Por: André | 16 Dezembro 2014
O que a CIA e a Gestapo têm em comum? Em alemão, o Verschärfte Vernehmung, o interrogatório intensificado. A informação foi dada nestes dias de revelações sobre os tormentos aplicados pela Central de Inteligência por um de seus ex-agentes, já aposentado e atualmente analista político: Ray McGovern. O dado também remete ao manual da polícia secreta nazista. Um modelo de técnica de tortura em que se inspiraram outros manuais da temida agência estadunidense: o Kubark ou Counterintelligence Interrogation de 1963 (serviu de experimento na Guerra do Vietnã) e aquele que foi organizado 20 anos depois, conhecido como Manual de Treinamento para a Exploração de Recursos Humanos. Longo eufemismo para manual do bom torturador. O jornal The Baltimore Sun havia publicado esse texto em 1997, o que, em parte, revela o longo caminho seguido pela CIA neste ramo. Outro especialista dos Estados Unidos, o ativista dos direitos humanos Mike Raddie, afirma: “A CIA tem praticado torturas durante décadas, desde a época do presidente Eisenhower”. Ou seja, seis anos depois da sua criação, em 1947, pelo presidente Harry Truman.
A reportagem é de Gustavo Veiga e publicada no jornal argentino Página/12, 14-12-2014. A tradução é de André Langer.
Dick Cheney, o ex-vice-presidente de George W. Bush, o mesmo que definiu o relatório do Senado “como errôneo e cheio de merda”, também deu a ordem de localizar, encontrar e destruir todos estes manuais que estavam em circulação. Em 1992, quando era secretário de Defesa, emitiu um memorando advertindo que foram criados para treinar militares latino-americanos, que continham “material ofensivo e desagradável” e que podiam deteriorar “a credibilidade dos Estados Unidos e representar significativa vergonha”. Não se podia deixar rastros. Mas tantos torturados pela CIA ou a instâncias da CIA fizeram seu plano fracassar.
A revelação inclui hoje até as vítimas entre as próprias Forças Armadas dos Estados Unidos. Existe outro programa, que se chama SERE (Sobrevivência, Evasão, Resistência e Escapamento), cujas técnicas são consideradas tormentos pelos Convênios de Genebra e pela Convenção contra a Tortura. Trata-se de um treinamento que ajuda a suportar a tortura de soldados dos Estados Unidos no caso de caírem em mãos inimigas.
David J. Morris é um ex-integrante da Marinha que passou pelo SERE quando era tenente, em novembro de 1995. Recorda-o da seguinte maneira: “Enquanto estava na escola eu vivia como um animal. Fui encapuzado, batiam em mim, estava morto de fome, me desnudaram e lavaram com uma mangueira ao ar de dezembro, até que sofri hipotermia. Num determinado momento eu não conseguia nem falar de tanto que estava tremendo de frio”.
O quarto diretor da agência, lá por outubro de 1950, o general Walter Bedell Smith, disse certa vez: “Em uma guerra, mesmo que se trate da guerra fria, é necessário contar com uma agência amoral que possa agir em segredo”. A amoralidade, no caso da CIA, nunca estava perto da ineficiência. Criada para evitar outro Pearl Harbor, não conseguiu impedir ou não quis ver a gestação do ataque às Torres Gêmeas. A lista de seus fracassos é tão longa quanto seus 67 anos de existência. Alguns são: errou a data em que a URSS teria armamento nuclear em plena Guerra Fria; também o momento em que a China ocuparia a Coreia, na década de 1950; apoiou a invasão de Cuba que terminou em estrondosa derrota na Bahía de Cochinos e inoculou a falsa notícia de que Saddam Hussein tinha armas de destruição em massa no Iraque para justificar sua queda. A lista de operações aumentaria de maneira ostensiva caso se computassem suas intervenções mais ou menos encobertas na América Latina.
O legado de cinzas (Record, 2008) é o livro mais documentado que se escreveu sobre a agência. Seu autor, o jornalista estadunidense Tim Weiner, Prêmio Pulitzer em 1988, sustenta nas primeiras linhas: “No presente volume descreve-se como o país mais poderoso de toda a história da civilização ocidental foi incapaz de criar um serviço de espionagem de primeira linha, um fracasso que atualmente representa um perigo para a segurança nacional dos Estados Unidos”. Em 2003, foi tornado público um documento do Conselho de Segurança Nacional (NSC) que revelava como principais objetivos da CIA: “pagar subornos, abrir frentes anticomunistas, subvencionar movimentos guerrilheiros, exércitos clandestinos, sabotagens e assassinatos”.
O mais velho dos manuais, chamado Kubark, não tem o nome de um ilustre agente secreto ou de uma operação exitosa de contrainteligência. É a palavra chave usada pela CIA para se autodefinir durante a Guerra do Vietnã. O mesmo ocorre com o manual publicado em 1983. Nos dois, explica-se os métodos de tortura psicológica e de violência explícita que já na década de 1960 eram empregados como técnicas e que continuam sendo usadas ainda hoje para interrogar prisioneiros. Contam-se aos milhares os militantes que na América Latina foram submetidos a essas práticas após cada golpe de Estado. Os militares que se formaram na Escola das Américas dos Estados Unidos conheciam-nas muito bem. Esta instituição, subordinada ao Departamento de Defesa, foi criada inclusive antes da própria CIA, em 1946. Estabelecida no Panamá, em 1984, foi transferida para Fort Benning, Geórgia, onde hoje é conhecida como Instituto do Hemisfério Ocidental para a Cooperação e a Segurança.
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CIA. Uma história de torturas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU