27 Março 2014
Para o cinema, o ano de 1985 já era marcante simplesmente pelo fato de se celebrar o centenário da chamada sétima arte. E é neste limiar que Claude Lanzmann lança sua primorosa obra intitulada Shoah (Documentário/Testemunhos, França, 1985, parte 1, 147 min), que subverte os cânones cinematográficos, exibe um filme de nove horas e inventa uma nova linguagem para tratar de um tema que foi capaz de quebrar paradigmas da filosofia, da psicologia e do próprio cinema: o holocausto. "Esse documentário é fundamental, tanto na história do cinema quanto do conhecimento, pois rompe com a forma usual do que era fazer cinema convencional e mesmo o documentário. É um filme que não tem trilha sonora - a única música é a cantada pelos próprios sobreviventes -, e o cinema, mesmo o mudo, sempre foi sonorizado por músicas, ao menos. Nesse filme, não; o que se ouve é o barulho dos equipamentos, das pessoas, etc.", explica Robson de Freitas Pereira, psicanalista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre – APPOA e conferencista do evento A proposta estético-política de Claude Lanzmann no Documentário Shoah.
O evento, realizado no final da tarde da última segunda-feira, 24-03, na sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, integra a 11ª edição da programação de Páscoa, intitulada Ética, memória, esperanca. Uma perspectiva de triunfo da Justiça e da vida. A abordagem dos eventos da programação de Páscoa tem como fio condutor a problemática do mal na contemporaneidade.
Fotos: Larissa Tassinari/Instituto Humanitas Unisinos - IHU |
Premissas cinematográficas
De acordo com Robson, Lanzmann, ao se dedicar à produção de Shoah, lança mão de duas estratégias, cuja primeira é romper com a forma usual de se fazer cinema. "Por uma questão de premissa, do ponto de vista do diretor, a imagem não dá conta do real. Por mais que ela possa se aproximar, ele afirma que o máximo que se pode fazer é uma determinada borda do real, mas que tem esse limite, obviamente relacionado à linguagem. Mesmo que se pense no real, o que se consegue é sempre uma realidade que é construída", aponta o conferencista. "A segunda estratégia diz respeito à relação com tempo – com o tempo histórico e o tempo e espaço cinematográfico. Em alguma medida, há uma exigência dessas nove horas de duração. Esse alongamento do tempo é necessário para dar conta da dimensão do holocausto. A experiência que as pessoas têm ao se dedicarem a assitir por nove horas, alargando a experiência com o filme, permite que haja mais chance de que elas se pasmem com o que foi o nazismo", complementa.
Estética
Durante o encontro realizado no IHU, Robson lembrou que Lanzmann não utilizou, em seu documentário, imagens de arquivo, pois o diretor considerava que esse modo de fazer cinema era também um manifesto contra a sociedade do espetáculo. Além disso, o autor de Shoah considerava uma obscenidade dar tratamento fotográfico às imagens para que ficassem mais nítidas, por isso o filme é composto por tantas imagens que são exibidas de modo muito semelhante ao que foram captadas, sem tratamentos estéticos.
Entrevistas
Robson conta que Lanzmann tinha uma forma muito particular de fazer suas entrevistas, nunca perguntando "por que", mas sim tentando fazer com que as pessoas descrevessem o que ocorria durante o nazismo. "Ele tinha um modo particular de perguntar, pois nunca indagava 'por que', mas 'como', já que considerava que naquela época existiam muitas teorizações que explicavam o porquê. As pessoas tinham que fazer quase uma descrição", explica o palestrante.
Narrativa do indizível
"Um acontecimento tão inédito e tão brutal não era possível de ser analisado pelo pensamento existente à época. Ou se pensa um pensamento novo ou não se dá conta do que foi tal experiência", frisa Robson. Embora o termo holocausto (cuja origem está relacionada ao sacrifício a algum deus) seja amplamente conhecido e utilizado, ele não corresponde rigorosamente ao sentido e à tradução da palavra Shoah, que em hebraico tem uma conotação de catástrofe.
"Um ex-empregado do Estado polonês conseguiu fugir do Gueto de Varsóvia e ir até os Estados Unidos. Lá, conseguiu uma entrevista de mais de 1h20min com Roosevelt, que lhe que indicou uma lista de pessoas com quem devia falar, inclusive o presidente da Suprema corte, que era judeu. O juiz, depois de ouvir a história diz: 'Eu não acredito no senhor. Mas não estou dizendo que está mentindo, estou dizendo que não tenho condições de acreditar nisso'", recorda Robson, e lembra que ainda hoje há pessoas que dizem não acreditar no que foi a Shoah.
Hoje, dia 27 de março, às 14h30min, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, será exibida mais uma das quatro partes do documentário Shoah, de Claude Lanzmann.
O último dos injustos
Claude Lanzmann tem 88 anos e vive na Europa. O flme mais recente que apresentou se chama O último dos injustos (Título original: Le deniére des injustes/Documentário, Claude Lanzmann, França, 2013, 3h40min), que é composto por uma compilação de várias entrevistas com o último rabino de Theresienstadt, campo de concentração "modelo" que os nazistas apresentavam para o mundo, localizado na cidade de Terezín, atualmente na República Tcheca.
"Lanzmann acaba fazendo agora este novo filme e rompe com uma das regras que ele tinha proposto anteriormente. Desta vez ele pega imagens de arquivo. Ele mesmo diz: 'Nessa idade eu gostaria de poder ter liberdade mesmo em relação às regras que eu criei, desde que as premissas sejam mantidas. É preciso subverter as regras pelas quais eu briguei durante tanto tempo'", reitera Robson.
Quem é Robson
Robson de Freitas Pereira é psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre - APPOA. Além de exercer a clínica psicanalítica, tem participado ativamente das interlocuções entre psicanálise e cultura. Confira a entrevista que ele concedeu à IHU On-Line, edição 438, intitulada Lanzmann e a construção da Shoah como acontecimento.
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Shoah, a experiência cinematográfica subvertida para retratar o horror do nazismo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU