27 Junho 2013
Longe de condenar a homossexualidade, o Levítico convida a humanizar a relação do masculino e do feminino no casal.
A análise é do filósofo e psicanalista francês Pierre-Israël Trigano, autor de L'inconscient de la Bible [O inconsciente da Bíblia] (Edições Réel, 7 volumes). O artigo foi publicado no sítio da revista Témoignage Chrétien, 20-06-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
A perseguição multissecular dos homossexuais em nome da Bíblia até à rejeição violenta da lei que lhes autoriza ao casamento hoje se construiu essencialmente em torno da leitura de um mandamento do Levítico (Lv 18, 22): "Não te deites com um homem, como se fosse com mulher: é uma abominação".
Lida assim, a proibição não tem apelação. E é nesse sentido que o judaísmo e o cristianismo excomungam os homossexuais, com toda sã consciência. Mas o texto hebraico desse versículo, em sua constituição, é um dos mais obscuros da Bíblia. É o sinal indubitável que está cheio de um inconsciente portador de um sentido inédito.
Considerado na sua literalidade, podemos traduzi-lo assim: "Com um macho [zékher] tu não coabitarás [verbo no masculino] os estados de estar deitado [as "coabitações", os "leitos"] de mulher [ishah]".
Poder-se-ia muito bem dizer que esse versículo, em grande parte, é incompreensível, e que o modo pela qual as Igrejas o traduzem é uma extrapolação da versão grega da Septuaginta, não traduzida do original hebraico. Se a Torá tivesse querido ter como alvo diretamente a homossexualidade, ela o faria de maneira mais clara, em termos mais diretos. Além disso, não se vê por que ela ignoraria a homossexualidade feminina.
Voltar à literalidade do texto
Constatamos, em primeiro lugar, que em nenhuma parte do texto se encontra a palavra "como" que estabeleceria uma comparação entre uma relação sexual com um homem e uma relação sexual com uma mulher.
Literalmente, nesse versículo, a questão é o homem "coabitar" os "leitos" de mulher. Como ver aí qualquer referência à homossexualidade? Ao contrário, essa estranha fórmula poderia evocar relações sexuais do homem com as mulheres.
Em segundo lugar, a palavra traduzida como "mulher", ishah, aparece pela primeira vez na Bíblia em Gênesis 2, no relato da Criação da mulher. O seu contrário, designando "o homem", é ish. Seria de se esperar encontrar essa palavra no versículo para designar o oposto da mulher. Ao invés, é a palavra zékher, o "macho", que encontramos no texto, que tem como polo oposto a palavra néqévah, a "fêmea". Essas duas palavras fazem sua aparição em Gênesis 1, no relato da Criação do ser humano.
Pelo fato de o Levítico se referir a zékher, o "macho", logicamente deveríamos encontrar no versículo néqévah, "a fêmea", em vez de ishah, "a mulher". Como compreender essa diferença?
"Macho" e "fêmea" são categorias pelas quais a Bíblia (Gn 1, 27) qualifica o ser humano que acaba de ser criado por Deus: "Macho e fêmea os criou". Além disso, a Igreja se serve igualmente desse versículo para afirmar sem apelo que só o matrimônio "de um pai e de uma mãe" é a norma divina para fundar a família humana.
Ora, é preciso ver que "macho" e "fêmea" são categorias animais e não humanas. Elas caracterizam uma humanidade primitiva que sai ainda com dificuldade da animalidade.
É precisamente a emergência de tal humanidade, arcaica, original, ainda não totalmente realizada, que Gênesis 1 descreve. Certamente lá está escrito que ela foi criada "à imagem e semelhança de Deus", mas se trata de um potencial divino de humanização que ainda não está ativo na origem e que está em jogo em toda a evolução humana.
Masculino e feminino arcaicos
As categorias animais zékher e néqévah expressam o estado de violência que caracteriza a humanidade arcaica da qual será difícil sair por parte dos seres humanos, homens e mulheres.
O surpreendente poder significante do hebraico bíblico nos ajuda a compreender isso, em particular pelas possibilidades de releitura que ele oferece. Com efeito, essa língua é puramente consonântica, e as vogais não estão fixadas nos manuscritos originais. A mesma palavra, associada a vogais diferentes, assume significados insuspeitos à primeira leitura e manifesta assim, sutilmente, um "inconsciente" da experiência humana que ela simboliza.
Há, por exemplo, o caso, muito impressionante, da palavra néqévah, "fêmea", que nós podemos reler como néqouvah, portadora de um significado terrível para a condição feminina: a "perfurada", a "maldita"! Essa palavra nos revela, assim, sem dúvida alguma, que, na humanidade mais arcaica, ainda animal e "primata", a mulher é reduzida à condição de "fêmea" dominada, esmagada pelos "machos", como é ainda hoje nos clãs dos chimpanzés, os nossos primos animais mais próximos.
A psicologia do zékher
Mesmo que nas tribos primitivas chamadas "matriarcais" as mães tivessem um certo poder, certamente não era o caso das filhas, reduzidas a objetos de troca entre clãs, em benefício dos "machos".
E eis precisamente o que nos sugere a palavra zékher, que designa estes últimos: pronunciada zakhor, ela expressa a ação de lembrar. Ao fazê-lo, o espírito da língua hebraica parece nos ensinar que é o poder dos "machos" que organiza a "lembrança" da origem, a fidelidade às linhagens arcaicas da humanidade e, portanto, a repetição dos maus-tratos feitos às mulheres de geração em geração.
É a psicologia do zékher, o masculino arcaico e violento, que deseja manter e perpetuar na cultura humana as mulheres e a feminilidade na condição maldita de "fêmea" inferiorizada, violentada e humilhada.
Outra caracterização dos gêneros surge em Gênesis 2 com as palavras ish e ishah, "homem" e "mulher". Seria necessário dissipar muitas contradições que a tradição (investida pelo zékher) acumulou com relação a essas palavras. Algo impossível de estudar dentro dos limites deste artigo.
Constatamos simplesmente que elas significam "esposo" e "esposa", e são, portanto, categorias eminentemente relacionais. Elas designam uma humanidade finalmente humanizada, que saiu do arcaísmo "animal", na qual, portanto, a relação de amor pode desabrochar. É revelador o fato de que a palavra ishah, "mulher", pronunciada éshéh, significa: "Eu esquecerei...".
Maus tratos às mulheres
O "macho" no ser humano quer organizar a lembrança do arcaísmo violento e desumano da origem animal, enquanto a "mulher" no ser humano "esquecerá"! É uma promessa profética trazida pela ishah. Virá um tempo de cumprimento em que os maus-tratos feitos às mulheres e à feminilidade serão esquecidos.
Nesse ponto, o sentido do versículo se esclarece. Ele ordena ao homem que acima de tudo não entre na coabitação (sexual, mas também em todos os domínios da vida de casal) com ishah, a mulher, com o (com base no) espírito do zékher, o masculino arcaico sem amor e violento.
Ishah é a mulher, mas também, no plano arquetípica, é a feminilidade, a capacidade de abertura ao outro e de amor, presente no homem assim como na mulher.
Assim, esse versículo, bem longe de proibir formalmente a homossexualidade, é, ao contrário, a injunção divina a cuidar de toda relação de coabitação e de casal, qualquer que seja o/a parceiro/a que se tenha, de fundá-la no amor, na ternura e, portanto, de cultivar o desabrochar da feminilidade em si e no outro, em vez de feri-la sob os golpes do egocentrismo masculino arcaico de onipotência.
Como se vê, essa injunção pode interpelar tanto os casais homossexuais quanto os heterossexuais, sem lançar o anátema sobre qualquer categoria de seres humanos.
Questionamento ético
O seu questionamento não é legalista, mas sim ético. Ele não se contenta com uma aplicação "técnica" que seria aqui a recusa ou a repressão da homossexualidade, como a tradução habitual levaria a pensar. Mas ele abre uma busca ética sobre o fundamento da relação que cada um, quem quer que seja, enlaça com um outro, quem quer que seja, como ser humano.
E essa busca é, em si mesma, um caminho de vida que visa a favorecer cada vez mais o amor, a enfatizar a feminilidade (dos homens assim como das mulheres) ferida pelo zékher. Seguramente não se pode utilizar a Bíblia hebraica, portanto, para condenar a homossexualidade.
Toda a minha pesquisa demonstra que ela veicula no seu texto hebraico um "inconsciente" que espera ser redescoberto, portador de um sentido que revoluciona as interpretações da tradição judaico-cristã e que subverte a redução despótica e moralista da religião. Esse versículo é um testemunho característico disso.
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A Bíblia hebraica não é homofóbica. Artigo de Pierre-Israël Trigano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU