Por: Caroline | 15 Novembro 2013
O padre Francisco de Roux é um dos colombianos que mais conhece as entranhas do conflito, a tal ponto que tem sido apontado como um beneficiador da guerrilha. O provincial dos jesuítas explica por que, contra a opinião da maioria dos cidadãos, acredita no desejo de paz das Farc.
Francisco de Roux, é o Superior Provincial da Companhia de Jesus na Colômbia.
A entrevista é de Claudia Palacios, publicada no jornal El Pueblo, 27-10-2013. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
É necessário suspender o processo de paz enquanto ocorre a campanha eleitoral?
Sou a favor de não suspendê-lo. É preciso que se marque com clareza que o que está se dando em Havana não é a reeleição de Santos, nem o freio ao uribismo, nem sequer o futuro dos 10.000 homens das Farc, mas, sim, que os colombianos e colombianas possam viver como seres humanos, o que é algo muito mais sério. E para nós que vivemos em territórios de guerra e compreendemos a dor das vítimas e a gravidade da crise espiritual na Colômbia, parece muito triste que o contorno conjuntural das eleições coloque em risco um assunto tão delicado.
Contudo, existem dois cenários: se os diálogos são suspensos por muito tempo, depois dificilmente poderão ser retomados; mas se não o suspendem, vão receber muitos ataques que podem acabar colocando um fim neles. Como proteger, então, o processo durante a campanha?
Eu vejo que foram feitas algumas propostas, como caso haja uma suspensão, que continuem conversando com equipes técnicas sobre problemas que serão discutidos depois das eleições. O que me parece apropriado é que o processo continue. Que importância tem que o ataquem?! As opiniões do uribismo são muito ideológicas contra a paz e não vão cessar com a suspensão ou nas conversações.
Então, você acredita que não irão interrompê-lo, por mais que sejam feitos ataques?
Eu gostaria que o presidente agisse pela paz e dissesse: “Eu aposto na paz, e não abandono essa mesa. Entrego-me completamente a esta causa e não me importa qual o custo, inclusive, o risco de perder a reeleição”.
Mas, e ele apostar tudo e perder a reeleição? Não há mais ninguém que tenha dado mostras de querer continuar com o processo ...
Justamente, acredito que a fortaleza do próprio processo esteja condicionada à ousadia que o presidente possa ter, em apostar todas as cartas nele. Embora o presidente tenha tido coragem, aceitou o cenário e insistiu que para ele importa a paz, foi ainda muito cauteloso. Não foi suficientemente corajoso para colocar todo o peso de sua decisão para que a paz seja possível: assuntos como as ambivalências com o ministro da Defesa – compreensíveis pelo seu sentido associativo militar -, que a todo o momento bombardeia o processo; a necessidade de responder continuamente a oposição, deixando incertezas sobre o processo, ou a insistência de que isto deva levar meses e tem que estar pronto. A paz é muito mais profunda.
Obviamente, também esperaria essa determinação por parte das Farc. A opinião pública espera mensagens claras da guerrilha. Minha impressão é que as Farc fazem apostas sem compreender a complexidade com a qual os colombianos precisam receber estas propostas para torná-las politicamente viáveis, socialmente factíveis e economicamente sustentáveis. As Farc, dentro e fora da mesa, propõem mudanças estruturais muito profundas e a equipe de negociação dos governos permanece na perplexidade de saber como fazer para que estas propostas se encaixem na Colômbia real, de maneira que ao nos comprometermos com elas, o país as aceite e as torne realidade.
Apresente-me um exemplo destas coisas que não são factíveis.
As Zonas de Reserva Campesina são uma iniciativa apoiada pelas Farc, mas podem chegar a pedir um número de áreas que não é realizável. Ou pedir áreas em territórios indígenas ou afrodescendentes, que a sociedade não vai aceitar. Podem igualmente pedir um número de pessoas no parlamento que politicamente não seja possível, independentemente do que pensam o presidente ou os negociadores do Governo.
Recordava que o presidente disse que o processo iria durar meses e não anos. E já foi um ano. Você que conhece tão bem o conflito nas zonas rurais, quanto tempo acredita que teria que durar a negociação?
É muito difícil dar uma reposta assim. Mas, eu creio que neste tipo de conversas com pessoas que estiveram na luta armada, o processo de amadurecimento leva muito tempo e, logo, acelera-se quando são alcançados níveis de confiança e de clareza. Eu, francamente, creio que pode durar este ano e o próximo. Vicent Fizas, da Escola de Paz da Barcelona, mostrou esta semana dados com a média dos 25 processos mais conhecidos dos últimos tempos, que levaram 70 meses de negociações.
Álvaro Leiva falava em dar uma trégua durante as eleições. O que você pensa?
Uma espécie de trégua bilateral? Eu concordo.
Você acredita que deva ser dos dois lados?
Eu acredito que deva ser do interesse das duas partes. Eu acredito que a razão pela qual o Estado não a fez é porque tem consciência de sua vantagem militar e porque isto é algo que os colombianos estão demandando, porque vimos no passado não tivemos resultados para negociar, porque as partes violavam os acordos após a suspensão do confronto. Contudo, acredito que é possível encontrar caminhos alternativos, em que, suspensos os confrontos, possa haver uma intervenção internacional para constatar que se interromperam as agressões, e se possa ter um aparato de segurança muito forte em informação, que ajude o Estado a dar conta da segurança.
Porém, se Santos dissesse 'sim' ao armistício, daí, sim, não chega nem ao final deste Governo. Você não acredita?
Sim, caso isto signifique baixar a capacidade de presença do Exército e dos sistemas de inteligência e de análises, e se não houver uma supervisão internacional. Contudo, isto pode ser estabelecido, é uma questão de abertura e imaginação.
Os colombianos, quando questionados pela pesquisa, mostraram que não gostam do processo de paz. O que lhes dizer para que vejam o processo não apenas nos termos da confrontação política do momento, mas também pela sua relevância histórica e para o futuro do país?
Começaria por fazê-los se dar conta da gravidade da crise espiritual na qual o país está. Nós chegamos a níveis espantosos de vitimizações. Na Colômbia, nós aceitamos que existam falsos positivos [os casos de execuções extrajudiciais na Colômbia] para premiar os militares pelas suas conquistas, que haja piquetes porque os inimigos podem estar em qualquer lugar, que haja minas porque não se pode deixar o inimigo se aproximar, as falsas desmobilizações para enganar o inimigo. Vimos acontecer os massacres e sequestros mais longos do mundo. A guerra colombiana tem sido bárbara.
Entretanto, convivemos com isto e não acontece nada...
Eu não estou de acordo com a guerra das Farc, nem com a guerra do ELN, nem com a guerra dos paramilitares, nem com a guerra deste país. Agora, o colombiano comum pensa que os comandantes da guerrilha colombiana guerreiam pelo dinheiro, no entanto, quando você os conhece, percebe que tomaram as armas como último recurso, pelo bem da sociedade colombiana. Alguns não estão de acordo com isto, mas eles estão convencidos disto, conscientemente, e estão dispostos a dar a vida para que a classe dirigente do país se retire, que os membros do Exército, que defendem este sistema, morram. Há, aí, uma ética guerrilheira muito forte e com toda a tranquilidade dizem que não se importam que sejam mortos, para que o inimigo morra. O que as negociações em Havana demonstram para estes homens é que para fazer mudanças não precisamos nos matar.
Você acredita que eles não são narcotraficantes?
Eles têm utilizado a droga para financiar a guerra e é evidente que isso os prejudicou, mas eles não existem para o negócio do narcotráfico. Ninguém aceita condições de guerra tão terríveis por uma razão simples. Um narcotraficante não está disposto a morrer por seus ideais, ao passo que estes jovens não têm problema em morrer, desde que prevaleça a sua causa.
Entretanto, existem informações que dizem que eles possuem grandes fortunas no exterior...
Não conheço a veracidade destas informações. Que tenham dinheiro fora é possível, parte da barbárie da guerra são os recursos econômicos que comprometem. Recursos que poderiam ser dedicados ao ser humano.
Mas, fortunas pessoais...
Isto, sim, não me consta e não me atrevo a dizer nada. O que me consta é que, queiramos ou não, muitas dessas pessoas tomaram as armas por razões de consciência.
Você acredita que eles deveriam participar na política, uma vez que se firme a paz?
Acredito que todos os que estiveram na guerra causaram danos que precisam ressarcir e devemos recorrer à imaginação para cobrir estes custos. Não passarão toda a vida na prisão. Caso exijam-lhes o cárcere, a paz seria impossível na Colômbia. Contudo, é necessário encontrar caminhos para a justiça transicional, observando todos os lados: guerrilha, paramilitares e Exército. Ao se explicar ao jovem que está na montanha que causou danos ao país, e que a justiça deve ser feita, pode-se dizer a ele que quando a guerra terminar ele pode ser camponês, tornar-se promotor do desenvolvimento, protetor das zonas úmidas, treinar para aproveitar sua liderança sobre o povo e servi-lo.
No entanto, isso serve para os níveis médios e baixos. E para as altas esferas?
Não podemos proceder com eles com a justiça penal colombiana. Não podemos. Se para Mandela tivessem aplicado a justiça penal do seu país, teria morrido na prisão, porque Mandela fez terrorismo. E o mesmo ocorre em qualquer um dos processos no mundo.
Você acredita que algum daqueles que estão em Havana é um Mandela?
Mais do que isso, eu diria que são homens que chegaram a Havana para buscar a paz e que querem deixar a guerra, por isso se sentaram para negociar. Aqui, parece que há colombianos bons e um pequeno grupo de maus, mas isto é muito mais complicado. Todos na Colômbia são responsáveis, em diferentes níveis, desta barbárie com 250.000 pessoas mortas por uma guerra na qual nunca fizemos as mudanças profundas que o país necessita. Somos responsáveis, ainda que de maneiras diferentes: não da mesma forma como aquele que empunhou um fuzil na guerrilha, ou um militar com “falsos positivos”, aquele juiz que libertou um culpado indevidamente; um presidente que teve que tomar decisões; um jornalista; ou aqueles que têm alguma liderança religiosa; educadores; empresários; etc. Sendo todos responsáveis por esta guerra absurda, não podemos chegar a dizer que aplicamos o direito penal para alguns poucos. Parece que não nos demos conta da responsabilidade coletiva.
Neste sentido da responsabilidade coletiva, então, não deve haver uma punição?
Não, a justiça transicional, sim, pede punição, contudo, é preciso encontrar maneiras para cobrir os custos que foram causados à sociedade, para que sejam compatíveis com a paz e a reconciliação.
A sociedade vê a punição como prisão, mas outros dirão que a punição é que não façam política ou que passem ao menos determinado número de anos na cadeia. O que significa a punição?
Isto não pode ser respondido no nível abstrato, há que fazê-lo com as pessoas, em discussão. Necessitamos que se diga a verdade, que se reconheçam as vítimas e que elas encontrem tranquilidade. Devem ser estabelecidas formas de reparação às vítimas que perderam terras e casas. Deve haver algum tipo de satisfação social pelos danos causados, mas não que a justiça penal seja aplicada a todos.
Você votaria em algum dos guerrilheiros que se lançasse à política?
Precisaria ver o tipo de proposta que trazem.
Seriam as propostas que baseiam a luta armada que fazem há anos.
O que se pode ver até agora é que mudaram. O discurso de Jacobo Arenas foi sobre a privatização das empresas do Estado, rejeição ao investimento estrangeiro, nenhum desenvolvimento industrial no campo... isso já não possuem. As novas propostas são de negociações para incorporar o investimento estrangeiro onde a empresa privada atua e a participação democrática é exigida de forma mais ampla. Navarro Wolf esteve na guerra e, hoje em dia, faz propostas de avanço e o povo vota nele. Angelino Garzón foi do comitê gestor da UP, que era o partido das Farc, e as propostas que fazem são muito importantes para os colombianos,
E você fez o prólogo do seu livro. Você votaria nele para prefeito de Cali ou para presidente?
Sou partidário do voto secreto. Fiz o prólogo do livro de Angelino porque tenho uma enorme admiração por ele e pela sua senhora, não por um apoio eleitoral. Admiro sua capacidade de reconciliação e de perdão, sua capacidade de ver as coisas boas das pessoas. É um homem de grande valor humano, muito importante hoje para a reconciliação do país.
Voltando ao tema das responsabilidades coletivas, vocês disse, em um outro momento, que somos cínicos como colombianos porque não somos conscientes de que todos somos culpados da guerra em que estamos. O que cada um de nós teríamos que fazer para que nos envolvamos na causa da paz, não somente com o referendo, mas sim com ações concretas?
Primeiramente, devemos nos dar conta de que temos que construir este país com e entre todos, mas para que isto aconteça devemos mudar, devemos ser capazes de nos perdoar. O perdão vai além do legal e da memória.
Contudo, nós que não fomos vítimas diretas, o que podemos fazer para contribuir para a paz? Se o problema é a iniquidade, teríamos que dividir o salário, deixar de comprar alguns itens, o quê?
Outro elemento importante para a paz são as mudanças estruturais: que haja terra para os camponeses, que haja trabalho e saúde para todos, que se diminua a desigualdade de renda, etc. Tem a ver com a capacidade de receber jovens ex-guerrilheiros e ex-paramilitares; dar espaço aos camponeses para a produção de alimentos; com a abertura da participação política, com o reconhecimento das minorias, com o desenvolvimento do capital humano na educação de qualidade nos bairros pobres das grandes cidades, com o sentido de compaixão e de solidariedade com as pessoas da rua. Eu vejo muito mais disposição nas pessoas que sofreram a guerra diretamente, do que naquelas que não a sofreram.
Já que dá o exemplo das terras, pergunto-lhe sobre as de Orinoquia. As empresas que as compraram de maneira aparentemente ilegal, devem devolvê-las?
Será necessário encontrar uma saída jurídica para isto. Sou uma pessoa completamente convencida da capacidade dos camponeses de se desenvolverem se possuem estradas, acompanhamento técnico e terra. Podem fazer isso em todos os produtos tropicais permanentes e na agricultura intensiva. A partir de minhas experiências, a economia camponesa de cultivos tropicais permanentes apresentou produtividade igual ou maior do que as grandes fazendas. Trata-se de combinar os desenvolvimentos camponeses com os empresariais.
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Governo e as Farc. Fim de uma guerra? Entrevista com o Padre Francisco de Roux - Instituto Humanitas Unisinos - IHU