30 Janeiro 2014
"É bem pouco provável que as críticas do presidente da Fiergs e os conselhos do editorial manifestassem incômodo, mal-estar ou temor pelo futuro, se as políticas públicas relativas à economia do Estado e do país estivessem mais preocupadas com as muito frequentes vantagens exigidas pelo capital para aqui “investir” (?), do tipo renúncias fiscais, pronto socorro a projetos faraônicos malogrados, ajuda a empresas a beira da falência, prorrogação indefinida de dívidas tributárias não pagas por grupos econômicos poderosos, frequentemente acrescidas pelo valor de multas devidas por sonegação", escreve Jacques Távora Alfonsin, mestre em Direito, pela Unisinos, onde também foi professor. Atualmente, é membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos e colaborador do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
Eis o artigo.
Em artigo publicado no jornal Zero Hora de 23 deste janeiro, o presidente da Fiergs criticou, sob o título “qual o Rio Grande que queremos?”, algumas políticas públicas que o Estado vem implementando, particularmente a relacionada com a fixação dos salários dos gaúchos. Para ele, num tom bastante irônico, essa política determinada “ano a ano acima da inflação”, constitui “um ganho ilusório, pois a maior remuneração inicial se esvai em pouco tempo pelo aumento da inflação e consequente queda do poder aquisitivo”, “afasta novos empreendedores e desestimula a expansão das indústrias já estabelecidas.” (página 15).
Fez-lhe eco, sintomaticamente, embora de forma indireta, o editorial publicado pelo mesmo diário um dia depois sob o título de “Os dois Brasis” no qual se adverte a presidente da República, afirmando que ela “deve reconhecer em Davos que a manutenção do otimismo interno depende da confiança dos investidores”.
Que essas opiniões representam fortíssimo poder econômico-político, talvez afinado com a grande parte do empresariado gaúcho, isso pode até ser verdade. Daí a coincidir, igualmente, com o pensamento e a ação da maioria do nosso povo, como ambos os textos parecem convencidos, vai uma presunção bem equivocada, não sendo poucas as razões para isso.
Uma delas pode colocar sob suspeita, especialmente a publicada pelo presidente da Fiergs, até o respeito devido ao Estado democrático de direito, pela notória semelhança da sua crítica com a política econômica imposta ao país pelo golpe militar de 1964. Conforme denunciou Kurt Mirov, em livro dedicado à economia daquela época (“A ditadura dos cartéis”), foi ministro, repetidamente, das intervenções militares da época, impostas ao país, Mario Henrique Simonsen (ministro nos períodos Geisel e Figueiredo; presidente do Banco Central no período Castelo Branco e do Mobral no de Emilio Medici).
Comentando uma concordata de uma empresa calçadista de Novo Hamburgo, conta Kurt Rudolf Mirow em seu “A ditadura dos cartéis” (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1978, p.218) o seguinte: “O ministro Mario Henrique Simonsen, por sua vez, declarou ao negociar uma eventual sobretaxa a ser aplicada nos Estados Unidos à importação de calçados brasileiros, que ela não artingiria grandemente as exportações brasileiras, porque a mão de obra do país “é razoavelmente mais barata do que a dos paises concorrentes”. E, de fato, enquanto o salário médio do operário do setor de calçados gaúchos fora, em fins de 1978, de Cr$600,00 - o operário norte-americano ganhara 12 vezes mais do que o brasileiro.”
Não há de se atribuir ao presidente da Fiergs pretender receitar, décadas passadas de um período ditatorial tão triste para o povo e a nação, o mesmo remédio, mas que a semelhança entre o dito de Simonsen e o artigo da sua lavra é notável, de modo visível no que concerne às conveniências do capital, com origem em salários baixos, isso não dá para negar.
O mesmo vale para o editorial dos “Dois Brasis” quando lembra à presidente da República que a nossa ecoonomia “depende da confiança dos investidores” (...) “e esses somente se sustentam em ambientes seguros.” Será que não é mais importante a segurança do país em relação a tais investidores do que a confiança e a segurança deles em relação ao país? Afinal de contas, o Brasil ainda luta por vencer uma cultura econômica capitalista vinda de fora marcadamente colonialista e predatória, índias/os e negras/os quilombolas pobres e até o nosso meio ambiente natural que o testemunhem ainda hoje, pois ainda hoje sofrem os efeitos dessa injustiça.
Se a tal confiança e segurança desses “investimentos” vierem atraidas por salários baixos e carregadas do preconceito de superioridade que marca o texto do dia 23 deste mês, no qual se agride gratuitamente quem compra e vende em camelódromo, assim que se conferir sobre quem, realmente, vão pesar os riscos que elas sempre alegam correr, é melhor que os referidos investimentos não “invistam” (!...) , pelo simples fato de que os riscos, em casos tais, deles não serão.
Não mereceu atenção das opiniões publicadas, portanto, o fato mais do que provado historicamente, de que nem tudo o que interessa ou convém ao capital, é bom para a população ou o território onde ele “investe” (?). O passado comprova não ser o seu forte cumprir a função social que, legalmente, incumbe-lhe cumprir, bastando recordar que, entre as causas da tão noticiada quanto desmentida morte da luta de classes, os baixos salários, justamente, representaram (e em muitos lugares ainda representam) um motivo gerador de conflitos sociais permanentes.
Aliás, é bem pouco provável que as críticas do presidente da Fiergs e os conselhos do editorial manifestassem incômodo, mal-estar ou temor pelo futuro, se as políticas públicas relativas à economia do Estado e do país estivessem mais preocupadas com as muito freqüentes vantagens exigidas pelo capital para aqui “investir” (?), do tipo renúncias fiscais, pronto socorro a projetos faraônicos malogrados, ajuda a empresas a beira da falência, prorrogação indefinida de dívidas tributárias não pagas por grupos econômicos poderosos, frequentemente acrescidas pelo valor de multas devidas por sonegação.
A nada disso poderia atribuir-se convenientes “soluços eleitorais” que, de acordo com o artigo do presidente da Fiergs, seria em verdade a única inspiração do aumento real de salários estabelecida pelo governo do Estado. Tudo isso também não afetaria a arrecadação do Estado para investir, isso sim, em educação, saúde, segurança, acesso à moradia, à alimentação e a outros direitos fundamentais sociais de que carece o povo.
Nós até podemos estar enganados, hipótese que, pela ênfase empregada nas opiniões empresariais publicadas em Zero Hora, elas parecem não admitir sobre o que dizem, mas o Rio Grande que queremos certamente não é o mesmo que elas querem.
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O que interessa ao capital prejudica, com bastante frequência, tanto a sociedade quanto o Estado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU