Por: Jonas | 20 Outubro 2014
O Evangelho não expressa uma moral codificada. Parte da teologia moral cristã retomou do estoicismo a concepção do matrimônio como instinto humano, “segundo a natureza”. Porém, tal enunciado corre o perigo de se tornar um “presente envenenado” que a antiguidade deixou como herança ao cristianismo, caso a referência conceitual à natureza (“cujo sentido, na realidade, não é totalmente unívoco”) obscureça a fonte própria e original da visão cristã sobre a realidade do matrimônio. É o que pensava (e escrevia) o teólogo católico Joseph Ratzinger, futuro Bento XVI, pouco depois do final do Concílio Vaticano II. Em meio ao debate e as discussões que acompanham o Sínodo sobre a Família, com bandeiras de jornalistas militantes que assediam os padres sinodais com a finalidade de desmascarar seus planos para mudar a “doutrina sobre o matrimônio de sempre”, é revelador voltar a ler as páginas que escreveu o teólogo bávaro sobre o matrimônio e a família, em seus resumos conciliares, que foram reeditados na França, em 2011, por Artége (J. Ratzinger, “Mon Concile Vatican II”, págs. 236-239).
Fonte: http://goo.gl/y7hl8F |
A reportagem é de Gianni Valente, publicada por Vatican Insider, 16-10-2014. A tradução é do Cepat.
As considerações do jovem Ratzinger fazem parte das análises que ele mesmo aplicou na “Gaudium et spes”, a Constituição conciliar pastoral sobre a Igreja no mundo contemporâneo. Já então, a avaliação de Ratzinger sobre aquele texto conciliar era bastante crítica. No esquema elaborado durante os trabalhos sinodais havia criticado o ingênuo otimismo com o qual se confundia a esperança cristã e o entusiasmo pelo progresso, assim como a escolha de uma linguagem ética universal, que tinha uma função quase “ornamental” ao lado das referências bíblicas e evangélicas. Por outro lado, após a aprovação do documento, nos parágrafos que o futuro Papa dedicou ao matrimônio e a família a avaliação negativa aparece ao revés. Elogia-se a Constituição, porque sugeriu qual é a fonte original da visão cristã sobre essas realidades, emancipando-se das heranças adquiridas dos tempos do cristianismo primitivo. Segundo Ratzinger, os conteúdos da “Gaudium et spes” tornam possível uma “nova ancoragem” da moral católica em relação ao matrimônio e a visão sobre a condição humana comunicada no Evangelho, libertando-a das “formas intrínsecas” que até então prevaleciam na teologia moral.
A argumentação de Ratzinger, como sempre, é férrea e não dá nada por descontado. O Evangelho, explica o teólogo alemão, “não contém uma moral detalhada, mas, sim, apenas uma série de imperativos concretos” e “uma orientação nova e fundamental que deriva da antítese entre lei e graça”. Exatamente o constante chamado evangélico à necessidade da graça revelada, a partir de um ponto de vista cristão, os limites de toda moral que se apresente como regra auto-fundacional e autossuficiente para a salvação.
Concretamente, no cristianismo das origens a cristalização da ideia moral “se inspirou em grande medida nos modelos contemporâneos do pensamento moral e, em particular, na ética estoica”. Foi assim que chegou à doutrina moral católica o reconhecimento do matrimônio como realidade “segundo a natureza” (“kata physin”), cujo objetivo principal é a procriação e a propagação do gênero humano. O estoicismo reconhecia na natureza divina “o sentido divino universal”. Para a visão estoica, a virtude consistia em viver segundo a natureza do mundo, segundo o princípio de conservação. E os homens tinham que escolher sempre o que estava de acordo com a sua natureza de seres racionais.
O reconhecimento da ordem natural do matrimônio e de sua principal finalidade procriativa estavam claramente em sintonia com a novidade do Evangelho. Porém, com o “predomínio” destas duas “categorias” (assim definidas por Ratzinger), assumidas como eixos da teologia moral católica e da doutrina canônica, o chamado mecânico à procriação e a referência conceitual à natureza acabaram se transformando em um “duplo presente envenenado” que a antiguidade deixou como herança à moral católica sobre o matrimônio. A diminuição exclusiva baseada em dois critérios do estoicismo acabou ocultando a própria fonte da visão cristã sobre a realidade da união conjugal.
Segundo Ratzinger, o tratamento dado ao matrimônio na “Gaudium et spes” parecia imune, finalmente, aos antigos “venenos”. Nele, indicava o teólogo, “não aparece nem a locução do fim primário da procriação, nem a da ética matrimonial ‘segundo a natureza’”. No texto conciliar, Ratzinger via surgir uma “concepção personalista” da dinâmica matrimonial e não deixou de apontar seus limites intelectuais: citando os bispos africanos e as narrações das situações concretas que eram vividas em seu continente, Ratzinger advertia que também a nova visão “personalista” sobre o matrimônio corria o risco de “desconhecer o sentido essencialmente social do próprio matrimônio” e de cair, de outra forma, dentro de “construções alheias tanto à realidade como à Revelação”.
Ao mesmo tempo, segundo Ratzinger o documento tinha o mérito de apontar a consciência, a Palavra de Deus, a Igreja docente e a responsabilidade social advertida frente aos filhos e a toda a comunidade humana como fatores a partir dos quais poderia surgir uma visão moral sobre o matrimônio própria da experiência cristã. O traço característico desta visão cristã sobre a família e o matrimônio já não se identificava com a também legítima e louvável ascensão de visões e conceitos já codificados por culturas ou sistemas filosóficos. A teologia moral católica podia, finalmente, ver o amor conjugal mediante o próprio paradigma das Sagradas Escrituras. “Não é a mesma coisa se perguntar se as ações de um indivíduo correspondem à categoria do “natural” - escreveu Ratzinger - ou se perguntar se correspondem à responsabilidade frente aos homens com os quais a comunidade matrimonial entra em relação, que se mostram responsáveis frente à Palavra de um Deus pessoal, que conferiu como modelo para o amor dos esposos a perfeição de seu amor, perfeição revelada no amor de Cristo pela Igreja”.
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O jovem Ratzinger, o matrimônio e o “presente envenenado” do estoicismo ao cristianismo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU