01 Novembro 2012
Recém-lançado no Brasil, "Shoah" (1985), do francês Claude Lanzmann -que causou polêmica na Flip 2011 ao lançar seu livro de memórias- é um marco do documentário e da reflexão sobre o Holocausto ("sacrifício"), denominação que o filme condena, em favor da palavra hebraica "Shoah", "desastre".
O artigo é de Marcelo Coelho, publicado no jornal Folha de S. Paulo, 29-10-2012.
Eis o artigo.
A caixa com quatro DVDs, que eu tinha comprado numa viagem, ficou guardada por mais de um ano. Eu sabia que "Shoah", de Claude Lanzmann, é um dos filmes mais importantes da história do cinema e talvez o único filme que absolutamente deve ser visto por quem se interesse pela sorte dos outros seres humanos.
Mas também sabia que "Shoah" tem nove horas e meia de duração e apresenta nada mais do que uma série de depoimentos sobre os campos de extermínio nazistas. Faltava-me coragem para enfrentar aquelas histórias, contadas na maioria pelos próprios sobreviventes.
A maior surpresa para quem começa a ver o filme é que aparecem imagens plácidas, bonitas, poéticas -e esse recurso será usado muitas vezes por Lanzmann ao longo de "Shoah".
Vemos um barco de madeira, navegando num rio muito claro e limpo, que corta um belo e verdejante bosque europeu. Um homem de 47 anos canta uma canção folclórica. Estamos em Chelmno, na Polônia. O homem de 47 anos é Simon Srebnik, um dos dois únicos sobreviventes da ação nazista que, naquele lugar, exterminou 400 mil judeus.
Não se usaram câmaras de gás ali. Todas as vítimas foram jogadas em caminhões especiais, que faziam um breve percurso pela redondeza até seus ocupantes morrerem asfixiados com o gás que se espalhava lá dentro.
Simon Srebnik olha para o bosque; ouve-se o canto dos passarinhos. "Sim, foi aqui". A câmera passeia pelo local, como se buscasse evidências do que Srebnik vai começar a contar. Há como que um movimento de incredulidade, que nada tem a ver, é claro, com a tese neonazista do "negacionismo" -a alegação de que nunca houve genocídio nenhum.
A incredulidade é de outro tipo, a mesma que tomou conta das próprias vítimas do nazismo. Simplesmente não parecia possível que aquilo estivesse acontecendo.
Um dos sobreviventes de Auschwitz, o italiano Primo Levi (1919-87), narra em seu livro "É Isto um Homem?" (1947) o pesadelo recorrente de estar contando a verdade sobre o campo de extermínio a pessoas que não o viram -e de ninguém se interessar pelo que diz.
É sem dúvida essa a sensação de Srebnik quando contempla o campo à sua volta -e também a do espectador, que será confrontado, aos poucos, com uma realidade que até hoje desafia qualquer razão humana. Como aquilo foi possível?
Esse é o tipo de pergunta, entre muitas outras, que o filme de Claude Lanzmann se recusa a responder. O objetivo de "Shoah" é simplesmente o de relatar, com tantos pormenores quanto possível, o que aconteceu. Não para que seja entendido ou explicado, mas para que não seja esquecido.
Cada dia eram queimados 2.000 cadáveres, conta Srebnik. Conheceremos mais tarde os detalhes desse processo, e as funções que cabiam a Srebnik naquele lugar.
A arte de Lanzmann, nesses primeiros momentos do filme, já se faz sentir. Ele abandona o primeiro personagem, que sabemos que tinha 13 anos na época do massacre e que sobreviveu porque cantava bem. Ouvimos suas primeiras frases, a revelação sobre o número dos corpos incinerados, e passamos a outros sobreviventes.
Ainda em Chelmno, Lanzmann entrevista também os moradores do lugar. Lavradores poloneses contam ter ouvido, na época, os gritos, os latidos dos cães. "Mas o que podíamos fazer?"
REFRÃO A frase se repete, como um refrão, ao longo do filme -e é um dentre os muitos recursos pelos quais "Shoah" evita afundar o espectador num mar de emoções dolorosas. O tempo todo, na verdade, solicita-se do espectador que mantenha sua inteligência atenta.
A própria descrição dos fatos, sendo feita aos poucos, com personagens alternados, que o filme foi encontrar em todas as partes do mundo, deixa-nos em estado de alerta. Os seguidos closes no rosto de cada entrevistado também servem para que tentemos imaginar o que se passa na memória, na alma de cada sobrevivente.
Os mortos nos caminhões de Chelmno não eram queimados diretamente. De início, foram enterrados em grandes fossas. Mais tarde, os nazistas mudaram de ideia; perceberam que não seria conveniente deixar provas do massacre. Mandaram que os chamados "judeus de trabalho" desenterrassem os cadáveres e os queimassem em imensas pilhas.
Quem conta isso é o outro sobrevivente do extermínio nos caminhões, Mordechai Podchlebnik. Ele era um dos encarregados, primeiro, de descarregar os mortos do compartimento de carga e enterrá-los. No terceiro dia de trabalho, tirou do caminhão os corpos da própria mulher e dos filhos.
Quando houve a mudança de planos dos nazistas, Podchlebnik teve de desenterrar os cadáveres das fossas para queimá-los. Só nesse momento da história é que entendemos uma das frases pronunciadas no início por Simon Srebnik: "As chamas iam até o céu".
Outros testemunhos se seguem, ainda sobre a tarefa de desenterrar os mortos. Motke Zaidl e Itzhak Dugin começaram a desenterrar a primeira vala dos judeus de Vilna (Lituânia), em 1944. Havia 24 mil cadáveres. Os que estavam embaixo estavam achatados, como se fossem bolachas; os corpos se desfaziam quando eram carregados.
"Judeus de trabalho" como Zaidl e Dugin não podiam usar pás; tinham de desenterrar seus mortos com as mãos nuas. Eram golpeados caso se usassem palavras como "corpos", "mortos" ou "cadáveres". Tinham de dizer "Figuren", bonecos, ou "Schmatten", trapos.
Quando abriu a última vala, a mais recente, Dugin reconheceu a própria família: sua mãe e três irmãs com os filhos. Os corpos, devido ao frio, estavam conservados.
Srebnik, por sua vez, estava encarregado de levar seus mortos para uma espécie de base de concreto, onde outros presos tinham a tarefa de moer os ossos maiores, que restavam da incineração.
Tudo isso, e nem foi ainda exposto o método por excelência dos nazistas, o das câmaras de gás e o transporte em vagões de gado.
REENCENAÇÃO Fugindo um pouco das regras estritas do documentário, que se recusa a qualquer "reencenação" dos fatos, Lanzmann conseguiu convencer um polonês, antigo motorneiro da locomotiva de Treblinka, a conduzir novamente o trem que levava os judeus à morte. Pergunta-lhe se ouvia os gritos de dentro do vagão.
Dava para escutar muito bem, diz Henrik Gawkowski. Claro, ele achava muito penoso o seu trabalho. Os nazistas lhe davam vodca; sem bebida, ninguém aguentaria, diz ele. Era um prêmio; os que conduziam trens normais não ganhavam bebida.
A estrutura de "Shoah", com todos esses depoimentos entrelaçados, vai aos poucos ficando clara. Começa-se pela exumação dos cadáveres, para em seguida mostrar o caminho até Auschwitz. Ao mesmo tempo, nada é contado de uma vez só -de modo que, se o horror está presente desde o início, quem assiste ao filme está sempre inquieto, com o sentimento de que há sempre mais a conhecer.
O rosto de cada pessoa, por mais que a câmera se fixe, continua indevassável. Os cristãos poloneses, sabendo do que se passava, assistiam. Diante de Lanzmann (que aparece várias vezes durante o filme) contam tudo de forma positiva, com simplicidade camponesa, sem que se possa dizer se há alguma culpa, se há dissimulação, se há dor ou medo no que rememoram. Há quem dê risadas ocasionalmente, ou chore, mas sempre o enigma permanece.
É inesquecível, a esse respeito, a expressão de Simon Srebnik quando Lanzmann o leva para perto de uma igreja, em Chelmno, onde os poloneses saem da missa. Vários dizem se lembrar daquele menino judeu, que cantava tão bem, com os tornozelos atados a correntes. Srebnik sorri e os avalia com o rabo do olho. O que está pensando? O que é possível pensar? O que é melhor deixar sem pensamento?
Lanzmann foi além, filmando secretamente o depoimento que lhe foi concedido por um oficial da SS, Franz Suchomel. "Não cite o meu nome", pede o nazista. "Não, não, eu lhe prometi", responde Lanzmann. Ironicamente, o filme mostra que ele não cumpriu a promessa. Um deslize ético do entrevistador, se quisermos. Mas um deslize revelado, deixando o julgamento para o espectador.
Suchomel dá detalhes, até com diagramas, de como se organizou o morticínio em Treblinka. "Chegava sempre mais gente, sempre mais, que não se tinha meios de matar." Sentia repugnância, e também orgulho, diante da missão de impor método ao morticínio.
SHOAH É difícil parar de fazer citações do filme, tal a enormidade do que ali se descreve. Mas não é apenas devido a seu conteúdo que "Shoah" se tornou um documentário incontornável. Do ponto de vista ético e estético, Lanzmann inaugurou um novo modo de expor a realidade do genocídio.
A começar pelo nome do filme. O termo hebraico "shoah" vem aos poucos substituindo a tradicional palavra "holocausto" para denominar o massacre dos judeus sob o regime nazista.
Holocausto traz a conotação de "sacrifício", como se o que aconteceu resultasse de um ato voluntário de reverência a Deus. "Shoah" significa desastre -e, nessa ótica, também abre um flanco para críticas. Como explica o próprio Lanzmann, num dos ensaios recolhidos no recém-lançado "La Tombe du Divin Plongeur" [Gallimard, 442 págs., R$ 103], ainda sem previsão de lançamento no Brasil, "shoah" pode referir-se a uma catástrofe natural, uma enchente ou terremoto.
"Para mim", diz Lanzmann, tratava-se "de um significante sem significado, uma proferição breve, opaca, uma palavra impenetrável". Esse sentimento de "opacidade" não resume à sonoridade do título. Para Lanzmann, a própria realidade do massacre surge como uma espécie de "buraco negro". Trata-se da irrupção de um mal absoluto, que a rigor seria impossível iluminar, mas que deve ser iluminado mesmo assim.
Desse modo, não aparece em "Shoah" nenhuma imagem de época, nenhuma das famosas fotos dos cadáveres ou dos sobreviventes dos campos. Muito menos é o caso de reencenar, sob forma mais ou menos ficcional, a violência dos nazistas ou o sofrimento dos judeus.
SPIELBERG Lanzmann, assim como vários teóricos depois dele, adota a esse respeito uma atitude intransigente. Filmes como "A Lista de Schindler", de Steven Spielberg (comentado num dos artigos de "La Tombe du Divin Plongeur") seriam, no mínimo, uma distorção dos fatos; no máximo, uma verdadeira obscenidade.
Pior ainda seria o caso de "Holocausto", a minissérie americana dos anos 70, que a bem da verdade teve o mérito de colocar em pauta, para o grande público, um tema surpreendentemente tratado com pouca ênfase até então.
Basta lembrar que "Noite e Neblina", o clássico antecessor de "Shoah" rodado por Alain Resnais em 1955, é eloquente ao falar dos campos nazistas, mas hesita em pronunciar a palavra "judeus". Sobre as primeiras narrativas do Holocausto no cinema, aliás, há detalhado artigo de Luiz Nazário, no recente "Estudos Judaicos: Shoá, o mal e o crime" (Humanitas/Edusp).
Retomando a pergunta. Por que tão vigorosas condenações de "A Lista de Schindler" e outros filmes parecidos?
Há motivos éticos, estéticos e, digamos, metafísico-religiosos para essa atitude.
Em primeiro lugar, trata-se de evitar o melodrama. Por mais trágica que possa ser, uma narrativa convencional e emocionante sobre o tema produz no espectador algum tipo de catarse, de alívio emocional. As lágrimas que se derramam em "A Lista de Schindler", diz Lanzmann, são uma forma de gozo, de fruição.
O objetivo de "Shoah" não é fazer o público derreter-se de piedade, mas sim de confrontá-lo com algo que está além da imaginação e mesmo da vivência humana. Os sobreviventes contam o que viram, seguram (ou não) as próprias lágrimas -mas o espectador fica com a impressão de que, tendo passado pelo que eles passaram, sua sobrevivência não é algo que se localiza num momento isolado do passado.
O esforço de sobreviver à própria memória mobiliza-os a cada dia. Esquecer lembrando; lembrar esquecendo; e, mais do que isso, "viver, já tendo morrido": é este o paradoxo que "Shoah" procura expressar.
Os comentários sobre o filme de Lanzmann insistem nesse aspecto paradoxal. Fala-se, por exemplo, em "nomear o inominável" ou "representar o irrepresentável".
Sem dúvida. A rigor, não há testemunhas do que aconteceu dentro das câmaras de gás. Mesmo se o que ocorria ali tivesse sido filmado secretamente pelos nazistas, diz Lanzmann, as cenas não poderiam ser exibidas. "Não sou capaz de dizer por quê", completa. "É evidente que não poderiam."
"Shoah" não se dedica muito, ademais, a falar de como se vivia nos campos de concentração. Seu foco é a máquina do puro extermínio -os judeus que, mal desembarcando dos trens, já eram levados à câmara de gás, sendo reduzidos a cinzas poucas horas depois.
SENTIMENTOS Os encarregados de trabalhar no morticínio -como o barbeiro Abraham Bomba, proibido de contar às vítimas o que iria acontecer, enquanto lhes cortava os cabelos- relatam que "não era possível sentir nada"; "os sentimentos desapareciam".
Sabe-se que, nas câmaras de gás, os cadáveres dos mais fracos ficavam por baixo, pisoteados pelos que tiveram mais condições de subir em busca de um mínimo de ar. Não há, com certeza, "representação" possível para uma cena desse tipo.
Afora essas razões muito específicas para a austeridade cinematográfica de "Shoah", uma série de considerações de ordem mais teórica é suscitada pelo filme, com o risco de certo abuso.
Claro que o horror de Auschwitz ultrapassa qualquer descrição. Mas não há muita novidade na tese de que alguma coisa é horrível demais para ser traduzida em palavras ou imagens. Qualquer fato da experiência, seja um apaixonamento, seja uma grande tristeza ou um grande choque, pode, a rigor, ultrapassar a capacidade que tenhamos de expressá-lo.
Por outro lado, é um preceito estético bastante usual a ideia de que vale mais sugerir do que mostrar. Dos filmes clássicos de terror à fotografia erótica, ninguém ignora que o poder da imaginação, uma vez habilmente conduzido, supera o alcance da vulgar explicitude.
Em torno de "Shoah", todavia, essa orientação estética foi reconsiderada. A discussão sobre o tema é das mais extensas. Apenas para indicá-la, vale lembrar a frase de Jorge Semprún sobre sua própria experiência nos campos de concentração, citada por Márcio Seligmann-Silva na coletânea "Catástrofe e Representação" (Escuta).
"Não que a experiência vivida seja indizível", diz Semprún. "Ela foi invivível." O debate estético não ficou isento de conotações religiosas. Com certa facilidade, foram feitas referências ao conhecido mandamento judaico que proíbe criar imagens de Deus, revisitado no contexto da "irrepresentabilidade" da "shoah". Meu filme, retruca Lanzmann, é uma luta contra a "irrepresentabilidade".
Mais inquietante é a recusa, feita de modo dogmático por Lanzmann, em procurar explicações para o que aconteceu. Ele tem razão ao dizer que uma estrutura narrativa e histórica enfraqueceria totalmente o seu filme, cuja estrutura fragmentária e circular atinge incomparável nobreza estética.
Ao mesmo tempo, deve-se registrar a fúria com que recebeu o jornalista Ron Rosenbaum, autor de fascinante livro sobre as várias interpretações já feitas a respeito da personalidade de Adolf Hitler ("Para Entender Hitler", ed. Record). Não há nada o que entender, esbravejava Lanzmann.
Rosenbaum rememora, com alguma perversidade, a frase do oficial nazista num campo de concentração, citada por Primo Levi: "aqui não há por quê". Inútil perguntar por explicações.
Ocorre que o autor de "Shoah", num artigo que tem por título a frase em alemão ("Hier Ist Kein Warum"), diz que esse mandamento totalitário deve ser mesmo obedecido pelos que têm a responsabilidade de transmitir o que aconteceu.
As "explicações" só dão margem a "canalhices", diz Lanzmann; "há uma obscenidade absoluta no projeto de compreender".
Convenhamos que é levar a defesa do próprio filme longe demais.
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A incredulidade é de outro tipo, a mesma que tomou conta das próprias vítimas do nazismo. Simplesmente não parecia possível que aquilo estivesse acontecendo
O objetivo de "Shoah" é simplesmente o de relatar o que aconteceu. Não para que seja entendido ou explicado, mas para que não seja esquecido
Nada é contado de uma vez só -de modo que, se o horror está presente desde o início, quem assiste ao filme está sempre inquieto, com o sentimento de que há sempre mais a conhecer
Não é apenas pelo seu conteúdo que "Shoah" se tornou um documentário incontornável. Lanzmann inaugurou um novo modo de expor a realidade do genocídio
LANÇAMENTO
O Instituto Moreira Salles exibe "Shoah" em seu cinema, no Rio de Janeiro, hoje, terça (30) e quinta (1º/11), em três sessões por dia: a primeira parte do filme (262 minutos), a segunda (282 minutos) e o documentário de 2010 "O Relatório Karski" (48 minutos). Hoje, às 18h30, o documentarista Eduardo Coutinho e o crítico Eduardo Escorel debatem o filme, com mediação do documentarista João Moreira Salles. O DVD está à venda nas lojas do IMS por R$ 150 e, na segunda quinzena de novembro, nas livrarias, por R$ 190.
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A obscenidade de compreender - Instituto Humanitas Unisinos - IHU