Por: Jonas | 08 Mai 2014
“Já não é o homem que dá sentido à tecnologia, mas a tecnologia ao homem, e passaremos de uma tecnologia feita pelo homem a um homem feito pela tecnologia”, afirma Andrés Herrero, autor de “La felicidade tecnológica: de un capitalismo sin futuro a un futuro sin futuro”.
A entrevista é de Miguel Ángel Llana Suárez, publicada por Rebelión, 07-05-2014. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Por que esse título?
Porque se atribuiu à tecnologia o papel de nos fazer felizes e nós estamos exigindo mais dela do que de nós mesmos. A missão da tecnologia é ampliar nossas possibilidades vitais, facilitar-nos a existência e nos trazer comodidade e bem-estar, mas não conformados com isso, pretendemos que preencha-nos a vida, organize e dê um sentido a ela, à custa de sacrificar, em tudo ou em parte, nossa liberdade.
Qual é o tema do livro e o que o incentivou a escrevê-lo?
Queria comprovar o quanto havia de verdade na tese do filósofo francês Jacques Ellul, de que a tecnologia se tornou uma força autônoma que cresce e se desenvolve independente da vontade do homem.
E a que conclusão você chegou?
A de que a tecnologia não possui vontade, nem aspirações que não sejam humanas, nem tampouco se rebelou contra o seu criador, mas, sim, foi este que, conduzido por sua vontade de domínio e possessão, contagiou-a com todos os seus desequilíbrios e loucuras.
A felicidade pode ser tecnológica?
A tecnologia está se tornando a droga mais poderosa, jamais conhecida, e para muitos a única felicidade ao seu alcance, com a vantagem acrescida de contribuir com uma gratificação imediata, que se pode comprar.
A felicidade tecnológica opera como sucedâneo daquilo que antes nos era proporcionado por nossos semelhantes, que ao se transformarem em competidores, tornaram-se perigosos, desse modo, quanto mais longe deles, melhor...
O capitalismo nos obriga a satisfazermos a nós próprios, algo que sem a tecnologia não teria sido fácil, já que a tecnologia com sua prodigiosa capacidade para satisfazer todas as nossas necessidades, desde a comida até a diversão, tornou-se a aliada indispensável para conseguir implantar, em escala global, seu modelo individualista de sociedade.
A tecnologia moderna tem muito de masturbação solitária. Nossa vida transcorre diante de uma tela. O frente a frente se transformou em contatos virtuais. Da mesma forma como estreitamos os laços com a tecnologia, afrouxamos com aqueles que nos rodeiam, acostumando-nos a aproveitar deles como nossos aparelhos. Abrimos mão de nossos congêneres com a mesma facilidade em que descartamos nossos aparelhos obsoletos. As máquinas nos trazem mais felicidade que os humanos, e antes nos separarmos de nossos filhos, ou de nossa parceira, do que da televisão ou do celular... e se é o caso aliviar carências afetivas, contamos com as redes sociais e os amigos de um click... O que mais podemos pedir?
O que a tecnologia representa para você?
A tecnologia faz parte de nós mesmos e é nossa maneira de estar no mundo. Não é, pois, um elemento externo, alheio, mas, sim, orgânico, que metabolizamos e assimilamos em um longo processo de adaptação. Integra-se em nós da mesma forma que nós a ela.
A tecnologia configurou as bases materiais de cada sociedade histórica humana, desde a tribo mais remota até o estado mais moderno. Não existe sociedade humana alguma, por mais primitiva que seja, sem tecnologia. A linguagem é uma tecnologia. Por isso, pretender escapar ou renunciar a ela, é uma quimera.
A tecnologia se tornou nossa segunda natureza e muito rápido a primeira. Deixou de operar em um nível privado para passar a um nível coletivo. Se até agora era a natureza que modificava o ser humano, no futuro será a tecnologia a encarregada disso. Trocamos os papéis e já não é o homem que dá sentido à tecnologia, mas, sim, a tecnologia ao homem. Estamos a ponto de passar de uma tecnologia feita pelo homem, a um homem feito pela tecnologia; de modelar nosso ambiente, para modelarmos a nós próprios... contudo, o problema é: de acordo com que padrão faremos isso?
Porque falar de tecnologia é falar de interesses, e quando o particular se impõe ao geral, a sorte está lançada. O exemplo nós temos bem próximo. Do mesmo modo em que tratamos nosso planeta, de forma não sustentável, mas suicida, não vejo razão alguma para pensar que nós teremos sorte melhor do que ele, nem me estranharia que uma tecnologia de domínio como a nossa, acabasse nos transbordando e nos asfixiando.
Você se alinha com os tecnófilos ou com os tecnófobos? Critica a tecnologia ou apenas a sua má utilização?
Discordo tanto do fanatismo de seus detratores tenazes, como de seus partidários irreflexivos, porque penso que ambos se enganam na mesma proporção. Nem estamos fatalmente determinados pela tecnologia, sem que possamos nos defender diante dela, nem a tecnologia é um mero instrumento que podemos manejar livremente, a nosso bel-prazer. O razoável seria que nos concebêssemos coletivamente, não empresarial e nem militarmente, o tipo de tecnologia que necessitamos, ao invés de desenvolvermos tecnologias que não podemos controlar os seus efeitos, como a nuclear, a biotecnologia ou a nanotecnologia.
Entretanto, mais do que como força autônoma, eu qualificaria a tecnologia como força descontrolada. Não é a mesma coisa um carro sem freios e um carro que conduz a si mesmo, que decide aonde quer ir. O primeiro é real, o segundo absurdo.
Cabe lembrar que a tecnologia dominante na sociedade é sempre a tecnologia da classe dominante.
No entanto, independentemente disso, a responsabilidade por ela corresponde a nós, e com a mesma firmeza que proibimos os comportamentos humanos prejudiciais, devemos invalidar os desenvolvimentos tecnológicos nocivos como a bomba atômica, a cadeira elétrica ou os transgênicos, sem nos esquecermos das indústrias contaminantes ou dos paraísos fiscais.
A tecnologia não é um cheque em branco, do qual podemos dispor da forma como bem entendemos, mas ao ser uma força que emana do homem, na qual este projeta sua vontade e materializa suas ambições, nunca poderá ser neutra, inócua ou inocente. Por sua condição dinâmica e sua enorme plasticidade, a tecnologia nunca será um meio, a não ser que alguém considere que seu coração ou os seus rins são. Podemos manejá-la até certo ponto, mas sem esquecer que ela não apenas obedece ao que lhe é ordenado, mas também o que não está no script, porque a tecnologia, assim como a natureza, possui suas próprias leis e estabelece um marco que nos condiciona na hora de atuar.
Há tempo, Ellul e McLuhan formularam suas leis:
- Para que a tecnologia sirva-lhe, por sua vez, você deve servi-la;
- Todo avanço em um campo supõe um retrocesso em outro
- Ainda que se tente minimizar, a parte negativa não pode ser separada da benéfica;
- Ao alcançar o ponto crítico, suas vantagens se invertem...; etc.
Como você avalia a oposição natureza/tecnologia?
Tão artificial e gratuita como a oposição homem/natureza, fruto inevitável de nossa incapacidade para viver e respeitar, para produzir e compartilhar.
Não deixa de ser um cruel paradoxo que quanta mais tecnologia se tenha, mais seja preciso trabalhar...
Outro castigo que não é a tecnologia que nos impõe, mas, sim, nossos semelhantes. Também temos mais riquezas, alimentos e bens do que nunca e, no entanto, mais pessoas passam fome, carecem de rendas e teto, etc.
Condenaremos a tecnologia por reduzir o esforço que subsistir nos requer? Nós a acusaremos por facilitar a nossa existência? Ou, então, desejamos estar permanentemente ocupados, produzindo, sendo que as máquinas podem fazer as tarefas mecânicas, repetitivas e penosas melhor do que nós? Seria um disparate. O fato de haver multiplicado o número de desempregados é culpa nossa, dos humanos, que repartimos muito mal o trabalho e as riquezas, não das máquinas.
O capitalismo fez da tecnologia seu braço armado e seu capataz, aumentando exponencialmente o peso do poder sobre as pessoas, seu grau de domesticação, dependência, manipulação e exploração. As máquinas nos controlam com maior precisão que nossos amos.
Contudo, embora a tecnologia seja poder, não é o poder. O poder reside nos escritórios, não nos circuitos integrados; nas elites e não nos bits. Que ninguém se engane: a tecnologia não é o inimigo.
Cito textualmente: “A produtividade cresce em menor medida que a nossa ambição”... Por acaso, carregamos incorporado no sangue competir, devorar, chegar ao mais alto, pisar nos demais para ser mais que eles, como uma espécie de gene maligno impresso em nossa natureza, que não podemos extirpar?
Embora em nós coexistam todos os tipos de tendências, o capitalismo fomenta, potencializa e recompensa o pior do homem: o seu egoísmo, a vontade de poder, a cobiça, o engano, o abuso e a falta de escrúpulos.
Como você definiria o capitalismo?
Como um sistema de exploração mais científico do que os anteriores, que se vale de mecanismos impessoais como o mercado, a competitividade, a eficiência e a produtividade para intensificar a depredação ao máximo e extrair até a última gota a utilidade de cada ser, vivo ou inanimado.
A “Felicidad Tecnológica” disseca o capitalismo, mostrando que é um sistema intrinsecamente perverso que não tem regulamentação, mas também examina com autocrítico que o comunismo e o anarquismo falharam, com o objetivo de construir um novo modelo, síntese de ambos: o ‘equissocialismo’, baseado na democracia horizontal, no socialismo e na equidade, em que não seja possível acumular nem dinheiro, nem poder, e em que a tecnologia se subordine às demandas e necessidades coletivas.
Você não acredita na democracia representativa?
É claro que sim. Acredito que representa fielmente os interesses dos que mandam. O terreno político de jogo está minado desde a origem.
O 0,01% da humanidade é dona do mundo: de tudo e de todos. Assim como é proprietária da terra, dos bancos e das fábricas, também é do estado, da política, das eleições, das leis, da justiça... Essa oligarquia manipula tudo e nós, os demais, somos apenas seus comparsas. A riqueza governa, embora não seja o governo. E sem igualdade econômica não é possível a democracia.
Não vivemos numa democracia, nem existem os direitos humanos: se você tem dinheiro, tem comida, teto, educação e saúde, caso contrário, morre de fome e se vê na rua. Apenas se tem os direitos que são conquistados e defendidos; o resto é papel molhado, contos de fadas.
A única coisa pior do que sermos enganados, é auto-enganarmos. Os direitos humanos não são mais do que o ópio do povo.
Vamos conversar sobre o ‘equissocialismo’. O que é?
Para explicá-lo, voltarei brevemente ao passado.
O estado é um aparato de poder. Centralizar e concentrar as energias da sociedade nele gera inevitavelmente desigualdade. Desde a época dos faraós e inclusive antes, passando pelos gregos, romanos, feudalismo, capitalismo e comunismo, sempre houve uma elite por cima e uma maioria submetida por baixo. Essa foi a tônica universal de funcionamento. Do mesmo modo no sistema político: império, reino, república, feudalismo, capitalismo, comunismo ou democracia, o que não muda é o regime de dominação. O povo nunca foi soberano, mas, sim, sempre foi oprimido: escravo, vassalo, súdito ou assalariado, esse foi o seu papel.
Felizmente, pela primeira vez na história, podemos rastrear a trajetória completa da humanidade, para analisar no que falhamos como espécie, para não repetir os erros do passado, superar fórmulas fracassadas, como o capitalismo, o comunismo ou o anarquismo, e nos concebermos e nos organizarmos socialmente de outro modo, em pé de igualdade, vencendo os dois obstáculos que até o momento nos impediram: o poder e a riqueza, ou, o que é o mesmo, a fatal combinação das hierarquias com a propriedade privada.
Rejeito os políticos profissionais, os partidos políticos e o estado, e advogo por estruturar a sociedade em comunidades pequenas de até 50.000 habitantes, com ampla autonomia e meios de produção socializados, trabalhando em regime cooperativo.
Divisão em comunidades que responde à necessidade de nos organizarmos socialmente em rede, de forma horizontal, participativa e, ao mesmo tempo, eficaz.
Como podemos alcançar a sociedade ‘equissocialista’ que você defende?
Obviamente para chegar a uma sociedade diferente temos que nos organizarmos de forma diferente.
A segunda premissa é que temos que batalhar pela mudança em todos os terrenos: institucional e cidadão, político e trabalhista, econômico e midiático, cultural e educativo, etc.
E para isso é preciso organizar um Movimento Equissocialista que canalize todas as energias na mesma direção. Estamos falando de um projeto muito mais amplo que um partido em seu sentido tradicional, que integre em seu seio o ativismo nas instituições com o da rua e dos trabalhadores, quebrando a dicotomia representantes/representados, chefes/subordinados.
Seu funcionamento interno deverá ser totalmente transparente, as decisões importantes adotadas majoritariamente (será implementado o voto pela internet), todas as candidaturas individuais, e todos os cargos revogáveis, não acumuláveis e nem reelegíveis, para impedir a perpetuação nos mesmos e a constituição de um “aparato” que se aproprie do movimento.
O movimento terá um partido, um sindicato, uma televisão e um banco que atuarão como seus veículos, além de contar com empresas de produção e consumo, hospitais, escolas, etc., que respeitando sua filosofia, diretrizes e objetivos, disporão de plena liberdade para se organizar internamente do modo mais conveniente. Haverá um salário mínimo e máximo para todos os empregados, que será aprovado pela assembleia geral do movimento, assim como as condições trabalhistas e os altos e baixos que se produzirem nelas.
Em uma situação ideal, qualquer um de seus membros, além de participar e votar na assembleia geral do movimento, poderá trabalhar em alguma de suas empresas, votar nela e participar da gestão, ter conta no banco do grupo, abastecer-se com produtos do mesmo, etc.
Porém, até que o movimento não tenha alcançado suficiente implantação e respaldo na sociedade, e as pessoas possam ver que existe outra forma de fazer as coisas, não será possível reconverter os atuais estados e nações em comunidades, inaugurando uma nova etapa para a espécie humana.
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