14 Março 2012
"Tal qual a mineração, as terras, agora as florestas públicas, “bem de uso comum do povo e essencial à qualidade de vida”, como estabelece o art. 225 da Constituição Federal, tornam-se mercadoria ou bem comerciável. Além de uma colônia mineral e imobiliária, a Amazônia converte-se numa colônia de exploração florestal privada, ao sabor dos interesses privados, corporativos, nacionais ou não", escreve Afonso Chagas, mestrando do PPG em Direito da Unisinos e colaborador do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
Eis o artigo.
As recentes políticas planejadas e aplicadas na região amazônica trazem para cena o debate sobre o papel da administração pública e os interesses do país, principalmente no tocante aos bens públicos, que a Constituição define como bens de domínio nacional sobre os quais recai uma afetação ou destinação. Para tanto, propõe-se os princípios conhecidos da Administração pública que em última instância deveriam ser sempre norteados pelo interesse público ou interesse social e a necessidade pública, enfim.
Neste aspecto, ao observar o comportamento do Estado brasileiro, nos últimos 50 anos, dentro do cenário amazônico, o que se percebe é a concepção de um Estado sobremaneira dedicado ao fatiamento da região a grandes interesses privados, entre os quais, os do capital internacional ou multinacional. Em 03 contextos, é possível ver como se comporta o Estado brasileiro quanto à administração dos bens públicos e, sobretudo como se posiciona em relação aos interesses em torno de tais bens.
No regime militar e com a obsessão do “integrar para não entregar”, uma das primeiras medidas de governo foi instituir através do Decreto-lei 227, de 27 de fevereiro de 1967, o Código de Mineração. Nele estava aberto e “legalizado” o caminho para a destinação de imensas riquezas públicas (do subsolo) para os interesses privados, sobretudo internacionais. Um exemplo é do Projeto Jari e as concessões ao magnata americano Daniel Keith Ludwig, o Projeto Trombetas e as concessões para exploração de bauxita, pela canadense Alcan, uma das maiores empresas de alumínio do mundo.
Foi por meio de “favoráveis” concessões que o capital americano da Bethlehem Steel Company (segunda maior empresa de aço dos Estados Unidos), uma das maiores corporações americanas, possibilitou-se à Industria e Comércio de Minérios S.A (ICOMI) a exploração de manganês no Amapá, na Serra do Navio, isto desde 1946. Acresce-se à este panorama todo o complexo do Grande Carajás e o investimento privado e internacional desde o início em pesquisa até a privatização em 1997. A Amazônia oriental, principalmente o Pará tornou-se solo de grandes concessões graças ao regime res nullius (o subsolo não teria dono), que significava garantir ao Estado um papel suplementar, ao mesmo tempo em que facilitava a criação de grandes empresas de mineração, que fosse uma sociedade criada no país, independente da origem de seu capital.
Assim, por arranjos legais e administrativos a Amazônia acaba se tornando uma colônia mineral ao gosto de megainvestidores, megaempresas, sobretudo vinculadas ao capital internacional.
Quanto a uma outra questão candente, o problema da terra e da reforma agrária, além de uma questão histórica de desigualdade, concentração e patrimonialismo, tal questão ganhou dimensão de um grave problema social, no final da década de 1960, em razão da mecanização da agricultura, da concentração e do êxodo rural. Neste contexto os militares “assaltaram” o poder, em 1964, tendo como uma das suas principais preocupações buscar uma resposta para o problema. A bandeira da Reforma Agrária havia sido ao mesmo tempo uma das prioridades na agenda de reformas de João Goulart e um pesadelo para a burguesia agrária. Neste contexto, o Estatuto da Terra (Lei nº 4.504/1964), no primeiro ano do regime militar, foi mais um jogo de cena do que uma lei agrária, na verdade. Além de ser uma lei de colonização, foi sobretudo uma lei que facilitaria a transferência de milhões de hectares de terras na Amazônia primeiro para colonizadoras privadas e segundo para empresários do centro sul, principalmente de São Paulo, muitos dos quais nunca puseram os pés na Amazônia.
As colonizadoras privadas fizeram a festa com o patrimônio público e a terra virou mercadoria e especulação imobiliária. Aos empresários, através de simples declaração, o mecanismo de concessão foi mais generoso ainda. E assim terras devolutas, foram transferidas já em forma de latifúndio, por meio de alienações a preço insignificante, concessões e promessas de compra e venda irrisórias à grandes especuladores. Estava aberta a temporada da grilagem através dos procedimentos fraudulentos dos cartórios de registro de imóveis. Duas CPIs (1976 e 2000) foram instauradas e concluídas para investigar a grilagem na Amazônia. Uma nova CPI foi instaurada em 2010, no entanto perdeu sua efetividade pela síndrome conhecida como “período eleitoral”, onde em nada se mexe, por conveniência e permutas.
Satisfeitos os interesses das colonizadoras e dos interesses privados, conformando os órgãos estatais, principalmente o INCRA com os interesses das oligarquias locais, através de sucessivas instruções normativas o próximo passo seria ampliar os limites das concessões das terras públicas. Sob forma de contratos seja de alienação, concessão e promessas de venda, “devidamente” autorizado pelo Congresso nacional, os Órgãos governamentais transferiam, gratuitamente ou a preços irrisórios, áreas de até 2 mil hectares para empresários do centro sul do Brasil, em troca de uma simples declaração de que implementariam algum projeto agropecuário o que nunca ocorreria, uma vez que o interesse era a “especulação imobiliária”. A reconcentração de terras processou-se automaticamente, uma vez que neste “leilão” de terras públicas várias pessoas da mesma família participava e arrematava latifúndios, a “preço de banana”. Estava aberta a temporada da grilagem.
50 anos depois e já em um governo declarado “democrático”, chegamos à Lei nº 11.952/2009 e ao Programa Terra Legal, que sob a propaganda da regularização, objetiva-se na verdade, na maioria dos casos, para a regularização de grandes áreas públicas, irregularmente ocupadas, possibilitando agora, nesta nova fase da reconcentração, que ela seja devidamente “legalizada”, registrada e titulada. Não havendo mais limites nem barreiras para as concessões, a terra pública grilada não pode ser mais retomada pela Administração pública e pior, aquece o mercado imobiliário especulador, facilita a destinação de grandes latifúndios à empresas do agronegócio, “sepulta” de vez a reforma agrária e facilita ainda a legalização da “grilagem de terras” pela via institucional.
Em 02 de março de 2006, foi sancionada a Lei nº 11.284 que dispõe sobre a gestão de florestas públicas para a produção sustentável. Na verdade diz respeito à uma nova forma de concessão, cujo resultado de fácil previsão, é a privatização/desnacionalização das florestas da Amazônia, bem ao gosto das empresas de exploração de madeira, dos interesses financeiros corporativos, nacionais e transnacionais. Uma das primeiras iniciativas de tal decisão foi de incluir as florestas nacionais à este projeto. As florestas nacionais eram, pela normas de então, destinadas sobretudo à pesquisa, ao uso múltiplo sustentável dos seus recursos, de domínio público, podendo inclusive abrigar as populações tradicionais que a habitavam quando da sua criação. Agora não mais.
A nova lei de concessão de florestas públicas também não se subordina à legislação vigente no país. Em seu 13º artigo, deixa claro que, as licitações “observarão os termos desta Lei e, supletivamente, da legislação própria”, ou seja, os direitos aos concessionários, as condições são aqueles ou aquilo “expresso no contrato”. Com este grau de permissividade, abre-se as portas a transformar também este “ramo de concessões”, e sobretudo, os órgãos públicos responsáveis, num grande “balcão de negócios”.
A precariedade dos processos de fiscalização e controle dos órgãos públicos, notória e historicamente conhecidos, a ausência e os entraves para a participação da sociedade civil, como ocorre em audiências públicas “esvaziadas”, processos de consulta burocratizados e fragilizados e a “cartelização” dos interesses privados, somam-se nestes processos da racionalidade capitalista para a região amazônica, enfraquecendo a gestão ambiental pública de um lado e abrindo um sem limites de possibilidades aos concessionários, nacionais ou não, amparados e afetados tão somente por aquilo que dispuser o contrato. Os produtos e serviços a serem explorados e o objeto de cada concessão, sua exploração comercial, será o que o estiver expresso no contrato (Arts. 14º e 15º da lei 11.284/2006).
A Floresta Nacional do Jamari, em Rondônia, a 120 Km de Porto Velho, uma das experiências piloto da Lei de concessão de florestas públicas, com uma área de 220 mil hectares, teve 96 mil hectares de seu montante destinados à concessão florestal, fatiadas a três empresas madeireiras: a AMATA (Empresa madeireira de São Paulo), com 46 mil hectares; a SAKURA (Industria Madeireira de Rondônia), com 32,9 mil hectares e, a MADEFLONA (Industrial Madeireira Ltda, Rondônia), com 17 mil hectares.
Não é de hoje as notícias de extração ilegal de madeiras de dentro da Floresta Nacional do Jamari, assim como é público o fato de que dentro da mesma funciona, sob o regime também de concessão pública a mineração estanífera ERSA, ligada ao grupo da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN). Mesmo que o governo através de seu Órgão Gestor (Serviço Florestal Brasileiro – SFB), comemore o recebimento de R$ 3,8 milhões anuais pelo direito de explorar a Floresta Nacional do Jamari, até junho de 2011, a Flona Jamari já havia produzido às concessionárias mais de 12 mil metros cúbicos de madeira, no valor de quase R$ 790 milhões. O que, nas contas do Ministério do próprio Meio Ambiente deve render às empresas até R$ 30 milhões líquidos anuais de lucro. Cifras ainda pequenas, considerando que a produção potencial de madeira na Floresta Nacional Jamari é de aproximadamente 2 milhões de metros cúbicos por ano, numa produtividade média de 25 metros cúbicos por hectare, segundo dados do Serviço Florestal Brasileiro – SFB.
A palavra mágica para este regime de concessão é o “manejo florestal”, como se tudo agora possa se resolver, por meio da exploração controlada da floresta, baixando uma “cortina de fumaça” sobre os verdadeiros interesses em torno de tais regimes de concessão pública. Fala-se, para completar em empreendimento e normas de sustentabilidade, como se o poder “transformador” desta palavra possa transformar, tal qual o antigo “Rei Midas”, tudo o que toca. Se não Midas que seja a mídia e a força da propaganda a anunciar um novo tempo onde os recursos públicos são serviçalmente destinados à interesses privados, como sinal de desenvolvimento econômico e regional para a Amazônia.
Assim, tal qual a mineração, as terras, agora as florestas públicas, “bem de uso comum do povo e essencial à qualidade de vida”, como estabelece o art. 225 da Constituição Federal, tornam-se mercadoria ou bem comerciável. Além de uma colônia mineral e imobiliária, a Amazônia converte-se numa colônia de exploração florestal privada, ao sabor dos interesses privados, corporativos, nacionais ou não.
Em tempos onde se teme “fazer feio” na Conferência Rio+20 e em tempos onde o Congresso Nacional e o governo “barganham” interesses e oportunidades na aprovação do Código Florestal, fica claro então que projetos e interesses movimentam as importantes questões públicas. O regime de concessões públicas, como prática de Estado, cumpre assim seu papel de garantir a coalisão de interesses privados, cujo resultado é o sacrifício declarado e legislado dos interesses sociais e coletivos, sempre à revelia das conquistas constitucionais.
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Governo de concessão e os novos projetos coloniais na Amazônia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU