11 Julho 2013
"Do ponto de vista chinês, a característica mais evidente de sua economia continua sendo depender da experiência e conhecimento dos outros. Isso explica seus esforços desesperados para obter esse know-how. A China está muito distante de 'comprar o mundo'", escreve Martin Wolf, editor do jornal Financial Times, em artigo reproduzido no jornal Valor, 10-07-2013.
Eis o artigo.
A China amedronta o Ocidente. Raramente, no entanto, os ocidentais param para ver como o mundo é visto pela China. Sim, o país avançou a passos largos em termos econômicos. Mas a China ainda vê a economia mundial como dominada pelas economias desenvolvidas.
Entre os poucos ocidentais capazes de ver o mundo a partir do ponto de vista chinês está Peter Nolan, professor de desenvolvimento chinês na Universidade de Cambridge. Em livro provocador publicado em 2012, ele aborda um dos grandes medos sobre a China - o de que o país vem comprando o mundo. Sua resposta é "não": estamos dentro da China, mas a China não está dentro de nós.
Para entender o que o professor Nolan quer dizer é preciso entender suas ideias sobre o que aconteceu durante 30 anos de uma integração econômica internacional guiada pela tecnologia. A economia mundial foi transformada, diz ele, pela emergência, por fusões, aquisições e investimentos externos diretos de um número limitado de empresas dominantes enraizadas nos países avançados.
Do ponto de vista chinês, a característica mais evidente de sua economia continua sendo depender da experiência e conhecimento dos outros. Isso explica seus esforços desesperados para obter esse know-how. A China está muito distante de "comprar o mundo".
No cerne da nova economia mundial está o que ele chama de empresas "integradoras de sistemas" - firmas com marcas dominantes e tecnologias superiores, posicionadas no cume das cadeias de valor que atendem às classes médias internacionais. Essas empresas globais, por sua vez, exercem enorme pressão sobre suas cadeias de abastecimento, também provocando entre elas uma onda de fusões.
Valendo-se de dados de 2006 a 2009, o professor Nolan conclui que há duas empresas dominantes na produção de grandes aeronaves; três na de smartphones e infraestrutura de telecomunicações sem fio; quatro na de cervejas, elevadores, caminhões pesados e computadores pessoais; seis na de câmeras digitais; dez na de veículos a motor e farmacêuticos. Nesses casos, as firmas dominantes forneceram entre a metade e tudo do total mundial. Graus similares de concentração emergiram em muitos outros setores.
Quase a mesma concentração pode ser vista entre fornecedores de componentes. Vejamos a indústria de aeronaves. O mundo tem três fornecedores dominantes de turbinas, dois de freios, três de pneus, dois de assentos, um de sistemas sanitários e um de instalações elétricas. Nos setores de veículos a motor, tecnologia da informação, bebidas e muitos outros, o mundo tem poucos fornecedores dominantes de componentes essenciais.
A partir disso, agora podemos entender o que é a organização da produção e distribuição global sob a égide de uma empresa integradora. Tais firmas "normalmente possuem certa combinação de alguns atributos fundamentais, entre eles a capacidade de levantar financiamento para grandes novos projetos e os recursos necessários para bancar gastos em pesquisa e desenvolvimento de alto nível e [assim] manter a liderança tecnológica, desenvolver uma marca global, investir em tecnologia da informação de ponta e atrair os melhores recursos humanos".
Além disso, "cem firmas gigantescas, todas de países de alta renda, são responsáveis por mais 60% dos gastos totais em pesquisa e desenvolvimento das 1,4 mil maiores empresas do mundo". "Elas são a base do progresso tecnológico na era da globalização capitalista".
Essas empresas investiram pesadamente fora de suas fronteiras, inclusive na China. No processo, elas vêm perdendo características e lealdades nacionais. Isso cria tensões crescentes, uma vez que os governos encontram cada vez mais dificuldade para tributar ou regulamentar "suas" empresas. Mas as firmas ainda mantêm características nacionais e continuam enraizadas em culturas nacionais.
Como a China se encaixa nesse mundo novo? É um enorme sucesso de desenvolvimento.
Construiu esse sucesso, contudo, graças à disposição e capacidade de oferecer sua mão de obra e seus mercados aos produtores do mundo. Entre 2007 e 2009, empresas com investimentos estrangeiros foram responsáveis por 28% do valor agregado industrial da China; 66% de sua produção em setores de alta tecnologia; 55% de suas exportações; e 90% das exportações de produtos de alta tecnologia ou de novas tecnologias. O país, portanto, é um contribuinte crucial para sistemas administrados por estrangeiros. Se cidadãos e governos de países avançados olham com desconfiança para essas empresas globais, o quanto maior deve ser a desconfiança dos chineses?
A China não vem comprando o mundo. Entre 1990 e 2012, o montante global de investimentos externos diretos aumentou de US$ 2,1 trilhões para US$ 23,6 trilhões. Países de alta renda ainda foram responsáveis por 79% disso em 2012. Nesse ano, o montante de investimentos dos EUA fora de suas fronteiras foi de US$ 5,2 trilhões, o do Reino Unido, de US$ 1,8 trilhão, e o da China, de US$ 509 bilhões. O montante líquido da China (diferença entre investimentos que entram e os que saem) foi imensamente negativo, de US$ 324 bilhões. Em 2009, 68% de seus investimentos no exterior supostamente tiveram Hong Kong com alvo.
"As firmas chinesas estiveram ausentes das grandes fusões e aquisições internacionais", como nota o professor Nolan. Dada sua insuficiência de recursos naturais, a China investe nessa área no exterior. Mesmo assim, a escala de seus investimentos externos não se compara à dos promovidos pelas empresas estrangeiras.
O que essa análise sugere? A implicação mais importante é a de que a China mal conseguiu desenvolver empresas expressivas internacionalmente. Além disso, a liderança dos atuais países avançados é tal, que o país vai encontrar extrema dificuldade em fazê-lo. Do ponto de vista chinês, portanto, a característica mais evidente de sua economia continua sendo depender da experiência e conhecimento dos outros. Isso explica os esforços desesperados da China para obter esse know-how. Outra implicação é a de que a China está, de fato, muito distante de "comprar o mundo". A paranoia sobre seu impacto não é justificada.
Uma questão mais profunda é se, em um mundo com empresas cada vez mais globais, faz sentido preocupar-se com empresas que não são "suas". Suspeito que a resposta é "sim". A China está certa em preocupar-se com isso. Empresas ainda têm conexões nacionais que determinam a forma como agem e, em particular, seu papel no desenvolvimento das competências de um determinado país. Para uma nação tão vasta como a China, isso pode importar menos do que para os outros. Em última análise, é provável que quase todas as empresas globais se vejam envolvidas pela China: o país vai ser fundamental demais para suas atividades, para que possam escapar de suas exigências.
Se esse envolvimento ocorrer, será consequência de um processo natural de integração. Para o futuro da economia mundial e do mundo, um maior desenvolvimento de emaranhados globais tão profundos é algo desejável. Devemos manter a calma e seguir adiante.
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A China não vai comprar o mundo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU