20 Março 2012
O arcebispo Rowan Williams, primaz da Igreja Anglicana, conversou com a Press Association depois do anúncio de que irá abandonar o ofício de arcebispo de Canterbury no fim de dezembro de 2012 para assumir o cargo de mestre do Magdalene College, em Cambridge, na Inglaterra.
A reportagem é do sítio oficial do Arcebispo de Canterbury, 16-03-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis a entrevista.
O senhor terá 62 anos quando deixar o posto. O senhor poderia ficar por mais oito anos – as pessoas devem estar se perguntando por que decidiu sair nesse momento.
Bem, no fim deste ano eu terei estado 10 anos no posto de arcebispo e pouco mais de 20 anos como bispo. Então, isso faz parte – sentir que, depois de 10 anos, é apropriado rezar, refletir e rever as suas opções. E também, neste ano, surgiu uma série de linhas divisórias. Há algumas coisas que estão chegando a termo e alguns processos que eu vi se concluírem, inclusive, por exemplo, os 10 anos de funcionamento do seminário cristão-muçulmano Building Bridges, fase que está chegando ao fim neste ano [embora irá continuar mediante a Georgetown University], a legislação da Igreja da Inglaterra sobre a revisão das mulheres bispos que está chegando à sua fase final neste verão [europeu], e eu tenho um encontro do Conselho Consultivo Anglicano no outono [europeu].
Assim, um certo número das que eu chamo de "linhas divisórias", que parecem tornar este um momento razoável para, ao menos, pensar em seguir em frente. E, quando chegou uma possibilidade que parecia confiável e atraente, parecia correto pensar nisso.
Há também o fato de que a próxima Conferência de Lambeth deve ocorrer em 2018. Eu certamente senti que eu precisava de uns bons cinco anos para me preparar para a última Conferência de Lambeth – era preciso muito pensamento e planejamento, uma série de considerações sobre o tipo de evento que deveria ser, e eu estou muito ansioso para deixar ao meu sucessor um bom prazo de preparação para isso.
Durante seu tempo como arcebispo, houve uma série de dificuldades dentro da Comunhão Anglicana acerca da questão dos gays. Gostaria de saber se, de muitas formas, o senhor não se sente aliviado por estar indo embora.
A gestão de crises nunca é uma atividade favorita, tenho que admitir, mas também não é como se isso tivesse ofuscado tudo. Certamente, foi um grande incômodo, mas em todo o trabalho em que você se encontra há controvérsias e conflitos. e este conflito não irá embora de uma hora para a outra. Então, eu não posso dizer que há um grande sentimento de estar "finalmente livre".
Também houve delicadas negociações sobre as mulheres bispos e muita polêmica em torno disso. O senhor está confiante de que será capaz de chegar a alguma espécie de compromisso aceitável para ambos os lados em julho, quando o Sínodo Geral irá votar?
Na verdade, eu estou muito esperançoso de que há muita boa vontade para fazer as coisas funcionarem no Sínodo. Entre agora e então, há uma enorme quantidade de coisas ainda por fazer em termos de construção de relacionamentos, construção de confiança, exploração de que opções podem tornar a legislação só um pouquinho mais aceitável por todos, e por isso estou determinado a continuar esse trabalho. E eu realmente me sinto bastante otimista sobre isso neste momento – para todas as dificuldades, há uma enorme quantidade de boa vontade.
Como o senhor revê os seus 10 anos como arcebispo de Canterbury (na foto, a vista aérea da catedral)?
É impossível registar se foi "um sucesso" ou não. Eu olho para trás principalmente como um tempo de enorme pressão, sim, e de abundância de convites para todos os tipos de coisas, para se engajar com todos os tipos de contextos – muitas e muitas oportunidades e muitas demandas.
Acho que as duas coisas pelas quais eu olho para trás com a maior satisfação são que conseguimos lançar, na Igreja da Inglaterra, o novo programa missionário Fresh Expressions (freshexpressions.org.uk), e fazer com que a Igreja da Inglaterra reconhecesse a possibilidade de novos estilos de vida congregacional e de novos estilos de formação para ministros. Eu acho que isso realmente começou a ser construído na vida da Igreja.
E, no último par de anos, também conseguimos lançar a nova Aliança Anglicana (anglicanalliance.org) para a ajuda humanitária e o desenvolvimento mundiais, de modo que reunimos um órgão de coordenação e de abrangência que ajuda as várias agências de ajuda humanitária que estão envolvidas na vida da Comunhão Anglicana no mundo inteiro a trabalhar melhor em conjunto – e isso, até agora, tem sido muito bem recebido.
Portanto, esses são, em minha opinião, alguns dos grandes pontos positivos dos últimos 10 anos. Eu olho para trás com muita gratidão.
E, de novo, simplesmente a oportunidade de viajar pela Comunhão Anglicana. Acho que, de forma mais pungente, no ano passado ao Zimbábue. Mas também as visitas ao Congo e ao Sudão; as visitas ao Paquistão em um momento de algum estresse e tensão lá; e, é claro, as repetidas visitas ao Oriente Médio ao longo dos últimos 10 anos. Isso é muito inspirador e engrandecedor, porque você vê pessoas realmente trabalhando no meio de circunstâncias assustadoras – comoventes em alguns aspectos –, mas um grande enriquecimento.
O senhor sente que tem sido um privilégio ser o arcebispo de Canterbury?
Tem sido um enorme privilégio ser o arcebispo de Canterbury. Você recebe o acesso à vida de Igrejas em todo o mundo, de uma forma realmente única. E não é apenas viajar para o exterior, é claro: todos os anos, eu faço duas ou três visitas a uma diocese da Inglaterra e passo três ou quatro dias por aí, visitando as paróquias, as escolas e assim por diante. E o privilégio é que você é levado ao centro da vida da Igreja local por alguns dias. Você vê o que realmente importa para as pessoas nas paróquias, nas escolas, nos presídios, nas casas de saúde e assim por diante.
Eu acho que deve haver muito poucos empregos em que você tem esse nível de "portas abertas" para você. E, é claro, eu valorizo profundamente a conexão com a Diocese de Canterbury – a possibilidade de regularmente ir para lá e simplesmente ministrar nas paróquias rurais de East Kent.
Qual tem sido a melhor parte do seu trabalho e qual tem sido a pior?
A melhor parte do trabalho, certamente, tem sido ver Igrejas a partir das bases em todo o mundo – ver por que e como elas importam para as pessoas. E o fato de ter recebido o privilégio e a possibilidade de compartilhar o que você ouve em uma parte do mundo, ou em uma parte da Igreja da Inglaterra, com outras partes. Você pode se tornar uma espécie de "central de comando" para boas notícias – você pode receber uma boa notícia sobre o que está acontecendo em uma parte do mundo e passá-la adiante para outro lugar, e se sentir muito enriquecido e engrandecido nesse processo.
Eu acho que os piores aspectos do trabalho têm sido a sensação de que existem alguns conflitos que não irão embora, independentemente de quanto tempo você lutar com eles. E de que nem todos na Comunhão Anglicana, ou mesmo na Igreja da Inglaterra, estão ávidos por evitar o cisma ou a separação. Eu certamente já considerei como uma verdadeira prioridade tentar manter as pessoas em relação umas com as outras. Isso é o que os bispos têm que fazer – o que arcebispos, acima de tudo, têm que fazer.
Muitas pessoas pensam que a pior crise para o senhor foi a rixa sobre as suas considerações no início de 2008 sobre a sharia [código de leis do islamismo]. Gostaria de saber se o senhor ainda mantém o que disse e se se arrepende de alguma coisa sobre esse episódio.
Recentemente, eu reli o texto da conferência sobre a sharia e eu ainda sustento o seu argumento. Poderia ter sido mais claro, tenho certeza disso. Sempre pode se dizer isso, especialmente das coisas que eu escrevo! Mas eu notei que, em poucos meses, o Lorde Phillips, presidente da Suprema Corte, estava dizendo algo muito semelhante e ao menos levantando uma questão que precisava de discussão.
Fiquei um pouco surpreso com a violência da reação. Isso se tornou um grande frenesi por alguns dias. Mas eu não senti que qualquer dano permanente tenha sido provocado. Eu acho que um ponto importante foi levantado, um ponto sobre como a lei terrena individual trabalha e legitima outros tipos de jurisdição dentro dela, o que já acontece. A palavra "sharia" é, naturalmente, muito emotiva para as pessoas e, apesar das tentativas de explicar que ela não significa o que um juiz na Arábia Saudita poderia pensar que ela signifique, as pessoas ainda têm aquela imagem nas suas mentes. Aí é onde eu poderia ter sido mais claro, tenho certeza disso.
O senhor é conhecido pela sua disposição de debater com ateus como Richard Dawkins. O senhor acha que o cristianismo está perdendo a batalha contra a secularização na Grã-Bretanha?
Eu não acho que o cristianismo está perdendo a "batalha contra a secularização". Eu certamente não tenho essa impressão quando estou com as congregações, quando estou nas escolas da Igreja ou em muitos ambientes como esses – nem mesmo quando estou falando sobre essas coisas em um grupo muito misto, digamos, de estudantes do Ensino Médio.
Eu acho que ainda há um grande interesse pela fé cristã e, embora eu ache que há também muita ignorância e um preconceito bastante simplista sobre as manifestações visíveis do cristianismo, o que às vezes obscurece a discussão, eu não acho que há, de alguma forma, um único grande argumento de que a Igreja está perdendo. Eu penso que as pessoas voltaram a debater, muito apropriadamente, com Richard Dawkins, com Philip Pullman, com Tony Grayling e outros – esse argumento continua de forma muito robusta.
O que eu acho que obscurece levemente tudo isso é essa sensação de que há uma enorme quantidade de pessoas de uma certa geração, agora, que realmente não sabem como a religião funciona, e muito menos o cristianismo em particular. E isso leva a confusões e sensibilidades nas áreas erradas – você sabe, usar uma cruz ofende as pessoas que não têm fé ou são não cristãs? Eu não acho que ofende, mas as pessoas se preocupam que ofenderá, e isso, em parte, porque há uma leve surdez sobre como a crença religiosa funciona.
Então, sim, há um desafio, e, sim, o papel público da Igreja é mais contestado do que costumava ser, e, sim, temos que conquistar o nosso direito de falar talvez mais do que antigamente. Mas isso provavelmente será bom para nós. Eu tenho dito algumas vezes que eu acho que deveríamos viver naquela que eu gosto de chamar de "democracia argumentativa", um pluralismo argumentativo. E, para o cristianismo, ser capaz de responder clara e energicamente nesse ambiente é extremamente importante. Eu espero que eu possa continuar contribuindo com essa discussão pública na nova função.
O senhor ainda tem outros nove meses como arcebispo de Canterbury. O que está planejando fazer? Quais serão os destaques desse tempo restante?
Bem, eu diria "o mesmo de sempre", não fosse o fato de que é um ano extremamente ocupado e exigente. Como eu disse, temos um artigo muito, muito importante da legislação para ser completado no debate sobre as mulheres bispos, o que irá ocorrer em julho. Temos também o Jubileu da Rainha, temos as Olimpíadas, e eu estou envolvido de várias formas na celebração das duas coisas.
No outono [europeu] deste ano, teremos um encontro do Conselho Consultivo Anglicano na Nova Zelândia, e, vinculada a isso, para mim, estará uma visita à Igreja de Papua-Nova Guiné, que é uma Igreja bastante pobre e bastante agonizante, mas também muito impressionante de várias maneiras, e eu espero poder passar muito tempo por lá.
Vou fazer duas visitas a dioceses inglesas. Eu mencionei que tenho um costume regular de ir a uma diocese por alguns dias de cada vez – neste ano, eu vou estar em Coventry por um tempo, e Gloucester também.
Portanto, muitas coisas para fazer, e eu não acho que haja qualquer risco de diminuição da energia e da atividade nesses nove meses.
O que o senhor espera do seu novo cargo?
Ao longo dos últimos anos, houve todos os tipos de ideias sobre a Igreja, sobre a fé, pelas quais eu ansiava por mais tempo para explorar e escrever um pouco. Então, eu espero ter mais espaço para escrever e pensar dessa forma. Certamente, espero fazer parte de uma comunidade acadêmica com uma boa troca de ideias, e espero os desafios de ajudar essa comunidade a trabalhar, o que faz parte do trabalho do reitor de uma faculdade. E eu acho que isso não está a um milhão de milhas de distância de tentar fazer funcionar a comunidade da família anglicana.
O senhor vai sentir falta do Palácio de Lambeth (foto)?
Eu acho que você sente falta de qualquer lugar em que viveu por um longo tempo, e há partes do palácio que são muito especiais. Vou sentir falta da Capela da Cripta, onde rezamos juntos todas as manhãs. E digo "rezamos juntos" porque uma das coisas que as pessoas não se dão conta sobre o Palácio de Lambeth é que ele é um lar familiar, e não um edifício executivo. Há pessoas que vivem aqui – alguns dos meus colegas vivem aqui, nos encontramos muito socialmente e nos encontramos na capela. Devo dizer que a sensação de fazer parte da comunidade daqui tem sido extremamente forte. É interessante que as pessoas que trabalharam aqui por um tempo invariavelmente dizem que "se sentem em família". Então, vamos sentir falta de tudo isso profundamente.
Eu imagino que o senhor vai sentir falta de Canterbury também.
Vou sentir falta de Canterbury enormemente. É um privilégio viver em Canterbury a uma centena de metros da catedral, poder ir à catedral cedo da manhã por conta própria e experimentar o edifício de uma forma única, fazer parte das grandes celebrações lá, dos grandes eventos do Natal, da Semana Santa e da Páscoa, da Peregrinação dos Jovens na Segunda-Feira da Páscoa, da ordenação de sacerdotes e diáconos. É muito, muito especial – é um edifício absolutamente encharcado de significado e de oração. E, mais uma vez, eu posso dizer que foi uma maravilhosa comunidade da qual fiz parte – a congregação da catedral, a equipe da catedral, o deão. Eu não poderia ter pedido colegas mais positivos, acolhedores, dedicados do que os de lá.
A última pergunta é: o senhor tem um sucessor preferido?
Sim, eu tenho – eu gostaria que o sucessor fosse o que Deus gostaria que fosse. Eu acho que esse é um trabalho de imensas demandas e espero que o meu sucessor tenha o porte de um touro e a pele de um rinoceronte, de verdade! Eu penso que ele terá que olhar com olhos positivos e esperançosos para uma Igreja que, com todos os seus problemas, ainda é, para muitas pessoas, um lugar ao qual elas recorrem em tempos de necessidade e de crise, um lugar no qual elas buscam inspiração. E eu acho que a Igreja da Inglaterra é um grande tesouro. Eu desejo ao meu sucessor todo o bem na sua administração.
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Por que vou renunciar. Entrevista com Rowan Williams - Instituto Humanitas Unisinos - IHU