26 Junho 2013
Transcorrido o período simbólico dos 100 dias desde a eleição, não faltaram análises que tentam traçar um primeiro perfil do pontificado de Francisco. A poltrona vazia do papa no concerto em sua honra é o sinal mais evidente de que há algo novo. Entre as reflexões que eu mais gostei, assinalo as de Massimo Faggioli sobre o catolicismo pós-ideológico de Bergoglio, de Alberto Melloni sobre o estilo de Francisco, de Marco Politi sobre a renúncia à simbologia imperial do papado.
Eu também tive a oportunidade de propor uma análise minha no sábado passado, em Parma, na assembleia da Associação Viandanti, onde falei juntamente com Flavio Dalla Vecchia. Apresento-a aqui.
A opinião é do teólogo leigo italiano Christian Albini, em artigo publicado no blog Sperare per Tutti, 25-06-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
A partir da eleição do Papa Francisco, cada gesto e cada palavra de Bergoglio foram sopesados quase obsessivamente em muitas partes para responder a uma mesma pergunta: ele é um conservador ou um progressista? Esse esquematismo, do qual eu também me dou conta de sentir o efeito, é índice de uma ruptura profunda que divide a Igreja Católica há décadas em seu interior, provocando confrontos e contraposições que desmentem a fraternidade cristã. Diante do novo papa, perguntamo-nos, por isso, se ele está do nosso lado. Eis, então, que há quem se apresse a recrutá-lo para as suas próprias fileiras, porque ele fala do diabo e de Nossa Senhora, assim como outros apelam a aspectos diversos da sua pregação.
Esse modo de pensar é correlato à obsessão da continuidade, razão pela qual de tudo o que o papa diz ou faz é preciso afirmar que ele não está mudando nada com relação ao passado, como se a experiência cristã não fossem caminho e conversão, mas apenas conservação. Sem falar naqueles que defendem que os papas mudam, sim, com as suas personalidades, mas tudo faz parte de um único desígnio do Espírito, como se a liberdade pessoal não existisse, e os pastores fossem apenas marionetes.
De minha parte, eu considero que o Papa Francisco é uma novidade positiva, mesmo que, pela sua história e proveniência, Bergoglio, não seja enquadrável na dicotomia acima mencionada. E isso é positivo, porque é um esquema que acaba paralisando a Igreja. Pela sua história pessoal e proveniência, Francisco traz consigo elementos mais tradicionais juntamente com outros que são uma ruptura com relação a certos aspectos do catolicismo já enrijecidos e que hoje não expressam mais a novidade evangélica.
O Papa Bergoglio está realizando, com gestos e palavras, uma reconfiguração linguística dentro da Igreja que põe em relevo ênfases e prioridades novos. É uma oportunidade para a Igreja Católica de reconquistar impulso e fôlego. Certamente, neste momento, ainda faltam escolhas de governo profundas e explícitas correspondentes a esse novo léxico. Elas são necessárias para que essa mudança seja efetiva, mas não faltam sinais de que vamos nessa direção.
A linguagem de Francisco corresponde a um verdadeiro estilo, a um modo de viver a fé e de ver a Igreja que abre possibilidades até agora subvalorizadas de seguimento do Senhor segundo o Evangelho. É um estilo em que confluem o pertencimento à Companhia de Jesus, as intuições do Concílio Vaticano II, a sua extração latino-americana. Eu tentei sintetizar as características desse léxico em sete pontos, lembrando também as sintonias implícitas com a Palavra de Deus
1. O modo de entender o papado, despojando-o da sua acepção monárquica que se estratificou ao longo dos séculos. É um dos aspectos mais evidentes: o fato de se definir preferivelmente como bispo de Roma, o fato de se apresentar na saudação apenas com a batina branca, as referências ao modo de entender o ministério petrino no primeiro milênio que tiveram um forte impacto ecumênico, o fato de residir em Santa Marta , as homilias pronunciadas de pé, a substituição do trono papal por uma poltrona, e muitos outros. Um papa que se apresenta como pastor, mais do que como soberano, corresponde ao que Jesus diz exortando aos apóstolos a não fazer como os poderosos do mundo (cf. Mt 20,24-27; Mc 10,41-45; Lc 22,24-27).
2. As referências insistentes à misericórdia de Deus que se torna uma verdadeira chave interpretativa da fé cristã. O que importa, no caminho do fiel, é a confiança, o crer no amor (cf. 1Jo 4,16), antes que a doutrina e os princípios éticos que podem acabar se tornando motivo de exclusão. Walter Kasper, no livro sobre a misericórdia que Francisco citou no primeiro Ângelus, reconhece como o primado da misericórdia muda a hierarquia das verdades de fé e tem sido culposamente subvalorizado pela reflexão teológica. Essa referência está levando muitas pessoas a olhar novamente com simpatia para a Igreja e o seu anúncio, mesmo que haja aqueles que, ao contrário, gostariam de uma Igreja do rigor de portões fechados.
3. A colegialidade e a sinodalidade como modo de viver as relações dentro da Igreja, não mais sob a insígnia do verticalismo hierárquico, mas do caminhar juntos, da participação de todos, mesmo na diversidade dos ministérios (ligada ao pertencimento ao único corpo de Cristo, cf. 1Cor 12). Sinodalidade é um dos nomes da comunhão. A escolha de oito conselheiros e as conversas contínuas com os membros da Cúria são o sinal de um papa que não governa no isolamento, mas quer, acima de tudo, escutar.
4. A explicitação da necessidade de uma reforma da Igreja, na qual os oito conselheiros devem trabalhar, começando por realidades como a Cúria e o IOR. É uma ruptura com a ideia da Igreja como sociedade perfeita, imagem de uma instituição que quer se apresentar como essencialmente imutável. Uma Igreja que não precisa de reformas não quer negar a si mesma e tomar a cruz para seguir o Senhor (cf. Mt 16, 24).
5. A recuperação positiva de expressões do Vaticano II, que caíram no esquecimento e que têm uma notável força disruptiva. Penso nas repetidas referências à Igreja dos pobres, que assume o mesmo estilo de Jesus na sua missão, renunciando às seguranças mundanas, ao fato de ser poder entre os poderes. Como a Igreja pode fazer diferente do seu Senhor que identificou a si mesmo com os pobres (cf. Mt 25, 31-45)? Outra expressão conciliar que fez o seu retorno à linguagem eclesial com o Papa Francisco é a da Igreja como "povo de Deus", que desmente a hierarcologia piramidal.
6. O convite contínuo a ir para as periferias, as sociais e econômicas, mas também as existenciais. Significa uma Igreja que suja as mãos, que está com os pobres, que corre riscos, a fim de sair de si mesma e romper a tentação da autorreferencialidade. É uma Igreja que não fortalece as fronteiras, com uma atitude exclusivista, mas busca o encontro. Ela age, em suma, como o bom samaritano da parábola (cf. Lc 10, 25-37) sob a insígnia do "fazer-se próximo".
7. A renúncia ao uso retórico e político do código dos "valores inegociáveis". Por ocasião da jornada da Evangelium vitae, Bergoglio também falou da vida em termos exortativos, propositivos, sem assumir a atitude da contraposição àqueles governos que adotam procedimentos legislativos distantes dos desiderata vaticanos. É o modo de fazer que está suscitando mais desconforto naqueles católicos e naqueles prelados que desfraldavam a bandeira da única cultura cristã e das alianças políticas centradas nos valores. Parece que o Papa Francisco, segundo Faggioli, está se movendo na direção desideologizar a mensagem moral da Igreja: quando a proclamação de valores ocorre de um modo abstrato e desconectado da preocupação pastoral pelo bem concreto das pessoas a quem essa mensagem se dirige (sejam casais casados, homossexuais, conviventes não casados, divorciados em segunda união), a mensagem evangélica se torna ideológica. Esse não é apenas um problema de credibilidade para a Igreja, mas também de respeito ao texto evangélico.
Penso em episódios como o da adúltera (cf. Jo 8, 1-11), ou o do pecador (cf. Lc 7, 36-50), em que a acolhida da pessoa por parte de Jesus prevalece sobre o julgamento.
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O novo léxico católico do Papa Francisco. Artigo de Christian Albini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU