26 Março 2013
Uma melhor gestão na Cúria é necessária e é certamente possível. Uma reforma abrangente, no entanto, será um desafio real. Pode ser necessário alguém com a simplicidade de São Francisco e as competências organizacionais de Santo Inácio.
A reflexão é do jornalista e jesuíta norte-americano Thomas J. Reese, ex-editor-chefe da revista America, dos jesuítas dos EUA, de 1998 a 2005, e autor de O Vaticano por dentro (Ed. Edusc, 1998). O artigo foi publicado no sítio National Catholic Reporter, 25-03-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Enquanto os cardeais fazem as suas malas e pegam os seus aviões de volta para casa, o Papa Francisco fica com o trabalho inacabado de reformar a Cúria vaticana, algo que praticamente todos os cardeais disseram que queriam. Mas não está claro o que eles queriam dizer com "reforma". Afinal, a "reforma" está nos olhos de quem vê.
Eu faria uma distinção entre dois tipos de reforma: uma melhor gestão e uma reforma abrangente.
Grande parte dos escândalos em torno da Cúria recentemente são simples problemas de gestão que podem ser resolvidos seguindo as "melhores práticas" de empresas e governos.
Corrupção financeira: governos e corporações têm lidado com a corrupção financeira por séculos. As soluções envolvem sistemas adequados de contabilidade, regras para o conflito de interesses, licitação competitiva, transparência nas finanças e auditores internos e externos. Parte do problema aqui é que a equipe de liderança (cardeais, bispos e padres) não têm nenhuma compreensão e formação nesses campos. Eles têm que depender dos outros. Mas o problema também resulta da arrogância de pensar que a Igreja é diferente de alguma forma e não pode aprender com as práticas governamentais e empresariais.
Algumas ações já foram tomadas. O Papa João Paulo II trouxe o cardeal Edmund Szoka para modernizar o sistema de contabilidade vaticano. O Papa Bento XVI deu um grande passo em 2011 ao insistir que o Vaticano seguisse os padrões estabelecidos pela agência europeia Moneyval. Ele queria que o Vaticano constasse na "lista branca" de países bons da Moneyval. No passado, o Vaticano sempre afirmou que era único e não podia ser julgado pelos padrões de ninguém mais. A decisão de Bento XVI significa que, a cada ano, pessoas de fora irão verificar o que o Vaticano está fazendo e fornecer um relatório público.
É no Estado da Cidade do Vaticano e no Banco do Vaticano onde a reforma financeira faz mais sentido. Essas entidades fazem coisas seculares (museu, reparação de edificações, lojas etc.) para as quais as melhores práticas estão facilmente disponíveis. A Congregação para a Evangelização dos Povos também tem muito dinheiro que está sendo usado para as missões. Essa agência deveria seguir os melhores padrões das organizações não governamentais internacionais.
Improbidade sexual: a improbidade sexual não ocorre apenas na Igreja Católica, mas também ocorre em governos, empresas e nas Forças Armadas. É por isso que existem regras contra o assédio sexual, contra o sexo entre empregados e supervisores, e contra a promoção em troca de favores sexuais. As regras também não são suficientes. Deve haver oficiais de conformidade que investiguem as denúncias e façam com que as regras sejam cumpridas. Se essas afrontes se relacionarem com o trabalho, o Vaticano deve tratá-las como causas para a rescisão, e não simplesmente como pecados.
Rivalidade mesquinha: é útil que um executivo tenha subordinados que discutam entre si, de modo que ele receba uma grande variedade de conselhos. Francamente, um dos problemas dos papados de João Paulo II e de Bento XVI foi a sua falta de vontade de ouvir uma grande variedade de vozes. Mas, quando a disputa diz respeito a poder e prestígio, ela se torna disfuncional, e uma mão forte é necessária para pôr as pessoas de volta na linha. O arcebispo Giovanni Benelli, como sostituto, desempenhou esse papel no papado de Paulo VI, semelhante ao do chefe de gabinete da Casa Branca. Os cardeais tremiam na sua presença. Ele mantinha as pessoas em sintonia.
Vazamento de documentos: todo governo tem esse problema, e a maioria fracassa na tentativa de freá-lo ou de pegar os vazadores. As pessoas vazam informações por quatro motivos: por dinheiro; porque são chantageadas; porque querem constranger alguém; ou porque querem forçar uma mudança em termos de política.
Parte da solução é classificar menos documentos como sigilosos. Mas, se você fizer uma investigação, então ela precisa ser profissional. Os procuradores e juízes vaticanos aceitaram a explicação do mordomo sobre por que ele roubou e vazou documentos – ele queria reformar a Igreja e agiu sozinho. Alguém verificou o seu histórico financeiro ou seus registros telefônicos? E, no fim, ele só recebeu um tapa na mão.
A imprensa italiana está repleta de histórias sobre autoridades da Cúria que são chantageadas por improbidade sexual. Poderia ser essa uma causa de vazamento? Os jornalistas italianos estão chantageando as suas fontes?
E com relação ao relatório secreto sobre a investigação feita pelos três cardeais nomeados por Bento XVI? Você realmente acha que três cardeais com mais de 80 anos têm as habilidades de Columbo, Nancy Drew e Miss Marple [famosos detetives dos EUA]? Meu palpite é de que o seu relatório está simplesmente preenchido com o que já é de conhecimento público, mais alguns boatos e opiniões, o que o tornaria um embaraço para se publicar.
Reforma abrangente
Falar sobre reformar a Cúria é como falar sobre reformar o código tributário dos EUA. Todo o mundo o defende enquanto não o afetar.
Mesmo os membros da Cúria Romana falam sobre a necessidade de reforma, mas, para um cardeal curial, a reforma significa que ele receba mais poder e que se oponente do escritório ao lado receba menos. Para os conservadores, a reforma significa ter uma Cúria mais forte, que fale com uma só voz ao impor a visão do Vaticano sobre o resto da Igreja. Para os moderados, a reforma significa uma descentralização do poder e mais colegialidade. Em outras palavras, você não pode reformar a Cúria enquanto não souber o que você quer que ela faça.
Por exemplo, muitas pessoas falam sobre como tornar a Cúria mais eficiente. Francamente, eu sou favorável a que a Congregação para Doutrina da Fé seja mais eficiente para lidar com padres abusadores, mas a última coisa que eu quero é uma inquisição eficiente para investigar teólogos.
Minha própria receita para a reforma da Cúria se baseia na suposição de que ela deve estar a serviço do papa como chefe do colégio dos bispos. Ela deve ser organizada como um serviço civil, e não como parte da hierarquia da Igreja.
Assim, as minhas reformas começam com não tornar bispos ou cardeais como membros da Cúria. A Cúria atual está organizada como as cortes reais do século XVII, em que os príncipes e os nobres ajudaram o rei governar a nação. Esse modelo de governo é antiquado e disfuncional.
Segundo, o papado está operando como as monarquias absolutas do século XVII, em que o monarca detinha os poderes legislativo, executivo e judiciário. Os governos modernos reconhecem a necessidade de uma separação de poderes. Agências como a Congregação para a Doutrina da Fé não devem fazer as regras e, depois, agir como polícia, procurador, juiz, júri e executor ao lidar com os teólogos. Esse não é o devido processo, no sentido moderno.
O papel do sínodo de bispos também precisa ser fortalecido para prover insumos na política e na supervisão da Cúria. Nenhuma teoria política hoje deixaria tudo nas mãos do Executivo, sem um papel para uma legislatura.
Alguns argumentam que isso seria importar modelos seculares para o governo da Igreja. Tais comentários ignoram a história do papado, que está repleta de exemplos de papas que aprenderam com os governos e as organizações seculares. A tradição da Igreja não proíbe isso; a tradição da Igreja o exige.
Uma melhor gestão na Cúria é necessária e é certamente possível. A reforma abrangente, no entanto, será um desafio real. Pode ser necessário alguém com a simplicidade de São Francisco e as competências organizacionais de Santo Inácio.
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Como o Papa Francisco pode reformar a Cúria vaticana. Artigo de Thomas Reese - Instituto Humanitas Unisinos - IHU