20 Outubro 2012
A unidade da ortodoxia é um resultado histórico, não um pressuposto teológico: a interpretação que acabou prevalecendo é a que se afirmou, não a única plausível, muito menos a única correta.
A opinião é do teólogo italiano Alessandro Esposito, publicada na revista Riforma, das Igrejas evangélicas batista, metodista e valdenses italianas, 12-10-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
As reflexões que eu gostaria de compartilhar com as leitoras e os leitores da revista Riforma surgem a partir do recente estudo publicado por Giovanni Filoramo, professor de história do cristianismo e de história das religiões na Faculdade de Letras e Filosofia da Universidade de Turim, significativamente intitulado La croce e il potere. I cristiani da martiri a persecutori [1] [A Cruz e o poder. Os cristãos de mártires a perseguidores].
O texto contribui para uma releitura aprofundada e documentada do século que mudou o rosto na nascente Igreja cristã, o século IV da era vulgar, que teve início com a promulgação do Edito de Milão (313) pelo imperador Constantino, através do qual foi sancionada a liberdade de culto para os cristãos, para se encerrar depois com o Edito de Tessalônica promulgado por Teodósio (380), mediante o qual a linha ortodoxa que prevaleceu dentro do Concílio de Niceia (325) e que foi reiterada em seguida pelo Concílio de Constantinopla (381) se tornou religião oficial do império.
Na análise do autor, "a história da formação e da estruturação desse novo tipo de Igreja está estreitamente ligada à pesquisa de uma ortodoxia unitária (...). O ponto de chegada desse processo secular foi o Concílio de Constantinopla, em 381, que fixou o dogma trinitário e impôs a fé ortodoxa que saiu vencedora do Concílio como verdade doutrinal para todos os súditos do império" [2].
No pano de fundo desse quadro interpretativo, o autor desenvolve, ao longo do texto, algumas afirmações que eu considero particularmente significativas também com relação àquilo que concerne ao exame crítico dos fundamentos da nossa dogmática teológica, hoje muito pouco discutidos.
O processo que levou a Igreja do século IV à "afirmação definitiva do credo niceno (...) pôde realmente ocorrer sob o preço de uma dupla violência: a eliminação de toda dissidência interna às várias Igrejas cristãs em nome de uma verdade dogmática considerada único e definitiva, e de uma Igreja verdadeiramente católica, isto é, universal" [3].
Eu acredito que é hora de conceder à análise histórica um pleno direito de cidadania dentro da discussão relativa à origem do dogma, que, muitas vezes, como Igrejas, confinamos no estreito perímetro do debate teológico.
A unidade da ortodoxia é um resultado histórico, não um pressuposto teológico: a interpretação que acabou prevalecendo é a que se afirmou, não a única plausível, muito menos a única correta. Muitas vezes, porém, o debate teológico se recusa a analisar as razões em virtude das quais a hermenêutica ortodoxa foi se afirmando e defende, com uma obstinação suspeita, a sua irrepreensível validade.
Uma das principais motivações pelas quais a ortodoxia prevaleceu reside na exclusão violenta de toda dissidência e das razões que o substanciavam, que não foram refutadas, mas sim demonizadas e, por isso mesmos, evitadas. De fato, continua Filoramo, "o que, à luz do Concílio de 381, é evidente que a referência às escrituras e o debate exegético não eram capazes de dirimir qual doutrina era ortodoxa e qual, ao invés, era herética" [4].
Essa afirmação de bom senso é a que geralmente deserta os debates teológicos aos quais pude assistir ou participar: é totalmente evidente, de fato, que nem as escrituras, nem as múltiplas interpretações que dele derivam se revelam suficientes para favorecer de maneira incontroversa uma e somente uma hermenêutica e, consequentemente, uma e somente uma dogmática.
A chegada a uma ortodoxia só pode ser o fruto de uma supressão arbitrária do debate e das suas razões, já que a temática cristológica sobre a qual verteu a controvérsia ariana é, em última análise, uma vexata quaestio – uma questão controversa – e, em uma perspectiva bíblico-exegética, está destinada a permanecer dessa forma.
É por causa dessa substancial impossibilidade de se chegar a uma solução definitiva que, lembra Filoramo, "as decisões do Concílio não conseguiram eliminar as profundas divisões que se haviam criado em quase um século de controvérsias (...) O imperador havia se iludido, portanto, pensando que havia encerrado com o Concílio a questão do conflito interno à Igreja" [5]. Não por acaso outros Concílios foram convocados, até se chegar à formulação de Calcedônia (451), que, mais uma vez, pretendeu ilusoriamente pôr fim ao debate com a formulação completa do dogma trinitário.
Mas a controvérsia, se há (e há) razões para mantê-la aberta, não pode ser declarada arbitrariamente concluída por decisões conciliares que se autoproclamam inquestionáveis.
E isso pelo fato de que, como Filoramo repete muitas vezes dentro da sua obra, em grande medida, as decisões conciliares foram decisões políticas e não puramente teológicas: e foram razões de oportunidade política que permitiram a consolidação de um pensamento único que toda teologia histórica e evangélica deveria rejeitar completamente.
Seria melhor para a teologia cristã sair de toda tentação absolutista e redescobrir aquela tolerância que, ao longo da sua história, lhe foi reproposta várias vezes pelo pensamento secular. O senador romano Símaco já tentou lembrar isso, quando defendeu, em 383, "a pluralidade das vias com as quais é possível chegar ao mistério divino (...) [O bispo Ambrósio respondeu defendendo que] não existe uma pluralidade de vias para Deus, mas apenas aquela que Ele revelou e que os cristãos possuem" [6].
Notas:
1. Giovanni Filoramo, La croce e il potere. I cristiani da martiri a persecutori. Bari: Laterza, 2011.
2. Op. cit. p. XII da Introdução.
3. Op. cit. p. 241.
4. Op. cit. p. 252.
5. Op. cit. pp. 269-270.
6. Op. cit. pp. 279-280.
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Quando as ''ortodoxias teológicas'' escondem o arbítrio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU