04 Junho 2012
A chegada de François Hollande ao poder na França tem sido apontada como uma reação às medidas de austeridade de uma Europa em crise e levanta a possibilidade de decisões protecionistas na economia, o que pode afetar o Brasil. Menos lembrada, no entanto, é a coincidência política inédita: pela primeira vez, os dois países são comandados ao mesmo tempo por governos de esquerda, liderados por partidos que mantêm contatos e se influenciam diretamente há mais de 20 anos.
A reportagem é de Cristian Klein e publicada pelo jornal Valor, 04-06-2012.
O Partido dos Trabalhadores (PT) e o Partido Socialista (PS) francês põem fim agora a um longo desencontro no poder central. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva venceu a eleição de 2002 cinco meses depois da saída de Lionel Jospin como primeiro-ministro, na coabitação com o então presidente Jacques Chirac, representante da direita francesa. Foi um descompasso entre os partidos nos governos. Mas não das relações entre ambos, que se aprofundaram e teriam se transformado.
Se antes, os socialistas franceses eram um exemplo de esquerda bem-sucedida no poder - governaram entre 1981 e 1995 com o presidente François Mitterrand - nos últimos dez anos, na avaliação de petistas, é o partido brasileiro que se tornou referência para o PS.
Assessor especial da presidente Dilma Rousseff e ex-secretário de relações internacionais do PT, Marco Aurélio Garcia afirma que "conhece muito" François Hollande, com quem já teve vários encontros, antes e enquanto o atual presidente francês liderou o PS entre 1997 e 2008. Garcia conta que petistas e socialistas têm relações muito sólidas. Enviam representantes para os congressos de cada organização e estão atentos à política defendida ou implementada pelo outro.
O assessor especial lembra que, em agosto de 2010, no fim do governo Lula, ao participar da chamada universidade de verão do Partido Socialista, encontrou "todo mundo" da agremiação, entre os quais Martine Aubry, atual primeira-secretária do PS, cargo equivalente ao de presidente do partido. O congresso reuniu mais de 4 mil militantes da legenda, na cidade de La Rochelle, no oeste da França.
"Evidentemente havia um interesse muito grande pela experiência brasileira, em particular, porque é a experiência de um partido de esquerda que está dando certo, num momento em que as experiências tradicionais na Europa não têm funcionado muito bem", afirma Garcia.
Outro contato recente, cita o assessor da Presidência, foi durante seminário sobre a Primavera Árabe, em Paris, em novembro, quando aproveitou para conversar com Pierre Moscovici, então chefe da campanha de Hollande. Moscovici agora é o ministro da Fazenda francês.
A conexão PT-PS inclui ainda vários momentos marcantes. Antigo admirador do Brasil e do PT, François Hollande esteve no Fórum Social Mundial de Porto Alegre, em 2002 e 2003, quando liderava o PS, e se encontrou em seguida com o então recém-empossado presidente Lula.
No ano anterior, Hollande havia sido o responsável pela aproximação entre Lula e Jospin, que concorria à Presidência e contou com o apoio do brasileiro no comício de encerramento de sua campanha. Em 2007, Ségolène Royal, então mulher de Hollande e candidata presidencial do PS, citava o Brasil e os programas de inclusão social do PT em seus discursos.
A amizade entre os dois partidos, no entanto, não garante que as relações entre governos e Estados melhore automaticamente. Nunca antes na história dos dois países, Brasil e França estiveram tão próximos quanto nas administrações de Lula e de Nicolas Sarkozy, que foi derrotado por Hollande em sua tentativa de reeleição.
Líder da UMP, principal sigla da centro-direita francesa, Sarkozy selou importantes acordos com o Brasil na área de defesa, que puseram a relação em outro patamar. A parceria Lula-Sarkozy era tão grande que o ex-presidente brasileiro não escondeu sua preferência pelos caças franceses Rafale, na concorrência para renovar a Força Aérea Brasileira. Até hoje a disputa - da qual participam também os aviões sueco Gripen e os americanos F-18 - não foi definida.
Filiado ao PS e um dos principais contatos do PT na França, o pesquisador Jean-Jacques Kourliandsky, encarregado dos estudos sobre América Latina do Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas (Iris) de Paris, afirma que a proximidade entre os partidos não deve ser confundida com os interesses dos Estados. Mas não vê motivo para que a relação não avance com a dupla Dilma-Hollande. Para ele, todos os ex-presidentes "puseram sua pedra nesta obra comum" e Sarkozy apenas aprofundou o que foi feito por antecessores. François Mitterrand, cita, veio ao Rio de Janeiro, em 1992. Chirac recebeu o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, em 1996, e Sarkozy firmou um acordo estratégico em 2008. "É uma política de Estado e não de partido", diz.
Kourliandsky nega que o Partido Socialista tenha uma tendência mais protecionista do que as forças da direita francesa.
"O PS, pelo que expressa em seu programa, e pelos atos quando teve responsabilidade de governo, não é um partido protecionista, apesar de que, como todos os partidos políticos franceses, defende os interesses da agricultura francesa, elemento fundamental de equilíbrio do balanço comercial externo da França. É um tema de debate tradicional entre França, Brasil e os países do Mercosul", afirma o socialista.
Na mesma linha, Valter Pomar, ex-secretário de relações internacionais do PT entre 2005 e 2010, diz que a discussão em torno do protecionismo dos socialistas parte de uma premissa errada, já que "99% dos políticos franceses", inclusive os de direita, são a favor de mecanismos de proteção à economia do país.
Em sua opinião, a diferença é que a vitória de Sarkozy representaria a continuação de uma política de direita, pró-capital financeiro, que "gera efeitos daninhos à França e ao mundo como um todo". "Se tem recessão lá, isso nos afeta. Quanto ao protecionismo, a política pública dos franceses eles é que decidem. Mas preferimos sempre um partido de esquerda, que tenha compromissos com valores como a igualdade e a soberania nacional", defende.
Para Pomar, o notório bom relacionamento entre Lula e Sarkozy "faz parte do folclore" assim como o mantido pelo ex-presidente com seu então congênere americano, George W. Bush. "Isso não impediu que o PT torcesse pelo Partido Democrata. Não tenho a menor ideia se Lula tinha simpatia por Sarkozy, mas o fato é que a esquerda, Lula inclusive, torceu por [Barack] Obama, assim como para os socialistas e Hollande, na França", diz.
Marco Aurélio Garcia afirma que as perspectivas de um bom relacionamento "são excelentes" e cita os primeiros encontros que Dilma e Hollande terão no México, durante reunião do grupo das 20 maiores economias do mundo, o G-20, e logo em seguida, no Brasil, na conferência Rio+20, ambos neste mês.
"A tendência é de os acordos continuarem. Eles estão empenhados na questão do submarino nuclear. Temos também acordo na área eletrônica, espacial, nuclear, enfim, são vários projetos", conta Garcia, para quem, na questão protecionista, "não é tanto a França que está envolvida, é muito mais a União Europeia de uma forma geral".
Outro nome do PT bastante ligado ao PS, o argentino naturalizado francês Luis Favre é menos contundente ao analisar o impacto da eleição de Hollande para a relação com o Brasil. Ele diz que há "muitas incertezas" e que tudo depende de como será a evolução da situação da crise europeia e francesa. O ambiente para as negociações com a União Europeia é diferente do clima favorável encontrado antes, quando Sarkozy endossou várias posições internacionais defendidas por Lula, como a demanda por uma cadeira permanente para o Brasil no Conselho de Segurança da ONU, e "estranhamente", aponta Favre, apoiou a taxa Tobin, imposto proposto pelo Prêmio Nobel de Economia de 1981 James Tobin para limitar a especulação financeira internacional.
"O protecionismo pode aumentar. O problema não é a vontade de Hollande, mas o contexto da crise europeia, como a saída da Grécia da zona do euro. Não é o governo, é a realidade que pode puxar neste sentido. Tendências politicamente xenófobas também vão nesta direção", diz.
Luis Favre, ao lado de Marco Aurélio Garcia e do ex-presidente da Caixa Econômica Federal, Jorge Matoso - dois exilados que moraram na França, durante a ditadura militar - estão entre os principais construtores da relação PT-PS.
Mais conhecido por ter sido casado com a senadora Marta Suplicy (PT-SP), Favre desde janeiro de 2011 trabalha no Peru, onde chegou para atuar na campanha de Ollanta Humala e é contratado pelo Partido Nacionalista Peruano (PNP) para cuidar da imagem do presidente.
Favre conta que conhece François Hollande "faz tempo". No entanto, seu maior contato no Partido Socialista é o ex-primeiro-ministro Lionel Jospin, camarada dos tempos de trotskismo, quando morou na França, antes de se mudar pela primeira vez para o Brasil.
A amizade entre os dois pavimentou a primeira experiência de forte parceria entre governos dirigidos por socialistas e petistas. Durante o mandato de Marta Suplicy na Prefeitura de São Paulo (2001-2004), Jospin fez várias visitas ao Brasil e estabeleceu convênios com a ex-prefeita. Os Centros Educacionais Unificados (CEU's) contaram com aulas bilíngues em francês. O Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), projeto surgido na França em 1986 e difundido pelo Brasil, teve em São Paulo sua primeira ambulância doada pelo governo francês.
Em 2001, Marta discursou nos dois comícios de encerramento das campanhas que elegeram os socialistas Bertrand Delanoë e Gérard Collomb às prefeituras de Paris e de Lyon. Em 2004, a cooperação levou à criação da associação internacional de grandes prefeituras, a Cidades e Governos Locais Unidos (CGLU), que teve entre seus primeiros co-presidentes a petista e Delanoë.
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PT e PS francês põem fim a desencontro no poder - Instituto Humanitas Unisinos - IHU