21 Outubro 2014
"Parece ficar claro, ao longo do filme, que os replicantes representam a própria condição humana. Ameaçado pela iminência do não-ser, o ser humano busca um sentido absoluto para sua relatividade temporal, procurando religar-se ao mistério que lhe deu vida e lhe trará a morte. Nesta dinâmica existencial encontra-se a própria gênese do Fenômeno Religioso, que é a tradução cultural das grandes buscas humanas por ressignificação da vida diante da morte." A observação é de Renato Ferreira Machado, doutor em Teologia, membro do Instituto Humanitas Unisinos - IHU, autor de O desencantamento da experiência religiosa em House: "creia no que quiser, mas não seja idiota", Cadernos Teologia Pública, no. 84
Eis o texto.
Como uma produção cinematográfica se torna um cult movie? Há muitas discussões sobre isso, mas, certamente, a trajetória de Blade Runner – Caçador de Andróides, de Ridley Scott, nos ajuda a compreender este conceito. Lançado em 1982, o filme dividiu público e crítica especializada entre aqueles que o consideraram ousado em sua temática e os que estranharam seu ritmo, com muitos diálogos e pouca ação. O fato é que, pouco tempo depois, com o advento do videocassete, a produção foi sendo revista e revisitada, começando a formar, assim, um grupo de fiéis seguidores de sua estética, narrativa e personagens. Para compreendermos esta dinâmica, precisamos nos reportar às origens do filme.
O sonho dos androides
O filme que chegou às telas em 1982 não nasceu de um roteiro original. Buscando inspiração para escrever um roteiro para cinema, o ator estadunidense Hampton Fancher deparou-se com o romance Andróides sonham com Ovelhas Elétricas? (Do androids dream of Eletric Sheep?), de Phillip K. Dick, publicado em 1966. A história, passada em uma Los Angeles futurista e distópica, narra os dilemas morais de um caçador de recompensas contratado pela Polícia para, segundo o linguajar do texto, aposentar androides. Proibidos de circular na Terra, em função de um motim contra os seres humanos, ocorrido décadas antes, estes androides, na visão de Dick, são em tudo semelhantes ao ser humano, tornando difícil a distinção entre um e outro. Para realizar seu trabalho, então, os caçadores de androides utilizam um expediente de testes de empatia, que revelam pequenas variações entre reações emocionais de androides e seres humanos. O problema se encontra na mais recente geração de androides que vem sendo fabricada, tão próxima ao ser humano que começa a colocar em xeque a validade destes testes. Junto a isso, o caçador de recompensas acaba se deparando com androides que, permanecendo na Terra clandestinamente por anos, acabaram assumindo identidades humanas insuspeitáveis, o que levava o ato de aposentá-los para além da simples identificação. Para o caçador de recompensas, então, seu serviço começa a parecer muito mais com assassinato de pessoas do que com remoção de robôs com aparência humana, principalmente ao se deparar com androides que expressavam sonhos e projetos de vida.
O contexto social descrito por Dick revela um planeta pós-guerra nuclear, devastado em sua fauna e flora, com sociedades multiétnicas guiadas por ideais de consumo e incentivadas a deixar o planeta para habitar em colônias extraterrestres. De certa forma, o autor situa a Terra em uma espécie de periferia social, onde só permaneceram aqueles que tem baixo poder aquisitivo, os portadores de deficiência e as forças de repressão, como a polícia. Habitar fora da Terra, por isso, é algo retratado como ideal de ascensão social. É curioso, também, que Dick coloque entre os dilemas do personagem principal a preocupação em comprar um animal de verdade: segundo a narrativa da obra, grande parte dos animais haviam se extinguido com a guerra – fala-se muito, no livro, de uma poeira que a tudo impregnava e que seria tóxica a muitas espécies. Assim, havia um discurso moral por parte da governança terrestre, de que todo habitante deveria ter pelo menos um animal de estimação, para demonstrar sua preocupação com a regeneração ecológica do planeta. Com um preço muito alto, tornando-os inacessíveis à boa parte dos habitantes remanescentes da Terra, os animais eram substituídos por clones robóticos, comprados em segredo e cuidados como se fossem verdadeiros. Rick Deckard, o caçador de recompensas que protagoniza a história, possui uma ovelha elétrica, que todos pensam ser verdadeira e se lança na missão descrita no livro com o objetivo de ter dinheiro suficiente para comprar um animal de verdade.
Assumindo esta obra como ponto de partida, Hampton Fancher começou a adaptá-la para montar um roteiro possível de ser transformado em um filme de ficção científica. Nesse sentido, cabe lembrar que o cinema estadunidense vivia uma verdadeira febre do gênero, alavancada por produções como Star Wars (George Lucas, 1977) e Alien (Ridley Scott, 1979), o que levou Fancher a buscar escrever algo nesta linha. Em seu roteiro, o autor tratou de realizar algumas adaptações que considerava importantes para que a história adquirisse um ritmo mais apropriado para um filme de ficção.
Da aridez à chuva ácida
Com a compra do roteiro de Fancher por Michael Deeley iniciou-se a difícil concretização do filme que viria a ser conhecido como Blade Runner, sendo que nem o próprio roteirista original chegaria ao final do processo. Após várias análises e discussões a respeito da viabilidade do roteiro e com a chegada de Ridley Scott para dirigir o filme, a produtora demitiu Fancher e contratou David Peoples para dar um novo tratamento à adaptação do romance de Phillip K. Dick. Nesta mudança, pelo que se sabe, surgiram algumas das grandes marcas dramáticas do filme: o título, Blade Runner – retirado de um romance de William S. Burroughs, a substituição do termo androide por replicante, a mudança do cenário árido e empoeirado descrito no livro para uma Los Angeles com permanente precipitação de chuva ácida, com toda a história sendo contada à noite, além de outros detalhes que acabaram tornando o filme quase que uma obra-gêmea do romance de Dick.
Assim, no filme de Scott, a trajetória de Rick Deckard, o caçador de androides interpretado por Harrison Ford, é recodificada ao mostra-lo como um agente aposentado, que já matara um ser humano por engano. Em sua busca pelos replicantes rebeldes, ele visitará a Corporação Tyrrel, fabricante dos androides e conhecerá o próprio criador destes seres. Lá, também, encontrará a misteriosa Rachael, androide com memórias implantadas, que acredita ser humana. É no grupo de replicantes, porém, que se encontrará a grande chave de leitura do filme. Se no livro os androides buscam ser aceitos socialmente, adaptando-se aos hábitos e padrões humanos, no filme, há uma motivação mais específica e paradigmática para traze-los de volta à Terra. Liderados por Roy Batty, interpretado por Rutger Hauer, os replicantes fugitivos estão em busca de seu criador, para que este lhes responda por que todos os androides são automaticamente desativados. Mais do que isso: os replicantes procuram pelo criador na esperança que este reverta a desativação, possibilitando-lhes a vida eterna. Este Leitmotiv confere à produção de Ridley Scott um profundo conteúdo teológico.
Quando as máquinas buscam seu fabricante
Parece ficar claro, ao longo do filme, que os replicantes representam a própria condição humana. Ameaçado pela iminência do não-ser, o ser humano busca um sentido absoluto para sua relatividade temporal, procurando religar-se ao mistério que lhe deu vida e lhe trará a morte. Nesta dinâmica existencial encontra-se a própria gênese do Fenômeno Religioso, que é a tradução cultural das grandes buscas humanas por ressignificação da vida diante da morte. Nesse sentido, pode-se perceber claramente no filme, os três elementos que compõem este fenômeno: a religiosidade, a fé e a religião.
O primeiro, que se refere à grandes perguntas existenciais que o ser humano naturalmente vai se fazendo, se encontra na própria busca empreendida pelos replicantes para que sua desativação seja revertida. Além, disso, na medida em que Rachael assume sua condição de androide, ela percebe que precisa fazer novas perguntas, uma vez que as respostas nas quais acreditava já não fazem mais sentido. O ápice da religiosidade, porém, se encontra no diálogo final entre Roy Batty, o líder dos replicantes e Rick Deckard, seu perseguidor: quando sente que o processo de desativação começou, Batty declara sua desolação diante de seu fim. Ele relata, maravilhado, os fatos incríveis que já testemunhou e conclui dizendo que tudo aquilo ficará perdido, como lágrimas na chuva. Nesta mesma sequência podemos identificar, também, a dimensão da fé, pois ali se dá a conversão de Rick Deckard. Tendo sido sempre um perseguidor e matador de replicantes, ele se dá conta que a busca que seus supostos inimigos faziam era a mesma que qualquer um faz: a busca por respostas essenciais e sentido existencial. De certa forma, o personagem interpretado por Harrison Ford passa por um processo semelhante ao de Paulo: feroz perseguidor de cristãos, muda completamente sua visão ao ficar frente à frente com o crucificado-ressuscitado, que o questiona sobre suas certezas. Além disso, o filme retrata Roy Batty como uma espécie de messias replicante, capaz de fazer seguidores, formando uma comunidade com os outros androides que ele liderava e de empreender um sacrifício final em nome do que acreditava. Visualmente, isso se traduz por dois elementos marcantes: ao sentir o início da desativação, Batty atravessa um prego em sua mão, para que, sentindo dor, não entrasse em inércia. E, na perseguição ao caçador, ele captura uma pomba banca e a mantém em suas mãos até expirar. Ao ser solta, a pomba alça voo e a câmera mostra que, enquanto ela sobe aos céus, as nuvens se abrem, mostrando uma luz solar que se faz ausente durante todo o filme. O terceiro elemento, a religião, se dá por trás da quarta parede, que separa o filme do público. E, com isso, voltamos ao início do texto.
Blade Runner – um cult movie
A síntese audiovisual realizada por Ridley Scott sobre a obra de Phillip K. Dick revelou-se visionária em vários aspectos, assim como a obra literária original. Discussões como bioética, globalização, preconceito e alienação cultural e religiosa se encontram lá com trinta ou quarenta anos de antecedência – se considerarmos filme e livro, respectivamente. Há questões próprias do filme, porém, que acabaram deixando marcas estéticas específicas que se tornaram tendência. Uma delas se encontra na arquitetura: quando Ridley Scott pensou na estética da metrópole futurista que era a Los Angeles do filme, resolveu misturar o estilo do film noir da década de 1940, com elementos robóticos e estruturas eletrônicas aparentes. Esta concepção acabou influenciando a estética urbana pós-futurista assumida em várias construções contemporâneas. Outro aspecto bastante relevante é o fato do filme mergulhar seu espectador em um ambiente cyberpunk, mesclando o niilismo do movimento punk – nascido na Inglaterra no final da Década de 1970 – com a projeção de componentes eletrônicos de comunicação, transporte e lazer integrados à paisagem. Além disso, sempre é bom lembrar que, na metade final da Década de 1980, o filme era exibido nas Sessões da Meia-Noite do antigo Cine Bristol, sempre com uma plateia fiel e vestida à caráter que, após a projeção, realizava um debate sobre a obra. E, como todo mundo sabe, foi deste filme que a banda punk portoalegrense Os Replicantes tirou o seu nome.
Blade Runner é um dos filmes exibidos na programação do XIV Simpósio Internacional IHU: Revoluções tecnocientíficas, culturas, indivíduos e sociedades - A modelagem da vida, do conhecimento e dos processos produtivos na tecnociência contemporânea.
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Lágrimas na chuva. Revisitando Blade Runner - Instituto Humanitas Unisinos - IHU