16 Julho 2012
Baltasar Garzon, juiz espanhol, será homenageado, amanhã, dia 17 de julho, pelo governo do Estado do Rio Grande do Sul. Jacques Távora Alfonsin, advogado do MST e procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul, recorda que a homenagem se realiza precisamente no dia em que se celebra "os 446 anos da morte de Bartolomeu de las Casas, um herói querido por toda a América Latina, também ele espanhol".
Segundo Alfonsin, "a homenagem ora prestada ao Dr. Garzon, portanto, pode alcançar legitimação significativa bem maior do que a do reconhecimento público dos seus méritos. É muito pouco provável, por exemplo, que um juiz como ele concorde com um projeto de Código Penal brasileiro - atualmente tramitando no Congresso nacional - prevendo como crime de terrorismo, em seu art. 239, parágrafo 3º, “Incendiar, depredar, saquear, explodir ou invadir qualquer bem público ou privado” prevendo pena de “prisão, de oito a quinze anos, além das sanções correspondentes à ameaça, violência, dano, lesão corporal ou morte, tentadas ou consumadas”
Jacques Alfonsin é mestre em Direito, pela Unisinos, onde também foi professor. É membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos e membro do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social – CDES. Ele é autor da obra "O Acesso à Terrra como Conteúdo de Direitos Humanos Fundamentais à Alimentação e à Moradia".
Eis o artigo.
A homenagem que o governo do Estado vai prestar ao juiz espanhol Baltasar Garzon, terça feira, dia 17 deste julho, oferece uma boa oportunidade para serem avaliados os efeitos que esse testemunho pode gerar sobre a compreensão, os sentidos e as dificuldades envoltas na garantia do respeito devido aos direitos humanos, refletidas na própria vida de quem os defende.
Baltasar Garzon é quase sempre lembrado apenas como um juiz espanhol corajoso, capaz de ordenar a prisão do ditador Pinochet, responsável pela tortura e morte de muitas pessoas, algumas de nacionalidade espanhola; o tirano jamais imaginava ser alcançado por um juiz de Espanha em solo inglês, no ano de 1998. O ordenamento jurídico internacional sobre direitos humanos, frequentemente ignorado por quem tem o dever de conhecê-lo e aplicá-lo, supriu nessa ocasião as omissões com que a interpretação do ordenamento interno de cada país costuma tratar matéria de relevância como a de quem toma o poder para usá-lo contra o povo.
Quando o doutor Garzon usou do mesmo desassombro para punir políticos corruptos do seu país, passou à condição de réu, sendo acusado de ter “errado” em detectar “ilegalmente” (?) escutas telefônicas comprobatórias de crimes contra o Estado e a sociedade. Um mínimo de percepção crítica, distante da ingenuidade, observa no processo movido contra ele toda uma herança cultural e ideológica que, entre a verdade faticamente provada de um acontecimento e a burocracia exigida pela lei para ele ser reconhecido, processado e julgado, prefere fingir que ele não ocorreu, a pretexto de se respeitar o “devido processo legal”. Já que este processo existe, justamente, para revelar a verdade, pior para ela.
Assim, as decisões judiciais de apuração e condenação de crimes, como os de lesa-humanidade, os praticados pelas ditaduras, os de peculato, desvio de poder e de dinheiro público, podem ficar impunes, exatamente pelos mecanismos altamente sofisticados de falsificação, despistes, eliminação de vestígios e provas com que os responsáveis por tais crimes desenvolvem suas ações.
Se tudo isso decorresse sempre do respeito devido à presunção de inocência das pessoas indiciadas ou denunciadas como tendo praticado algum crime, ainda haveria alguma explicação. Quando a história já se encarregou, entretanto, até mediante provas documentais irrefutáveis, de crimes hediondos praticados por ditaduras como a do regime militar imposto ao Brasil, pelo golpe de 1964, é surpreendente o cuidado e os melindres com que os responsáveis por tais ações estão sendo tratados.
Até a motivação das pessoas, na sua maioria jovens, que se rebelaram contra a ditadura imposta pelo golpe, ansiando por liberdade, direitos humanos políticos e sociais, prossegue sob suspeição. Foram vítimas de uma repressão violenta que não hesitou em usar da tortura, da humilhação e do assassinato para eliminar qualquer voz ou ato capazes de se opor ao regime de então, mas não falta quem “justifique” a inversão desses fatos, tratando-as como culpadas e fazendo passar os algozes como inocentes.
Não se pode deixar de notar, então, como todo esse cuidado “legal” é maliciosamente discriminatório. Ele nunca reclama vigência quando lhe parecer conveniente promover a criminalização generalizada de qualquer protesto público, partido de gente trabalhadora e pobre. Nesse caso, em vez da presunção de inocência, tem predominado a presunção de culpa. À semelhança do que acontece hoje com os movimentos populares, os projetos de erradicação da pobreza que eles defendem, as iniciativas que tomam em defesa do meio-ambiente, da dignidade humana, a aspiração por uma vida de bem-estar e de felicidade para todas/os não merecem garantias de inclusão, socialização e universalidade; para o tratamento dos direitos humanos aí implicados, o exemplo das punições impostas pelo Dr. Garzon a Pinochet e aos responsáveis por corrupção política deve ser esquecido...
Uma lembrança histórica tem de ser feita, a respeito. Por coincidência, a data em que o juiz Garzon é homenageado aqui no Estado, dia 17 de julho, os 446 anos da morte de Bartolomeu de las Casas, um herói querido por toda a América Latina, também ele espanhol.
Durante missa celebrada no longínquo domingo de 16 de dezembro de 1511, na qual estavam presentes um filho de Cristóvão Colombo e outros representantes da Coroa Espanhola, Bartolomeu (imagem ao lado) ouviu de Frei Antonio de Montesinos a leitura indignada de um versículo bíblico inscrito no livro do Eclesiástico: “Mata o filho na presença do pai, aquele que oferece sacrifício com os bens dos pobres.” Era uma condenação explícita ao modo como os espanhóis vinham oprimindo, explorando e matando os índios desde o início da sua chegada à América.
Tocado na mente e no coração pelo clamor da injustiça então denunciada, Las Casas mudou de vida. Tornou-se um dos mais hábeis, competentes e dedicados defensores de gente oprimida e pobre, lembrados até hoje. Frei Montesinos, por sua vez, pagou caro pela sua ousadia. Foi-lhe imposta a exigência de se retratar mas ele, no domingo seguinte, repetiu tudo quanto dissera no domingo anterior Acabou tendo de dar explicações a Corte sobre seus sermões.
Embora cause espanto, agora, séculos depois, a pregação de Las Casas considerar necessária a afirmação de que as/os índios tinham alma e careciam ser tratados, portanto, também como gente, o eco de uma tal denúncia, forçoso é reconhecer, ainda não chegou aos ouvidos de muitas/os aplicadores de lei. Como as vítimas defendidas por Las Casas ontem, as vítimas amparadas pelas sentenças do juiz Garzon, não são, ainda hoje, somente espanholas. Estão em todo o mundo, também no Brasil. O tratamento jurídico que se tem dado a certas questões submetidas ao Poder Público, Judiciário inclusive, ainda dá poder a muitas/os aplicadoras/es de lei reservarem a chave das algemas e das cadeias para garantir desigualdades classistas injustas, inadmissíveis e, não obstante, em nome do respeito devido à lei.
Sem pretender ofender a modéstia do Dr. Garzon, não deve haver muito exagero em comparar o apoio que suas sentenças deram à defesa dos direitos humanos civis de multidões de vitimas de opressão política e a defesa dos direitos humanos sociais de multidões de vítimas da corrupção econômico-política, com a coragem de Montesinos e Las Casas. Até as iniciativas tomadas contra o primeiro pelos dominadores de então, ressalvado melhor juízo, autoriza considerar-se a semelhança das questões que envolveram e ainda envolvem direitos humanos nos dois casos.
A homenagem ora prestada ao Dr. Garzon, portanto, pode alcançar legitimação significativa bem maior do que a do reconhecimento público dos seus méritos. É muito pouco provável, por exemplo, que um juiz como ele concorde com um projeto de Código Penal brasileiro - atualmente tramitando no Congresso nacional - prevendo como crime de terrorismo, em seu art. 239, parágrafo 3º, “Incendiar, depredar, saquear, explodir ou invadir qualquer bem público ou privado” prevendo pena de “prisão, de oito a quinze anos, além das sanções correspondentes à ameaça, violência, dano, lesão corporal ou morte, tentadas ou consumadas”.
Aí vai se consagrar o terrorismo sim, mas endereçado todo contra gente miserável e pobre como as/os índias/os, as/os catadoras/es de material as/os desempregadas/os, as/os sem-terra e as/os sem-teto, cuja condição e vida impõe-lhes as vezes um desespero de tal monta, que os obriga a usar da força para preservá-la.
O exemplo do homenageado também serve para as/os juízas/es e tribunais brasileiros, advogadas/os, promotoras/es, políticas/os, medirem a extensão dos resultados de suas prestações de serviço quando decidirem sobre problemas sociais onde se encontrem em conflito direitos previstos por leis ultrapassadas, inspiradas em valores ideologicamente viciados pelo egoísmo, pela preservação da desigualdade, em prejuízo evidente de direitos humanos fundamentais e de princípios constitucionais com poder emancipatório.
Também a Comissão da Verdade, recém empossada aqui no Brasil, para relatar torturas, crueldades, praticadas por ordem da ditadura militar, publicando os nomes dos responsáveis por tais crimes, pode superar os estreitos limites que lhe impôs a lei que a criou. A exemplo do homenageado de hoje, que sempre contou com o apoio forte, decidido e sério do povo, ela também pode buscar e ouvir as vítimas da opressão passada, os seus familiares, as organizações populares defensoras de direitos humanos, visando garantir ao seu trabalho a revelação da verdade histórica, ampliando os efeitos jurídicos que daí possam ser retirados, contra os quais estão em vigília muitos poderes da opressão passada. Não por escondidos ou, quem sabe, envergonhados até, deixam de estar muito ativos.
Seja acolhido e benvindo, pois, em nosso Estado, um peregrino do direito, cuja missão tem procurado dar resposta a três permanentes desafios da humanidade: um direito que não esconda verdades incômodas para opressores, tiranos e corruptos, nem tenha medo das suas ameaças e dos seus poderes, uma justiça que não desconheça os limites e as imperfeições da lei, nem hesite em ultrapassá-la quando a sua aplicação gerar efeito oposto à sua própria finalidade, uma paz que seja conquistada com a coragem e a determinação de quem sabe que a mesma lei e o mesmo direito jamais servirão de substituição idônea para o amor.
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O significado histórico da homenagem do governo gaúcho ao juiz Baltasar Garzon - Instituto Humanitas Unisinos - IHU