Por: Caroline | 19 Mai 2014
“Nenhum outro setor da sociedade ganhou mais privilégios a nível global e local do que as grandes empresas - sejam nacionais ou transnacionais. Apesar das incipientes tentativas de autorregulação voluntária e a responsabilidade social empresarial, a concentração e o exercício de poder das corporações joga um papel prejudicial para o meio ambiente e a preservação de recursos estratégicos em muitas regiões do planeta”, é o que aponta Eduardo Anguita, em artigo publicado por Miradas ao Sur, 11-05-2014. A tradução é do Cepat.
Fonte: http://goo.gl/HAFFvM |
Eis o artigo.
Há um mês, Eduardo Galeano foi o convidado de honra para inaugurar a Bienal do Livro de Brasília. No auditório do Museu Nacional, uma obra desenhada pelo arquiteto comunista Oscar Niemeyer, o grande escritor escolheu compartilhar com o público o “Agosto 30”, um conto seu dedicado aos presos desaparecidos.
“Desaparecidos: os mortos sem tumba, as tumbas sem nome./E também:/os bosques nativos/ as estrelas na noite das cidades/ o aroma das flores,/ o sabor das frutas,/ as cartas escritas à mão,/ os velhos cafés onde havia tempo para perder tempo,/ o futebol na rua,/ o direito a caminhar,/ o direito a responder,/ os empregos seguros, as aposentarias seguras,/ as casas sem grades,/ as portas sem fechadura,/ o sentido comunitário/ e o sentido comum”.
Aplausos, lágrimas. A Bienal foi realizada meio século após o golpe militar no Brasil. O mesmo ano de 1964 no qual Dilma Rousseff, com 17 anos, adentrava em uma organização revolucionária marxista, como muitos que logo formaram o Partido dos Trabalhadores que está no governo há 12 anos e que, no próximo mês de outubro, irá colocar em jogo essa continuidade em uma nova eleição livre.
Galeano falou, como sempre, com humor e franqueza. E teve a ideia de dizer que na atualidade seria incapaz de ler “As veias abertas da América Latina”, sua obra-prima, publicada em 1971 quando tinha apenas 31 anos e era frequentador do Café Brasileiro na Cidade Velha de Montevidéu, o mesmo que ainda hoje recebe jornalistas e escritores com o mesmo aprumo de sempre. Porque Galeano continua o mesmo e não se espanta ao dizer que essa prosa de esquerda – a da Veias Abertas – é chatíssima. Por estes dias, um mês depois, essa frase e outras, todas entre aspas, para dar maior verossimilhança, foram parar em manchetes e portais: que teriam que colocá-lo em um hospital, pois seu corpo não aguentaria esse texto. Muito pode ser aprendido com a sinceridade do poeta. De sua necessidade de ser autêntico e de, se for aceito o convite, dialogar com aqueles anos revolucionários a partir de um presente ao menos incerto para sonhar com mudanças ou para aprofundar os que ocorreram.
As Veias Abertas narra o genocídio dos incas e os astecas. Está contando, entre outras tristes histórias, a de Francisco Pizarro que mandou capturar ao inca Atahualpa em Cajamarca (Peru) e como os conquistadores prometeram a ele a paz, caso entregasse previamente toneladas de ouro e de prata. O inca cumpre. Entretanto, logo foi condenado a morte. Assim, a própria história confessional e monárquica espanhola registra que o Atahualpa aceitou o batismo cristão e assim como mudar seu nome pelo de Francisco, o mesmo do chefe dos invasores. Após a cerimônia de batismo, em 1533, o inca foi sufocado através de um desprezível estrangulamento. O mesmo método criminoso com o qual Francisco Franco mandava executar os submetidos, não mais nas índias ocidentais dos reis católicos, mas na própria península. Através do estrangulamento foi executado Puig Antich em 1974, enquanto o tirano murmurava não lhe restou muito tempo de vida, mas queria perpetuar-se através de sua obra. Assim eram os anos setenta, assim eram os tempos nos quais Galeano paria As veias Abertas. Alguns anos antes, outro poeta, Héctor Roberto Chavero, decidia mudar de nome por vontade própria, e se batizou como Atahualpa Yupanqui: “Eu galopava no sangue dos 300 anos da América”.
Cinco séculos iguais
Cajamarca, onde o inca Atahualpa foi tomado como prisioneiro, a Mineradora Yanacocha faz, desde 1992, a exploração da maior mina de ouro da América Latina. O capital majoritário é da Newmont Mining Corporation, que tem sede no Colorado, Estados Unidos. Assim como os golpes de Estado militares se espalhavam como o vento nos anos sessenta e setenta pelo continente, no início dos noventa, os Andes foram inundados pelos códigos das mineradoras desenhados na América do Norte. Quase calcados nos textos. Tanto no Peru, como no Equador, na Bolívia, na Argentina e no Chile, de forma que os grandes benefícios fiscais, assim como toda a logística eram para que os metais fossem para os países centrais. Em 1992, a onça de ouro valia cerca de 100 dólares. Vinte anos depois vale três vezes mais. A pergunta é: como está agora a Cajamarca onde morreu Atahualpa e onde a Newmont Mining tomou posse do ouro nos neoliberais anos noventa? A resposta foi escutada esta semana em Lima, onde é realizada a reunião bianual da Comissão Econômica para América Latina e o Caribe (Cepal) e, obviamente, fere a qualquer um que tenha um sentimento mínimo de igualdade: Cajamarca está entre as cinco regiões mais pobres do Peru. Os 55% do um milhão e meio de habitantes é pobre. Desde já a mineradora não é a principal ocupação, contudo dessa riqueza não fica nada. De acordo com a imprensa do sistema, a pobreza se intensificou porque os “anti-mineradora” sabotaram a Newport Mining e seu projeto Conga, mantido pela comunidade de Cajamarca. As autoridades do governo de Ollanta Humala dizem que por causa dos protestos já haverá mais turismo em Cajamarca. É possível que As Veias Abertas sejam de uma tristeza sem igual. Mais cruel ainda é a colonização cultural.
A desigualdade
Também foi apresentado o documento “Pactos para a igualdade: rumo a um futuro sustentável”, com o qual Alicia Bárcenas fez a abertura, na capital do Peru, na última segunda-feira dia 05, o encontro que durou até sexta-feira, dia 09, e que contou com a presença de representantes de 40 países. Os 27,9% dos habitantes da América Latina e do Caribe são pobres, de acordo com os índices da Cepal, uma entidade que segue na defesa desta região como a mais desigual do planeta ainda que a mais pobre seja o continente africano.
Mesmo que os preços dos produtos primários se mantenham favoráveis no mercado internacional, o crescimento do PBI da região está estancado desde 2011.
A mexicana Bárcenas advertiu que há um “cenário externo muito mais problemático: hoje a América Latina não é a mesma de 2010 e 2012, pois está enfrentado uma encruzilhada muito complexa, frente um cenário externo muito mais problemático, frente à fase menos dinâmica do ciclo e com problemas de sustentabilidade ambiental”. A crise financeira que eclodiu nos Estados Unidos e na Europa em 2008 e 2009 acentuaram os processos de desregulação, de enfraquecimento dos Estados dos países centrais.
Ao mesmo tempo, cresceram os chamados refúgios fiscais nos quais as grandes multinacionais abatem uma parte crescente de suas transações comerciais e financeiras para pagar menos impostos e controlar uma menor atividade econômica. Ainda que a China tenha aumentado seus vínculos com a América Latina, isso não representa uma matriz diferente da que aquela que vincula o continente às multinacionais norte-americanas e europeias. O crescimento foi extraordinário na última década, na atualidade chega aos bilhões de dólares. Quase 70% dessa relação comercial ficam nas mãos do México e Brasil, que têm um equilíbrio entre exportações e importações. Ambos os países vendem para a China algum tipo de produtos industrializados. De muito mais longe, em terceiro lugar, está a Venezuela, que vende petróleo e compra produtos industrializados. Em quarto lugar está a Argentina, compra da China produtos industrializados, desde leds – ou partes, para as montadoras da Terra do Fogo – até material ferroviário. A China faz investimentos diretos na região e propõe assinar um tratado de livre de comércio para aprofundar os vínculos. Está claro que com a atual equação um convênio desse tipo deixaria uma grande parte da América Latina sem perspectivas de sair de uma economia primária que deixa bons saldos comerciais, com capacidade de financiar o Estado sem entrar na espiral de dependência financeira dos bancos privados e públicos internacionais. A contrapartida é a que posterga a industrialização, logo, a soberania.
Propostas
A Cepal, neste documento, destaca que nem tudo se deve a fatores externos. A economista mexicana explicou que “apesar do esforço em fazer políticas sociais muito ativas são necessárias outras para reduzir a informalidade no emprego. Há classes médias emergentes que demandam segurança, transporte, educação e saúde, assim tiveram mais receita em suas casas, contudo da porta para fora fica o desafio do Estado em conceder melhores bens públicos”.
O texto completo apresentado por Bárcenas é algo mais curto do que As Veias Abertas. Tem 400 páginas com material de diagnóstico e, como a Cepal costuma fazer, com um final propositivo, tão aberto como difícil de concretizar. Com base na proposta da realização de pactos no interior de cada nação e também nos âmbitos supranacionais. Dos sete pactos enumerados, o primeiro é “o pacto para uma fiscalização com vocação de igualdade” destinado a assegurar a estabilização macroeconômica contracíclica, apoiar o crescimento e contribuir para a redistribuição da renda disponível: “O pacto fiscal não é um pacto, mas o pacto a partir do qual os demais pactos se tornam financeiramente viáveis e que vincula de modo mais forte as obrigações e os benefícios da sociedade. Além disso, o pacto fiscal é uma das chaves para construir uma institucionalidade estatal mais robusta e com maior capacidade de incidir para transformar as estruturas produtivas e sociais da sociedade”.
Este enunciado põe em apuros boa parte dos dirigentes políticos e empresariais da região, incluindo a Argentina, evidentemente. Ainda que tenham melhorado a arrecadação e o fundo de programas de inclusão social desde 2003 até a atualidade, Argentina tem três décadas de democracias sem um debate profundo nem no Congresso nem o Executivo sobre como fazer impostos progressivos – para que paguem mais aqueles que mais ganham – nem como fazer baixar o coeficiente de impostos diretos (o IVA, imposto sobre valor agregado, a nível nacional, e a renda bruta, a nível das províncias) e aumentar os indiretos (lucros e propriedades pessoais), centrando nas pessoas e não nas sociedades para evitar as manobras de esquiva e evasão. Por sua vez, é impossível otimizar a arrecadação de impostos e deduções derivadas do comércio exterior sem mudanças drásticas nos organismos de impostos e da Aduana, assim como um controle dos portos, a grande maioria concessionada a atores privados.
O segundo convênio levantado pela Cepal é para o investimento, a política industrial e as finanças, inclusive. Destaca os baixos níveis de investimento na região que limitam o crescimento sustentável a médio e longo prazo. A redução do investimento público adotado para enfrentar a crise da dívida durante os anos oitenta e noventa que provocou um grande déficit de infraestrutura.
Logo, aborda o desafio da igualdade no mundo do trabalho. Persiste uma alta heterogeneidade salarial. Informalidade, brechas de gênero e de etnia no acesso ao emprego são parte do mapa do trabalho latino-americano. Convivem trabalhadores de empresas com alto coeficiente tecnológico, geralmente filiais de multinacionais, com setores excluídos de todos os direitos.
Em quarto lugar, coloca o desafio dos serviços públicos. Os pactos enunciados como quinto e sexto lugares são os de sustentabilidade ambiental e a governança dos recursos naturais. Levados a sério, ambos os temas colocam a mineração a céu aberto e as técnicas de fracking no tapete. As multinacionais mineradoras e pretoleiras não parecem dispostas e realizar investimentos se os governos da região assumirem este desafio como compromisso.
O texto, nisto, é central. Apenas um parágrafo para ilustrar a magnitude do desafio: “Na competição entre países para atrair mais investimento na exploração dos recursos naturais, foram implementadas políticas que às vezes reforçaram o poder dos investidores e das grandes corporações mediante a desregularão, a liberalização comercial e financeira e a redução de impostos e isenções fiscais, e debilitaram o rol do Estado e sua capacidade para promover a governança dos recursos naturais. Estas regras do jogo levaram a resultados pouco desejados, como a apropriação de terras sem levar em conta os ecossistemas, a extração intensiva de minerais e a exploração dos mares e outros recursos naturais com um decorrente aumento das concentrações de recursos naturais em grandes corporações transnacionais, especialmente nos setores da mineração, pretoleiro, madeireiros e pesqueiros. Nenhum outro setor da sociedade ganhou mais privilégios a nível global e local do que as grandes empresas - sejam nacionais ou transnacionais. Apesar das incipientes tentativas de autorregulação voluntária e a responsabilidade social empresarial, a concentração e o exercício de poder das corporações joga um papel prejudicial para o meio ambiente e a preservação de recursos estratégicos em muitas regiões do planeta”.
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Os desafios abertos da América Latina - Instituto Humanitas Unisinos - IHU