''Virar as costas para milhares de migrantes só provocou danos''. Entrevista com Laura Boldrini

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06 Julho 2013

"A visita do papa a Lampedusa é uma mensagem epocal, que restitui dignidade às milhares de vítimas da guerra de baixa intensidade que, há 15 anos, é combatida no Mediterrâneo". Mas é também "um alerta contra as campanhas ideológicas que desagregam a coesão social denunciando uma invasão inexistente e difundem o medo chamando-os de imigrantes ilegais, em vez de refugiados ou requerentes de asilo". Para a presidente da Câmara italiana, Laura Boldrini, é tanto "um sinal histórico" quanto "uma emoção personalíssima" a viagem de Francisco à ilha onde, durante anos, ela leva a ajuda da ONU aos "boat people" em fuga de perseguições e desespero.

A reportagem é de Giacomo Galeazzi, publicada no jornal La Stampa, 04-07-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis a entrevista.

O Papa Francisco decidiu visitar Lampedusa na próxima segunda-feira, "comovido" pela última tragédia do mar. O que a levou pela primeira vez à ilha?

Em 2002, eu cheguei ao centro de acolhida montado na pista de aterrissagem. Quartos minúsculos, somalis que escaparam da morte e com as sondas no braço. Eu perguntei a um deles se ele faria novamente a travessia que estava por matá-los. Ele me respondeu que, em Mogadíscio, todas as manhãs que ele saía de casa ele não tinha a certeza de voltar. Com a viagem, ele havia arriscado uma única vez. Depois, em 2009, a tradição italiana de salvar vidas foi pisoteada pelas expulsões indiscriminadas em alto-mar contra a Convenção de Genebra.

O momento mais dramático?

Indignou-me e decepcionou-me essa traição do direito internacional, que barrava o caminho para mulheres e crianças sem identificá-los e impedindo o pedido de asilo. Desde sempre, Lampedusa é uma encruzilhada: ainda em 1700, o filósofo Diderot descreveu as duas lâmpadas que se acendiam na ilha (uma para Nossa Senhora, outra para Maomé), dependendo de quem chegava. Lá eu vi muitos migrantes beijarem o chão: é o lugar onde se renasce. Se pudessem, eles não jogariam roleta russa nesses botes e ficariam em suas casas.

A Itália sofre com os muitos pedidos pendentes dos requerentes de asilo?

Não, ao longo do tempo o procedimento melhorou, foi descentralizado e funciona bem. Os números demonstram isso. O verdadeiro problema é a integração. Conceder a proteção do Estado a quem pede asilo e depois negar-lhe o acompanhamento necessário para se tornar autônomo significa condená-lo a viver nas margens e sem perspectivas. Além disso, é fictício o antagonismo que se quis espalhar como erva daninha entre os moradores locais e imigrantes. Lampedusa está em dificuldades por causa da carência de serviços, e não por causa dos desembarques. Alimentou-se a errônea convicção de que os recursos para o desenvolvimento da ilha foram desviados para a acolhida, mas, ao contrário, são duas rubricas de orçamento separadas. Eles buscam a paz, fogem de regimes que negam os direitos humanos.

Quais são as culpas das instituições?

A visita de Francisco sacode a indiferença do Ocidente e conforta as famílias que não têm sequer um corpo para enterrar. É uma ponte para o gênero humano que não pode viver em segurança na sua própria casa e é forçado a arriscar sua vida. Principalmente para as mulheres que nessas viagens de pesadelo são muitas vezes submetidas a abusos de saqueadores, de traficantes e nos centros de detenção. Ao longo do percurso para chegar a Itália, muitas jovens pegaram doenças incuráveis depois que as suas famílias fizeram imensos sacrifícios para fazê-las partir.

São necessárias novas normas para a cidadania?

Isso está debaixo dos olhos de todos. É um anacronismo perigoso o fato de que uma lei sobre a cidadania não reconheça que na Itália vivem quatro milhões de imigrantes aos quais os direitos civis são negados. Isso cria animosidade, e o presidente Napolitano já exortou os partidos a saírem da danosa contraposição ideológica que impede de dar respostas sérias. Gerir a migração com uma lógica de defesa criou apenas danos. Uma imposição baseada no medo é um bumerangue fatal. Nos EUA, o filho de um imigrante de um vilarejo do Quênia foi duas vezes eleito presidente, enquanto na Itália a ministra Kyenge é submetida a ataques inaceitáveis somente por causa da cor da pele. A Itália ainda deve percorrer um longo caminho. O papa fala para o mundo inteiro e pode fazer muito apelando a quem tem a responsabilidade de decidir. Ele nos ensina a atenção pelos últimos e põe a atenção no outro lado do mundo, aquele que restitui a dignidade.

Enquanto isso, no entanto, os desembarques foram retomados. A senhora vê uma nova emergência?

Não. A lente deve ser ampliada. Devemos sair da dimensão da emergência. Entre nós, os desembarques via mar acontecem há 15 anos, são estruturais, situações que se repetem. A emergência está na Jordânia, onde são mortas centenas de milhares de refugiados, e não as centenas que chegam na Itália. A emergência são os regimes dos quais eles fogem, porque não existem direitos humanos. É mistificatório falar de emergência-desembarque entre nós. Temos que tratar a questão de modo estrutural, sistematizar as boas práticas e valorizar a experiência acumulada ao longo dos anos. Os alarmismos e a síndrome de assédio danificam a coesão social. Nós não somos o único país a se encarregar dos migrantes. Há um vitimismo não justificado pelos números. Eles não são ilegais, são refugiados. E a Itália certamente não é o ponto mais exposto.

Que significado "político" a senhora atribui para a viagem do pontífice?

É um tapa no egoísmo e no fechamento míope. Eu encontrei o papa com a minha filha na sua primeira audiência. Ele me deu uma impressão muito poderosa, um carisma extraordinário, uma pessoa fortalecida pelos seus valores e sentimentos. Com um olhar bom e límpido, que olha longe.

A senhora esperava esse gesto?

Sim. É uma mensagem que chegará não só à Itália, mas também para além das fronteiras nacionais. Estou muito impressionada e agradecida ao pontífice por essa viagem. A decisão de ir para a ilha siciliana está em linha com a sensibilidade mostrada desde o início por Francisco.