14 Janeiro 2012
A trilha de corpos começa a cerca de 275 metros do portão de metal do complexo da ONU e se estende por quilômetros entrando pela savana.
Há um homem idoso deitado de costas, uma mulher jovem com as pernas abertas, a saia enrolada em torno dos quadris, e toda uma família – marido, mulher, dois filhos – com o rosto para baixo no capim do brejo, executados juntos. Quantas centenas de pessoas estão espalhadas pela savana, ninguém sabe ao certo.
A reportagem é de Jeffrey Gettleman, publicada pelo jornal The New York Times e reproduzida pelo Portal Uol, 14-01-2012.
O Sudão do Sul, nascido há seis meses com grande euforia, está mergulhando num vórtice de violência. Amargas tensões étnicas que haviam sido em grande parte sufocadas em prol da conquista da independência estouraram num ciclo de massacre e vingança que nem o governo apoiado pelos EUA nem a ONU foram capazes de impedir.
Os Estados Unidos e outros países ocidentais investiram bilhões de dólares no Sudão do Sul, esperando que ele superasse sua história profundamente arraigada de pobreza, violência e divisões étnicas para emergir como uma nação estável e amiga do Ocidente numa região volátil. Em vez disso, milícias pesadamente armadas do tamanho de pequenos exércitos estão agora marchando impunes pelos vilarejos e cidades, às vezes com intenções ostensivamente genocidas.
Oito mil guerreiros cercaram esta pequena cidade localizada no meio de terras vastas, arrasando cabanas, incendiando celeiros, roubando dezenas de milhares de vacas e matando metodicamente centenas, talvez milhares, de homens, mulheres e crianças que se escondiam na savana.
Os invasores até divulgaram o massacre antes de ele acontecer.
“Decidimos invadir a terra dos Murle e varrer toda a tribo Murle da face da terra”, alertaram os invasores, de um grupo étnico rival, os Nuer, numa declaração pública.
A ONU, que tem 3 mil pacificadores prontos para o combate no Sudão do Sul, localizou os guerreiros que avançavam a partir de helicópteros dias antes do massacre e enviou 400 soldados às pressas. Mas os pacificadores não deram nenhum tiro, dizendo que estavam em número muito menor e poderiam ter sido facilmente dizimados.
Houve um presságio do ataque por conta de uma iniciativa de levantar fundos para a milícia Nuer nos Estados Unidos – um sinal perturbador de que por trás dos guerreiros segurando Kalashnikovs e cantando músicas de guerra há uma retaguarda a meio mundo de distância. Gai Bol Thong, um refugiado Nuer em Seattle que ajudou a escrever a declaração da milícia, disse ter liderado uma iniciativa para juntar cerca de US$ 45 mil de sul-sudaneses que moram no exterior para comprar comida e remédios para os guerreiros.
“Nós estamos falando sério”, disse ele numa entrevista. “Mataremos todos. Estamos cansados deles.” (Depois ele recuou e falou que queria dizer que matariam os guerreiros Murle, e não os civis.)
Esses combates étnicos eram terrivelmente comuns aqui em 2009, antes da pressão final por independência. Mais ameaçadores do que os roubos de gado em pequena escala que aconteceram durante gerações, os ataques com frequência pareciam manobras de infantaria, alimentando acusações de que líderes do Sudão do norte haviam enviado armas para desestabilizar o sul.
Mas os moradores do sul pareciam ter se unido às vésperas do referendo sobre a independência em relação ao norte. A exuberância trouxe reconciliação. Os grandes combates étnicos haviam praticamente desaparecido.
O intervalo durou pouco. A luta irrompeu quase que imediatamente ao longo da tensa fronteira entre o norte e o sul. Então, apenas um mês depois que o Sudão do Sul celebrou sua independência em julho passado com um novo hino nacional e um relógio de contagem regressiva que proclamava “Finalmente livre”, os guerreiros Murle mataram mais de 600 civis Nuer e sequestraram inúmeras crianças. O ataque desencadeou o massacre deste mês.
A clínica médica improvisada aqui em Pibor agora cheira carne em decomposição. Ela está cheia de crianças com buracos de bala em seus membros. Muitas se arrastaram durante dias para chegar aqui, por pântanos e rios lamacentos, e suas feridas estão inflamadas e gangrenando. Os médicos dão uma olhada e sussurram a palavra: amputação.
O governo do Sudão do Sul relutou fortemente em intervir nessas brigas, porque o próprio governo é uma colcha de retalhos mal costurada de grupos étnicos rivais que lutaram amargamente durante a longa guerra civil do Sudão. Os Nuer são uma peça fundamental da coalizão governista, e o Lou Nuer, o subgrupo que liderou o ataque em Pibor, fornece milhares de soldados para o exército do Sudão do Sul.
“Nuer lutando contra Nuer?”, disse um diplomata ocidental no Sudão do Sul, considerando as complicações de uma intervenção militar para impedir o massacre. “Isso seria explosivo.”
O governo tentou negociar conversas de paz entre o Lou Nuer e os Murle, mas as negociações naufragaram no início de dezembro, quando os Murle se recusaram a devolver as crianças sequestradas. Líderes Nuer então reconstituíram o Exército Branco, uma força temida, formada pela juventude Nuer, que massacrou milhares durante os anos 90. “Nós vínhamos implorando ao governo para nos proteger dos Murle e nada foi feito”, disse Thong, organizador do Nuer em Seattle. Então a decisão foi simples, disse ele: “buscar vingança”.
O governo disse que estava planejando uma grande campanha de desarmamento para a região, uma vez que as chuvas parassem. Até então, “não havia justificativa para ninguém tomar a justiça nas próprias mãos”, disse o porta-voz militar do Sudão do Sul, coronel Philip Aguer.
À medida que milhares de guerreiros Nuer entravam em Pibor em 31 de dezembro, observadores militares da ONU observavam enquanto eles queimavam cabanas Murle e saiam marchando, em filas únicas, em meio à savana, onde muitos civis Murle estavam escondidos. Líderes Murle reclamaram que foram abandonados na hora que mais precisavam. Nem as forças do governo nem os pacificadores da ONU deixaram seus postos em Pibor para proteger os civis que haviam fugido, e parece que muitos Murle foram caçados.
Mas Hilde F. Johnson, chefe da missão da ONU no Sudão do Sul, argumentou que os pacificadores tiveram pouca escolha a não ser ficar de escanteio. “A proteção dos civis em áreas rurais numa grande escala só teria sido possível com uma capacidade militar significativamente maior”, disse ela.
A violência continuou até 3 de janeiro, mas o número de mortos está longe de estar claro. Joshua Konyi, da etnia Murle, comissário do condado de Pibor, disse que mais de 3 mil pessoas morreram. Vários funcionários da ONU duvidam que os números sejam tão altos porque muitas pessoas fugiram de Pibor antes do ataque, mas eles concordaram que um número alto, talvez centenas, foram assassinadas.
“Há corpos por toda parte”, disse um funcionário da ONU que não tinha permissão para dar declarações públicas. “É uma área grande, então eu não ficaria surpreso com mil mortos.”
Muitos sobreviventes disseram ter visto dezenas de pessoas serem assassinadas na frente de seus olhos. Uma mulher Murle magra chamada Ngadok levou um tiro na perna enquanto fugia com seu filho de seis anos amarrado nas costas. Depois que ela caiu, os guerreiros Nuer pararam ao lado dela e mataram o menino, contou.
“Não estou pensando em nada agora”, disse ela, com o olhar vazio fixo nas paredes de tela branca da clínica médica improvisada. “Meu filho está morto.”
Os guerreiros Murle agora estão se reagrupando e já atacaram vários vilarejos, matando dezenas. E pode não ser só por vingança. Os Murle sobrevivem das vacas, e Konyie disse que a comunidade perdeu mais de 300 mil.
Um helicóptero voa baixo sobre a savana, cerca de 32 quilômetros ao norte de Pibor, e a grama verde esmeralda fica branca, marrom e preta. Lá embaixo estão as vacas, milhares e milhares delas, uma imensa massa de animais até onde os olhos podem ver. É o rebanho dos Murle, pastoreado por homens jovens e magros que olham com estranhamento para o helicóptero, voltando lentamente para o território dos Nuer.
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Após a independência, Sudão do Sul vive massacres étnicos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU