a se submeter com a força pública a confessar qualquer verdade.
A opinião é do jesuíta francês Paul Valadier, professor do Centro Sèvres, de Paris, que estará na Unisinos nos dias 2 a 5 de outubro para o XIII Simpósio Internacional IHU: Igreja, cultura e sociedade. Dentre suas últimas publicações, encontram-se: Détresse du politique, force du religieux (Le Seuil, 2007), Maritain à contre-temps, Politique et valeur (Desclée de Brouwer, Paris, 2007), Du spirituel en politique (Bayard, 2008) e La part des choses. Compromis et intransigeance (Lethielleux DDB, 2010).
O artigo foi publicado no sítio Baptises.fr, 16-09-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
A Declaração sobre a Liberdade Religiosa do Concílio Vaticano II, Dignitatis humanae, foi um dos textos mais discutidos durante o próprio Concílio. E continua ainda hoje a ser objeto de vivas contestações, ao menos por parte da ínfima minoria dos integralistas. Esse documento, que tem como subtítulo "Direito das pessoas e das comunidades à liberdade social e civil em matéria religiosa", marca com evidência uma reviravolta na posição da Igreja Católica sobre a liberdade religiosa.
É preciso lembrar que, à época (1965), regimes comunistas ameaçavam os fiéis, impedindo até mesmo que muitos bispos fossem a Roma, e que outros se apresentavam como regimes oficialmente ligados unicamente ao catolicismo (Espanha, Portugal). Nem em um caso nem em outro, as "pessoas" e as "comunidades" podiam reivindicar o livre exercício do seu culto.
Se, nos nossos dias, tal afirmação de liberdade parece óbvia – embora em muitos países do mundo, particularmente aqueles em que o Islã é a religião oficial, essa liberdade conhece fortes limitações –, é preciso nos darmos conta de que a posição teórica dominante na Igreja reivindicava unicamente à Verdade o direito à liberdade pública. Segundo tal tese, só a Igreja Católica, "detentora" da Verdade, devia ser reconhecida pelo Estado: assim podia-se, no melhor dos casos, tolerar as outras confissões; no pior, proibi-las.
Foi bastante normal que o Concílio assumisse a defesa da liberdade religiosa “para todos” e não somente para os católicos diante de tantas perseguições, condenações e abusos de Estado. Mas sobre quais bases teóricas?
Bases teóricas da liberdade religiosa
O Concílio adotou uma posição que se pode dizer "personalista": só a pessoa tem direitos em suas relações com outras pessoas (comunidades), e não "A Verdade". A pessoa certamente tem o dever de buscar a verdade, e fazer isso é, de fato, a sua grandeza, mas ela não pode ser obrigada a se submeter pela força pública a confessar uma verdade qualquer. Essa afirmação de inspiração liberal (nela se reconhecem as afirmações de um certo John Locke) leva a demandar aos poderes públicos que “não obriguem” em matéria religiosa; esses poderes (o texto não fala de Estados) não têm nenhuma autoridade nesse domínio. Com tal afirmação, o Concílio estava alinhado com a referência aos Direitos Humanos, reconhecidos internacionalmente (Carta da ONU, 1948).
Mas não era suficiente se situar no campo político e filosófico. Também era preciso mostrar que a “própria Igreja não obriga em matéria religiosa”. A segunda parte do documento avança com uma grande força nesse campo, mostrando que a tradição cristão-católica sempre afirmou a liberdade no caminho de fé. Um sacramento recebido por constrição (batismo, matrimônio, penitência, ordem) não tem nenhuma validade.
Nesse campo muito seguro, o Concílio mostra que a Igreja não tem outras exigências com relação às "comunidades políticas" senão aquelas que ela mesma leva em consideração em si mesma. Ele pode, portanto, invocar a grande Tradição e não avançar uma reivindicação ditada pela atualidade, nem propor uma doutrina inteiramente nova.
As resistências
É fácil compreender as resistências passadas e atuais, sem as justificar, no entanto. Pondo-se como defensores de todas as liberdades religiosas (portanto, não somente do catolicismo), os Padres conciliares pareciam dissolver a excepcionalidade da Igreja; adotando um ponto de vista personalista e comunitário, eles pareciam minimizar o papel do Estado, encurralando-o em uma função de gestão das coisas terrenas.
Os ataques de então assim como os de hoje se concentram nesses pontos sensíveis, mesmo que os integralistas mascarem a sua resistência à liberdade religiosa invocando a liturgia e uma suposta infidelidade conciliar à Tradição.
Na realidade, a Igreja permanecia fiel à sua missão de defender as pessoas contra as opressões de todos os tipos; era coerente com a Boa Nova e com uma Aliança que Deus propõe no seu Filho e que pressupõe a livre adesão no Espírito. Ela defendia assim a Verdade evangélica muito melhor do que reivindicando apenas para si a proteção do Estado. Ela se libertava de proteções e de dependências assustadoras, quando o braço secular acredita estar no dever de impor um culto ou práticas religiosas.
E tal foi a ação vigorosa de Paulo VI com relação aos regimes espanhóis e portugueses dentre outros, para reencontrar "uma Igreja livre em um Estado livre" (Montalambert).
No entanto, não podemos ignorar as reações negativas que esse texto fundamental provocou. Ele não é negativo demais com relação ao papel dos Estados? Ele não é marcado demais por uma filosofia liberal desconfiada dos poderes públicos? Quando mudam as situações, mudam também os pontos de vista.
Diante dos novos problemas ligados à biomedicina, vimos João Paulo II apelar a um papel mais intervencionista dos Estados para defender a "verdade do homem" em sua integralidade (Veritatis Splendor, 1993; Evangelium Vitae, 1995). Uma volta atrás? Negação do Concílio?
A questão tem sentido, com efeito. Na realidade, mesmo que o apelo à Verdade seja equívoco, os posicionamentos de João Paulo II sobre a liberdade religiosa permaneceram na linha do Concílio. E pode-se discutir argumentações específicas da declaração Dignitatis Humanae, sem pôr novamente em causa a posição de fundo. Os integralistas que a contestam propõem às nossas sociedades pluralistas um Estado católico, exclusivamente católico?
Propor tais ideias loucas mostra suficientemente a sabedoria do Concílio e a necessidade de defendê-la contra as insinuações daqueles que acreditam mais na força das denúncias do que na força da verdade incompatível com a obrigação estatal.
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Uma declaração conciliar contestada: a liberdade religiosa. Artigo de Paul Valadier - Instituto Humanitas Unisinos - IHU