12 Dezembro 2014
No Twitter, o papa passa a estar ao alcance de um clique, sobre cujo perfil a sociedade pode derramar todos os sentidos culturais possíveis – e publicamente. A partir disso, surgem questões sobre como a conversação no ambiente digital pode estar reafirmando ou não a autoridade papal, ou como esse processo se relaciona com a crise de autoridade das instituições religiosas hoje.
A opinião é do jornalista Moisés Sbardelotto, doutorando em Ciências da Comunicação pela Unisinos e autor do livro E o Verbo se fez bit: A comunicação e a experiência religiosas na internet (Ed. Santuário, 2012).
Eis o texto.
Este dia 12 de dezembro marca uma importante data “midiática” da história do papado. Nesse dia, em 2012, era lançado o primeiro “tuíte pontifício” da história, pelo dedo trêmulo e hesitante de Bento XVI na tela de um iPad. Desde aquela primeira mensagem, enviada pela conta @Pontifex (“construtor de pontes”, em latim), nas suas nove variações linguísticas, o pontífice passou a fazer parte de uma rede social digital que permite “se conectar com as pessoas, se expressar e descobrir o que está acontecendo”, como informa o próprio Twitter. Dessa forma, publicamente, o papa descia do púlpito midiático dos ambientes controlados pela própria Santa Sé e se misturava aos homens e mulheres comuns da “sociedade da comunicação generalizada” (Gianni Vattimo), tornando-se “mais um” na circulação comunicacional, em um ambiente de comunicação, a priori, incontrolável.
Até o seu último tuíte, no dia 28 de fevereiro de 2013, dia oficial da sua renúncia, Bento XVI reuniu mais de três milhões de seguidores. Neste dia 12 de dezembro de 2014, sob o pontificado de Francisco, as contas @Pontifex vão ultrapassar a marca de 17 milhões de seguidores. Delas, a mais seguida é a versão em espanhol, com 7,4 milhões de seguidores. A partir de dados do site Tweet Counter, as contas @Pontifex, somadas, estariam no 41º lugar entre os usuários mais seguidos do Twitter (a cantora norte-americana Kate Perry lidera a lista mundial, com mais de 61 milhões de seguidores).
A presença da Igreja no ambiente comunicacional está diretamente ligada à sua vocação e missão. Como disse o papa na Assembleia Plenária do Pontifício Conselho para as Comunicações Sociais de 2013, “independentemente das tecnologias”, o papel da Igreja no ambiente comunicacional é “saber inserir-se no diálogo com os homens e as mulheres de hoje, para compreender as suas expectativas, dúvidas, esperanças”. E o propósito assumido pelos dois pontífices “tuiteiros” aponta para essa preocupação pastoral e eclesial.
O primeiro tuíte de um papa já explicitava a modalidade de interação proposta nessa nova presença comunicacional. A mensagem de Bento XVI do dia 12 de dezembro de 2012 dizia: “Queridos amigos, é com alegria que entro em contato convosco via twitter. Obrigado pela resposta generosa. De coração vos abençoo a todos”. Dessa forma, Bento XVI se alegrava por entrar em contato “via Twitter” com os seus “queridos amigos”, sejam quem fossem, visto que qualquer pessoa – independentemente da filiação religiosa – pode “seguir” o papa mediante essa plataforma. E, inovando a prática religiosa na era digital, Bento XVI também enviava, na mesma mensagem, “de coração”, a sua “benção a todos” via Twitter. E no seu tuíte de despedida, no dia 28 de fevereiro de 2013, Bento XVI escreveu: “Obrigado pelo vosso amor e o vosso apoio!”, expressando novamente a sua proximidade aos seus seguidores na plataforma.
Foi assim também com Francisco, que, no dia 17 de março de 2013, em seu primeiro tuíte como papa, afirmou: “Queridos amigos, de coração vos agradeço e peço para continuardes a rezar por mim. Papa Francisco”. Aqui também o papa aponta para a vontade explícita de construção de amizade (“queridos amigos”) e de proximidade (“de coração”, a assinatura “Papa Francisco”).
O Papa Francisco, em sua Mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais deste ano, reconhece que "a internet pode oferecer maiores possibilidades de encontro e de solidariedade entre todos; e isto é uma coisa boa, é um dom de Deus". Também é possível construir o encontro e promover a solidariedade em rede. Mas, destaca o pontífice, "não são as estratégias comunicativas que garantem a beleza, a bondade e a verdade da comunicação". Para Francisco, a raiz da fiabilidade de um comunicador é o "envolvimento pessoal". "É por isso mesmo - diz o papa - que o testemunho cristão pode, graças à rede, alcançar as periferias existenciais". Sem o testemunho pessoal, qualquer tentativa de comunicação midiática se esvazia e, pior, se contradiz.
Inovações
Nesses dois anos, houve um avanço e uma evolução na apropriação da Igreja das potencialidades do Twitter. Durante o pontificado de Bento XVI, a linguagem papal se limitava a textos puros, sem recorrer a outras funcionalidades da plataforma: nesse tempo, a conta @Pontifex nunca respondeu a uma mensagem diretamente a outro usuário nem fez referência a outro seguidor; nunca enviou um “RT” (ou seja, um ReTweet, republicação de um tuíte alheio); nunca postou uma hashtag (palavras-chave marcadas pelo símbolo #, que servem como indexadores); nunca indicou algum link interno ou externo ao Twitter; e nunca postou um vídeo ou foto quaisquer.
Com Francisco, houve usos “inovadores”, como as hashtags, links “externos”, citação de outros usuários e até mesmo a publicação de uma foto. Retoma-se, assim, o sentido de "rede social" na comunicação pontifícia: o Twitter não pressupõe um "púlpito" para o bombardeio de tuítes papais, mas sim um ambiente de prática e discurso social no qual o papa se "faz próximo" dos demais internautas, entrando em diálogo com eles.
As hashtags foram usadas pela primeira vez por ocasião da viagem do papa ao Rio de Janeiro, em julho de 2013, para a Jornada Mundial da Juventude. Foram utilizadas pelo papa as hashtags #Rio2013 e #JMJ, demarcando as principais mensagens referentes ao encontro. Outras hashtags usadas por Francisco foram #PrayForPeace e #WePrayForPeace, explicitamente pela situação no Oriente Médio e no Iraque. Também foram usadas as hashtags #Philippines e #SriLanka, em um tuíte de agradecimento do papa pela sua viagem a esses países asiáticos. E, ao longo do Sínodo Extraordinário de 2014, o Papa Francisco convidou seus seguidores à oração pelo encontro eclesial utilizando as hashtags #PrayWithUs e #PrayForSynod. A última hashtag, cronologicamente, foi usada em um tuíte de 9 de novembro, dia dos 25 anos da queda do Muro de Berlim: “Peço a todas as pessoas de boa vontade que contribuam para a criação de uma cultura do encontro, da solidariedade, da paz. #fotw25” (em que a hashtag, criada e utilizada por diversos usuários do Twitter, remete à frase “Fall of the Wall”, queda do muro, em inglês. O papa, assim, se somava a esse debate público em rede).
Já o primeiro (e único) link externo citado pela conta @Pontifex foi o da página News.va no Facebook – ou seja, uma autorreferência a outra presença oficial da Igreja na internet. A mensagem foi tuitada no dia 7 de setembro de 2013 e dizia: “Rezai pela paz! https://www.facebook.com/news.va.en #prayforpeace”. Reforçava-se aí um processo circulatório, em que o pontífice indicava aos seus seguidores outro âmbito midiático do Vaticano.
O primeiro usuário a ser citado pela conta @Pontifex foi o da Rede Mundial de Escolas para o Encontro (Scholas), um projeto inspirado e promovido pelo Papa Francisco (quando ainda era arcebispo de Buenos Aires) mediante a Pontifícia Academia das Ciências, que conecta escolas, projetos e redes para a promoção da educação, dos esportes e das artes em escolas de baixa renda. A citação ocorreu em um tuíte do dia 19 de março deste ano, em que o pontífice escreveu: “Uma saudação para a Rede Mundial de Escolas para o Encontro. Plantamos hoje a primeira oliveira virtual pela paz. @infoscholas”. O papa se referia a um projeto digital da rede, que convida as pessoas a "plantarem" uma oliveira da paz no "bosque virtual”, como símbolo de adesão à cultura do encontro e à educação para a paz.
E a primeira (e única) foto postada pela conta @Pontifex foi publicada no dia 5 de setembro passado, em que o papa escrevia: "Rezo diariamente por todos os que sofrem no Iraque. Rezai comigo". A foto, muito significativa e simbólica, mostra duas meninas em meio a um alojamento de pessoas deslocadas por causa da guerra.
Para além desses usos “inovadores”, o que está em questão é que, ao se colocar em um ambiente público digital, Francisco, como figura máxima da Igreja Católica, também se insere em novas modalidades discursivas de construção simbólica, não apenas sobre o catolicismo em geral, mas inclusive sobre ele próprio e as expectativas sociais sobre ele como papa.
Desdobramentos do catolicismo
Um caso específico – e crítico – em relação à pessoa do papa foi a hashtag #PopeSpeakOut (“Papa, pronuncie-se”). O termo foi criado pelo projeto No More Triangle Nations, mantido por três grupos católicos dos EUA. A ideia por trás da hashtag é de que o Papa Francisco se manifeste abertamente em defesa dos homossexuais em países que defendem a pena de morte ou a suspensão dos direitos civis com base na orientação sexual ou na identidade de gênero, como Nigéria, Rússia, Uganda, Índia e Jamaica.
A campanha foi lançada em 2013 em parceria com a revista The Advocate, principal publicação da comunidade LGBT dos EUA. No site No More Triangle Nations, são sugeridos três textos prontos para serem enviados via Twitter, convocando o papa (mediante a conta @Pontifex e a hashtag da campanha) a “condenar publicamente as leis antigays”, a apelar aos cristãos de todo o mundo a “amarem as pessoas gays” e a “não legislarem pela sua extinção”.
No Twitter, portanto, o papa passa a estar ao alcance de um clique, sobre cujo perfil a sociedade pode derramar todos os sentidos culturais possíveis – e publicamente. E usuários comuns também podem agir teopoliticamente sobre e a partir do papa mediante a sua presença digital, em meio ao cruzamento de sentidos sociais que varre o Twitter.
O caso das "hashtags papais" também aponta para uma nova modalidade de participação discursiva do pontífice em sua relação com o socius. Em alguns casos, é o próprio @Pontifex que desencadeia processos comunicacionais, lançando hashtags que atentam a sociedade para determinado fenômeno, atuando como um concentrador e catalisador de debates e reflexões. Mas, por outro lado, em outros casos, o @Pontifex se sente impelido a se manifestar publicamente sobre discussões que já estão em andamento no tecido social, como no caso da hashtag em memória do Muro de Berlim. O papa se soma ao debate de nível mundial, inscrevendo-se como "mais um" na circulação comunicacional, mesmo sendo alguém de grande relevância social. Em ambos os casos, contudo, o fluxo discursivo não é controlado nem controlável pelo papa: ele desencadeia ou se soma a fluxos que vão além do seu controle discursivo e até mesmo teológico.
Isso não pressupõe necessariamente uma perda de autoridade em nível socioeclesial, pois, para seus seguidores católicos, os pontífices, ao contrário, conquistaram até mais credibilidade ao se fazer presente na rede e congregar um crescente número de seguidores na conta @Pontifex. Contudo, surgem questões sobre como, por exemplo, a conversação no ambiente digital pode estar reafirmando ou não a autoridade papal, ou como esse processo se relaciona com a crise de autoridade das instituições religiosas hoje.
Como assumiu o próprio Papa Francisco em seu discurso aos participantes do Congresso Internacional de Pastoral das Grandes Cidades, no dia 27 de novembro passado, a comunidade católica vem “de uma prática pastoral secular, na qual a Igreja era o único ponto de referência da cultura”, delineando e impondo “não apenas as formas culturais, mas inclusive os valores” e traçando “o imaginário pessoal e coletivo, ou seja, as histórias, as bases sobre as quais as pessoas se apoiam para encontrar os significados últimos e as respostas às suas exigências vitais”.
“Contudo – continua o papa –, já não vivemos naquela época. Ela já passou! Não vivemos mais no tempo da cristandade. Hoje já não somos os únicos que produzem cultura, nem os primeiros, nem os mais ouvidos. Por conseguinte, temos necessidade de uma mudança de mentalidade pastoral”.
Sinal disso são as interações sociais em rede, que produzem novas discursividades da Igreja com a sociedade, da sociedade com a Igreja, e da sociedade com a própria sociedade – favoráveis, contrárias, resistentes, subversivas ao catolicismo – a partir ou para além daquilo que é ofertado pela instituição eclesial. Em ambientes sem qualquer vinculação com a fé católica – como o Twitter –, os usuários, católicos ou não, encontram formas emergentes de dizer e de praticar o catolicismo. Experimenta-se e inventa-se o catolicismo em processos sociocomunicacionais em rede.
Trata-se de “outro” processo midiático, não mais gerenciado pelas corporações midiáticas, e trata-se de “outro” processo religioso, não mais controlado pelas instituições religiosas. Gera-se um “parassistema” de processos sociorreligiosos, organizados midiaticamente a partir de “outro” ponto da sociedade, que pode, assim, criticar, rever, contestar, debater o catolicismo sem a mediação nem a intermediação institucional religiosa ou midiática.
Portanto, o que pode estar se “perdendo” é justamente o controle sobre a imago publica católica. A imagem do papa e o sentido do catolicismo, agora, passam a estar nas mãos – publicamente – de toda a sociedade em conexão, que os reconstroem em suas interações com e para além da conta @Pontifex, positiva e negativamente.
A construção de sentido social em rede concentra discursivamente uma grande divergência de sentidos sobre a identidade, a autoridade e a comunidade católicas. Alguns construtos sobre o catolicismo se espalham de “cima para baixo”, começando pela instituição, pela conta @Pontifex ou pela mídia industrial, e depois são apropriadas por uma série de públicos diferentes, circulando pela cultura. Outros emergem de “baixo para cima”, a partir de vários agentes sociais, e também permeiam a cultura predominante das redes, chegando potencialmente a ressignificar a instituição.
O poder das redes é que elas diversificam e amplificam ao mesmo tempo. A construção de sentido social em rede gera uma maior diversidade cultural sobre o catolicismo, e o reforço público da institucionalidade da Igreja garante a não fragmentação cultural da tradição do catolicismo. Mas ambas – a socialização e a institucionalização comunicacionais do catolicismo – redescrevem, modificam, corrigem, expandem, mediante circulação em rede, o “católico”.
Graças a isso, podem estar emergindo efeitos inesperados do catolicismo, fazendo vir à tona socialmente problemas teológicos e abrindo brechas eclesiais, cujos desdobramentos devem ser ainda mais acompanhados e analisados.
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Dois anos de @Pontifex: rumos e desdobramentos do catolicismo em rede - Instituto Humanitas Unisinos - IHU