06 Dezembro 2014
Em artigo publicado por The Catholic Herald, revista inglesa, 05-12-2014, o cardeal australiano George Pell, prefeito da Secretaria para a Economia vaticana (essencialmente o ministro da Economial), explica a sua missão. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Eis o artigo.
Recentemente, um jovem espanhol pediu-me que explicasse a natureza do trabalho que desempenho no Vaticano como prefeito da Secretaria para a Economia, bem como a situação econômica passada e presente da Santa Sé.
Por quê? Porque, como membro da Opus Dei e como estudante universitário de primeiro, ele queria ter condições de responder às perguntas de seus companheiros estudantes e defender a Igreja.
Um membro de uma delegação parlamentar britânica colocou a mesma questão de uma forma um pouco diferente: Por que as autoridades da Santa Sé permitiram que esta situação chegasse a este ponto, desconsiderando os padrões modernos contábeis, por tantas décadas?
Em minha resposta, comecei observando que esta pergunta era uma das primeiras que ocorreriam para nós, falantes de língua inglesa, mas que também era uma pergunta que bem poderia ser a última da lista para pessoas vindas de uma outra cultura, tal como a italiana.
Estes na Cúria estavam seguindo padrões há muito tempo estabelecidos. Assim como os reis haviam permitido a seus legisladores, príncipes e governadores uma liberdade de exercício quase completa para controlar as suas respectivas terras, desde que equilibrassem as contas, o mesmo fizeram os papas com os cardeais curiais (tal como eles ainda fazem com os seus bispos diocesanos).
Por causa do tamanho da comunidade católica, com cerca de três mil dioceses espalhadas por todos os continentes, o princípio de subsidiariedade – quer dizer, a gestão local da diocese e as finanças das ordens religiosas – é a única opção.
As responsabilidades da Secretaria para a Economia limitam-se à Santa Sé, ao Estado da Cidade do Vaticano e às quase 200 entidades diretamente subordinadas ao Vaticano. Mas alguns cardeais e bispos já se perguntaram, em voz alta, se o novo conjunto de procedimentos financeiros e planos de contabilidade, introduzidos em novembro neste ano no Vaticano, poderiam ser enviados às conferências episcopais nacionais para consideração e uso. Isso é algo para o futuro.
É importante ressaltar que o Vaticano não está quebrado. À parte dos fundos de pensão, que precisam ser fortalecidos para as demandas de 15 a 20 anos, a Santa Sé está com suas contas em dia, possuindo ativos e investimentos substanciais.
Na verdade, descobrimos que a situação está muito melhor do que parecia, porque algumas centenas de milhões de euros estavam escondidas em contas particulares e não apareciam nos balancetes. Uma outra questão, impossível de se responder, é se o Vaticano deva ter muito mais reservas.
Certa vez li que o Papa Leão XIII enviou um visitador apostólico à Irlanda para compor um relatório sobre a Igreja Católica local. Em sua volta, a primeira pergunta do Santo Padre foi: “Como encontraste os bispos irlandeses?” O visitador respondeu que não conseguiu encontrar nenhum bispo, mas apenas 25 papas.
Assim era com as finanças vaticanas. As congregações, os conselhos e, especialmente, a Secretaria de Estado defendiam e desfrutavam de uma independência sadia. Os problemas eram mantidos “em casa” (como era de costume em quase todas as instituições, seculares e religiosas, até recentemente). Poucos eram tentados a dizer ao mundo o que estava acontecendo, exceto quando precisavam de ajuda externa.
Muitos vão se lembrar dos escândalos no Banco Vaticano (IOR) no começo da década de 1980, com Dom Paul Marcinkus e os banqueiros leigos Michele Sindona e Roberto Calvi (quem foi encontrado enforcado sob a ponte Blackfriars [aqui na Inglaterra]), e com o Vaticano sendo obrigado a pagar 406 milhões de dólares em indenização. Uma calmaria relativa em seguida se sucedeu, até que as leis internacionais contra a lavagem de dinheiro precisaram ser aplicadas dentro do Vaticano.
As autoridades que supervisionavam o Banco Vaticano não se moveram rápido o suficiente, e algumas dezenas de milhões de euros foram congeladas pelo Banco da Itália, com muitos bancos europeus se recusando a negociar com o Vaticano. Foi uma situação dificílima, onde o pior foi evitado por pouco. Foi apenas neste mês de novembro, após anos de diálogo e muito trabalho, que os 23 milhões de euros foram liberados.
Um fator importante nesta normalização foi o estabelecimento da Autoridade de Informação Financeira – AIF dentro do Vaticano, agência, como aquelas em todos os países ocidentais, dedicada a prevenir e erradicar a lavagem de dinheiro.
O leigo suíço René Brülhart há pouco se tornou o primeiro presidente leigo da AIF. O seu conselho compõe-se, principalmente, por especialistas (leigos) internacionais. As irregularidades ou crimes suspeitos são informados às autoridades vaticanas quando ocorrem dentro do Vaticano e são relatados a outras autoridades nacionais, tais como as autoridades italianas, quando for o caso.
Quando nos reportamos aos últimos anos do pontificado de Bento XVI, sabemos que estes problemas retornaram ao Banco Vaticano. O diretor do banco, Ettore Gotti Tedeschi, foi demitido pelo conselho formado por leigos e uma luta de poder no Vaticano resultou no vazamento regular de informações. O escândalo explodiu quando Paolo Gabriele, o mordomo papal, divulgou à imprensa milhares de páginas de documentos privados fotocopiados do Vaticano.
A minha primeira reação foi perguntar como um mordomo pôde ter desfrutado de um acesso assim, a documentos tão sensíveis. Parte da resposta é que ele partilhava de um grande escritório sem divisórias com os dois secretários papais.
Tudo isso foi severamente prejudicial à reputação da Santa Sé e constituiu uma cruz pesada para o Papa Bento, quem pediu a três destacados cardeais eméritos para investigarem a situação. Eles assim fizeram, presenteando este pontífice com um relatório confidencial. Ele, então, passou este relatório ao seu sucessor, o Papa Francisco, após sua decisão de renunciar – a primeira desde a renúncia do Papa Celestino em 1294.
Nos encontros pré-conclaves, antes da eleição do Papa Francisco, houve um consenso quase unânime entre os cardeais de que os mundos curial e financeiro no Vaticano precisavam ser reformados e normalizados.
Desde a sua eleição, o Papa Francisco tem explicitamente apoiado o programa de reformas financeiras, reformas que estão bem encaminhadas e já passam do ponto onde seria possível um retorno aos “maus velhos tempos”. Muito resta a ser feito ainda, mas as reformas estruturais principais já estão em vigor.
Quando o Papa Francisco percebeu que os sistemas financeiros do Vaticano haviam evoluído de tal forma que era impossível que alguém soubesse, precisamente, o que estava acontecendo no geral, nomeou um organismo internacional de leigos especialistas para analisar a situação e propor um programa de reformas.
O grupo veio a ser conhecido como a Organização da Estrutura Econômico-Administrativa da Santa Sé – COSEA (na sigla em inglês), e foi liderada por Joseph Zahra, um experiente banqueiro maltês. Os altos executivos não cobraram nada pelos serviços prestados aqui; eles se reuniram regularmente durante 10 meses e construíram o pacote de reformas que está sendo, agora, implementado. Para as gerações vindouras, a Igreja deverá muito a eles. Três princípios básicos encontram-se no cerne do trabalho realizado. Eles não são originais – e não são exatamente inacessíveis.
O primeiro princípio era que o Vaticano deveria adotar os padrões financeiros internacionais contemporâneos, como em grande parte do mundo. Até recentemente, o Vaticano não possuía procedimentos contáveis prescritos e padronizados.
O segundo princípio significava que as políticas e os procedimentos vaticanos deveriam ser transparentes, com relatórios financeiros muito semelhantes aos dos demais países, e as demonstrações financeiras anuais consolidadas deveriam ser revisadas por uma das “Big Four” empresas de auditoria, ou seja, por uma das quatro maiores empresas mundiais do ramo.
O terceiro e importante princípio dentro do Vaticano era que deveria haver algo semelhante a uma separação de poderes e que, dentro do setor financeiro, deveriam existir múltiplas fontes de autoridade. Estas organizações seriam coordenadas, mas teriam, cada uma delas, uma liderança leiga, especialista internacional, exercendo um controle substancial.
Os orçamentos das congregações e conselhos teriam de ser aprovados, e seus custos precisariam ser controlados dentro destes orçamentos durante o ano. Mas cada um destes organismos seria responsável por suas despesas e penalizado no ano seguinte, se ocorressem excessos.
No dia 24 de fevereiro, o Papa Francisco criou a Secretaria para a Economia, que tem autoridade sobre todas as atividades econômicas e administrativas. Esta não mais se reporta à Secretaria de Estado, mas diretamente ao papa. Isto representa uma divisão substancial de autoridade.
Igualmente novo é o fato de que esta Secretaria implementa as políticas determinadas pelo Conselho para a Economia, que tem oito cardeais ou bispos membros e sete leigos de alto escalão, todos de diferentes países.
Os membros leigos não são assessores/conselheiros, mas têm direitos iguais ao voto (uma pessoa, um voto). Ter membros leigos com poder de decisão neste nível é uma inovação no Vaticano.
Nem a Secretaria de Estado nem eu próprio, como prefeito da [Secretaria para a] Economia, são membros do Conselho [para a Economia], cujo papel é parecido com aquele de um senado ou conselho universitário nos países de língua inglesa, onde o vice-chanceler precisa persuadir o senado [ou conselho] da sabedoria de suas recomendações.
O Instituto para as Obras de Religião – IOR vai continuar a ser governado por um conselho de especialistas leigos, estabelecido por uma comissão de cardeais, mas tecnicamente não será mais o Banco do Vaticano, já que irá lidar com o dinheiro das dioceses, ordens religiosas e funcionários do Vaticano.
A Administração do Patrimônio da Sé Apostólica – APSA tornar-se-á o Tesouro do Vaticano. Continuará vinculado aos bancos centrais, tais como o Banco da Inglaterra.
Eventualmente, todos os investimentos serão feitos através da Gestão de Ativos do Vaticano, controlado por um comitê de especialistas, que irá oferecer um leque de opções de investimentos éticos, com graus variáveis de risco e retorno, opções a serem escolhidas por agências individuais, tais como as Congregações. Ser prudente será a primeira prioridade, em vez de se ter altos retornos arriscados, no intuito de evitar perdas excessivas em tempos de turbulência.
No Ano Novo um auditor geral será nomeado. Este será subordinado ao Santo Padre, porém autônomo e capaz de conduzir auditorias em qualquer agência da Santa Sé a qualquer hora. O auditor geral vai ser um leigo.
Estas reformas são pensadas para tornar as agências financeiras vaticanas bem sucedidas, de forma que elas não mereçam tanta atenção da imprensa. Tais ambições não podem garantir que não encontraremos problemas nos próximos anos.
Estamos, porém, caminhando na direção certa. Uma princesa alemã me disse, certa vez, que muitos costumavam pensar do Vaticano como sendo algo do tipo uma antiga família nobre que se encaminha, vagarosamente, para a falência. Esperava-se que as pessoas aí sejam incompetentes, extravagantes e presas fáceis para os ladrões. Este equívoco já está sendo desfeito.
Os doadores esperam que as suas contribuições sejam administradas de forma eficiente e honesta, de sorte que os melhores resultados sejam alcançados para financiar as obras da Igreja, especialmente aquelas que visam pregar o Evangelho e ajudar os pobres a escaparem da pobreza. Uma Igreja para os pobres não deve ser pobremente administrada.
Recentemente, uma importante delegação dos EUA, formada principalmente por evangélicos, veio debater o nosso trabalho. Um terminou a conversa explicando que estaria rezando para o sucesso das reformas financeiras, pois queria que o Vaticano fosse um modelo para o mundo, não uma fonte de escândalos. Este é o nosso objetivo também.
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Os dias de desvios de dinheiro no Vaticano acabaram. Artigo de George Pell - Instituto Humanitas Unisinos - IHU