18 Abril 2012
Há três décadas, o cardeal Joseph Ratzinger chegou à fama como o arquiteto da repressão do Vaticano sobre a teologia da libertação na América Latina, que ele via como um batismo perigoso da luta de classes marxista. Essa postura fez de Ratzinger um herói para os anticomunistas incondicionais de todas as partes, o complemento intelectual perfeito para o robusto desafio de João Paulo II ao império soviético. Os falcões católicos da época acreditavam que a Ostpolitik do Papa Paulo VI, ou seja, o construtivo engajamento com o marxismo, estava finalmente morto e enterrado.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada no sítio National Catholic Reporter, 05-04-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Hoje, essas pessoas provavelmente se sentem presas em um filme de terror B em que o homem com a máscara de hóquei e motosserra continua voltando à vida. Isso porque, desde a sua eleição como papa, Bento XVI parece menos notável pela sua audácia anticomunista do que pelo seu apetite para a distensão.
A visita de Bento XVI a Cuba entre os dias 26 e 28 de março, em que ele se encontrou com ambos os irmãos Castro, mas com nenhum dos dissidentes pró-democracia, ofereceu o último exemplo a respeito.
Um sinal da dissonância psicológica: o escritor católico norte-americano William Doino publicou um ensaio no dia 27 de março no sítio First Things sob a reveladora manchete: "A Igreja está mais suave com o comunismo?". A resposta básica de Doino foi não, insistindo que Bento XVI não é um apaziguador, mas ele também sugeriu que as autoridades da Igreja podem exigir alguma "correção fraterna" pelo seu toque suave em Cuba.
Outros foram muito menos educados.
"Estou extremamente desapontado", disse o senador norte-americano Mario Diaz-Balart, republicano da Flórida. (Diaz-Balart vem de uma distinta família cubana, e sua tia foi a primeira esposa de Fidel Castro.)
"[O Papa Bento XVI] se recusou a se encontrar com quaisquer membros da oposição", disse Diaz-Balart ao The Huffington Post. "Ele se recusou a se pronunciar sob qualquer forma real contra os abortos forçados. Ele se recusou a se pronunciar contra o tráfico de seres humanos, que é patrocinado pelo regime. Ele se recusou a condenar as violações dos direitos humanos sob qualquer forma significativa. E não se pode dizer que ele não está ciente dessas questões... Ele está ciente disso porque muitos de nós já o deixaram a par de tudo isso".
No sítio National Review Online, Jack Fowler foi ainda mais crítico, denunciando a viagem sob a manchete "Bento XVI bombardeia Havana".
Fowler chamou a visita de "uma missão pastoral fracassada e surda que fez maravilhas em termos de relações públicas para os irmãos Castro, mas não tanto pela causa da liberdade das pessoas que eles têm atormentado durante quase seis décadas".
Na verdade, Bento XVI disse que o marxismo já não corresponde à realidade e advertiu contra a "irracionalidade e o fanatismo", e fez extrair uma concessão menor, ao permitir que a Sexta-feira Santa fosse celebrada este ano como um feriado. Tudo isso, no entanto, parecia um frio consolo para aqueles que buscavam um desafio anti-Castro mais robusto.
Cuba, no entanto, não é o único exemplo.
A política chinesa de Bento XVI também é alvo de críticas fulminantes, a começar por 2007, quando ele divulgou uma Carta aos católicos chineses de 18 páginas, delineando a sua visão. Entre outras coisas, a carta parecia sugerir que o futuro para "Igreja das catacumbas" da China, construída sobre uma base de resistência inflexível ao comunismo, era uma reunião gradual com a Associação Patriótica aprovada pelo governo.
Mais notavelmente, Bento XVI revogou as diretrizes e as faculdades especiais anteriores emitidas para a Igreja na China. Essas diretrizes aconselhavam os católicos chineses a evitar receber os sacramentos do clero aprovado pelo governo permitiam que bispos clandestinos ordenassem clérigos sem a sanção papal específica.
Na época, a escritora católica tradicionalista Marian Horvat acusou explicitamente que Bento XVI tinha entregue "os católicos clandestinos chineses ao comunismo", mergulhando-os em "um enorme julgamento espiritual".
Essas reservas só cresceram com a recente introdução por parte de Bento XVI do bispo John Tong Hon, de Hong Kong, no Colégio dos Cardeais, tornando-o o sétimo cardeal chinês e o único com menos de 80 anos e, portanto, com direito a voto para o próximo papa.
Em uma entrevista recente com a renomada revista italiana 30 Giorni, Tong declarou-se como um "moderado", favorecendo o diálogo com o governo, tornando-o um claro contraste com a feroz retórica anticomunista associada ao seu predecessor, o cardeal Joseph Zen. Com efeito, Bento XVI encontrou o pastor perfeito para a silenciosa diplomacia esboçada em sua carta de 2007.
No início deste ano, o renomado escritor católico italiano Sandro Magister observou o "silêncio" de Bento XVI sobre a China em seu discurso anual aos diplomatas, apesar do fato de que, como Magister afirma, a China "é o único país do mundo em que dois bispos foram presos por sua fé e nunca mais se ouviu falar deles, o primeiro há 14 anos, e o segundo há 11".
Também se poderia jogar o Vietnã nessa mistura, outro Estado de partido único onde o marxismo-leninismo continua sendo, pelo menos oficialmente, a ideologia dominante.
Ele também é, com certeza, um lugar que não rola exatamente o tapete vermelho para a Igreja Católica. Na semana passada, o Vietnã revogou os vistos de viagem de uma comissão de três membros vaticanos programada para coletar testemunhos para a beatificação do falecido cardeal Francis Xavier Nguyen Văn Thuận, que passou 13 anos na cadeia e em prisão domiciliar. Os católicos locais dizem que o governo teme que a beatificação de Văn Thuận irá acender um holofote desconfortável sobre o seu histórico em defesa dos direitos humanos.
No entanto, com o Vietnã também, Bento XVI preferiu o diálogo ao confronto.
Depois de um encontro entre o papa e o primeiro-ministro Nguyễn Tấn Dũng em 2007, um "Grupo de Trabalho Conjunto" foi formado para explorar as relações diplomáticas. Ele se reuniu três vezes, mais recentemente em fevereiro, e todas as vezes o Vaticano divulga declarações polidas saudando o "significativo progresso". Em janeiro de 2011, Bento XVI nomeou seu primeiro enviado para o Vietnã, um representante não residente, que rapidamente prometeu sua "disponibilidade tanto no serviço quanto na colaboração".
Essa reaproximação está se desdobrando, aliás, ao mesmo tempo em que monitores internacionais dos direitos humanos denunciam a "intensificação da repressão" contra as minorias religiosas no Vietnã. No ano passado, ao menos duas dezenas de católicos foram detidos pelas forças de segurança, muitos deles ligados a um movimento de empresários católicos que pressionam por reformas.
E então? Como conciliar o inofensivo toque de Bento XVI como papa com a sua forte postura antimarxista como czar doutrinário do Vaticano?
Por um lado, comparar a sua abordagem perante a teologia da libertação com a sua linha diplomática hoje em Cuba ou na China é um exercício d comparação entre maçãs e laranjas. Sua rixa com a teologia da libertação era basicamente intraeclesial. Com ou sem razão, ele sentia que a fé cristã ortodoxa estava sendo sequestrada em serviço a uma ideologia. Como lidar com teólogos dissidentes dentro da Igreja é, obviamente, uma questão diferente de como se envolver com governos hostis fora da Igreja.
Bento XVI como papa tem que se preocupar com as consequências externas de qualquer estratégia diplomática que ele adotar, especialmente para os católicos que vivem nessas regiões.
Em parte, também, a linha de Bento XVI, sem dúvida, reflete o fato de que não vivemos no mesmo mundo da era da Guerra Fria. Localmente, na China, em Cuba e no Vietnã, a decisão contra o marxismo clássico já foi tomada. Cada sociedade está evoluindo rumo a algo novo, e o cálculo de Bento XVI provavelmente é de que a Igreja está em melhor posição para influenciar a transição permanecendo no debate.
Finalmente, a versão de Bento XVI da Ostpolitik confirma uma intuição que às vezes tem sido ignorada ou encoberta: esse papa pode ser um conservador, mas está longe de ser um neoconservador de estilo norte-americano.
Durante sua última incursão à América Latina, no Brasil, em 2007, Bento XVI publicou uma crítica contundente do capitalismo e do comunismo, afirmando que ambos jazem sobre falsas "promessas ideológicas". Ainda em 1988, em seu livro Church, Ecumenism and Politics [Igreja, ecumenismo e política], Ratzinger escreveu que o capitalismo, o comunismo e o nacional-socialismo, todos eles, propunham falsos ídolos – prosperidade, o Estado e o “Volk”, respectivamente. Reconhecidamente, a encíclica social de Bento XVI de 2009, “Caritas in veritate”, que incluiu um chamado à governança global com "real concretização", deixou a direita ideológica rangendo dentes.
Embora Bento XVI não seja ingênuo com relação à repressão em locais como China e Cuba, ele também está mais inclinado a simpatizar com os seus protestos contra as injustiças econômicas e geopolíticas do que a maioria dos linhas-duras. Dado que Bento XVI não partilha plenamente os objetivos dos falcões ocidentais, não deve ser nenhuma surpresa que ele também não abraça suas formas e meios, incluindo seu desembainhar de espadas e o uso de suas viagens para desferir um soco no olho.
Se isso é um tato admirável ou uma fraqueza lamentável está aberto a debate. A linha de fundo, porém, é que qualquer pessoa que espera que Bento XVI se transforme em um Dick Cheney de batina está fadada à decepção.
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Bento XVI e o lamento dos falcões - Instituto Humanitas Unisinos - IHU