30 Setembro 2014
Foto: Ricardo Machado/Insituto Humanitas Unisinos-IHU |
O gancho que fechou a palestra do fim da tarde ajuda a compreender o debate iniciado às 19h30, no mesmo espaço, intitulado A noção de dispositivo em Foucault e Agamben. A continuidade da discussão buscou uma análise comparativa entre o autor francês e o italiano.
Sandro Chignola é professor de Filosofia Política no Departamento de Filosofia, Sociologia, Pedagogia e Psicologia Aplicada na Universidade de Padova – Itália. É autor, entre outros, de História de los conceptos y filosofia política (Madrid: Biblioteca Nueva, 2010). O Cadernos IHU ideias publicou recentemente o artigo Sobre o dispositivo. Foucault, Agamben, Deleuze, de autoria de Chignola e disponível para download.
Foucault além de Foucault
Antes de aprofundar o debate em torno do pensamento de Michel Foucault, Sandro Chignola chamou atenção sobre a figura do pensador francês, ressaltando que é preciso pensar o autor para além dele próprio e ter em conta as contradições em torno do entendimento que temos de sua identidade. “Claro que Foucault foi professor da Escola de France, mas é verdade também que foi expulso e ficou dez anos longe porque era homossexual. E me parece interessante pensar que nesta mesma Sorbonne ele é considerado um dos maiores filósofos de todos os tempos. Por isso é importante pensar Foucault além de Foucault”, destaca.
Chignola chamou atenção para o fato de que Foucault não praticava filosofia simplesmente como saber, mas como campo de ação permanente, portanto, político, isto é, acreditava que era possível fazer política por meio da filosofia. “Foucault recebeu a ideia de Nietzsche que a verdade não está fora da história, ou seja, a história está neste mundo e por isso há uma batalha para definir o que é a verdade”, explica. “Esta batalha é cotidiana e passa por todas as relações que vivemos. Esse é o sentido da filosofia para Foucault. Ela tem que lidar com a verdade e para isso tem que lidar com o mundo”, complementa.
Deleuze e Foucault
Sandro Chignola, ao fundo, em conferência no IHU. |
Na época, Foucault tinha uma melhor dimensão da complexidade das questões que estavam em jogo e entendia que não estava em jogo o estado autoritário alemão. “Klaus não era o militante leninista clássico. Não se tratava de gente que pretendia tomar o poder, mas sim o desejo radical de tornar-se livre. Tratava-se de uma liberdade dos aparatos de poder”, esclarece. “Os movimentos da década de 1970, hippies, grupos do leste europeu, feministas, não tinham um projeto de poder, mas de liberdade individual”, completa.
O fim do Estado moderno
Ao avaliar o fim do Estado moderno, Chignola ensaiou debates que seriam aprofundados na segunda conferência da noite e argumentou que os processos de globalização relegam ao mercado financeiro a governança global. “Creio que a governança que tende a se formalizar é a governança dos mercados, esta não eleita. Isso muda radicalmente a legitimidade de quem governa. Agora, uma decisão desses 'governos' que governam sem legitimação alguma decidem o que querem. Trata-se, portanto, de uma forma absolutamente tecnocrática de governabilidade, cujos impactos não são avaliados e parecem ter sido relegados a um momento futuro”, sustenta.
“Trabalhar com Foucault além de Foucault é seguir um trabalho que se compreende em um processo de tipo genealógico para entender não onde estamos, mas onde vamos, e compreender que o ponto onde estamos é sempre impactado por outros pontos que fazem a gente pensar de outra maneira. Temos que deslocar o cânone dos autores para pensarmos onde vamos. Pensar a política para além do Estado pode nos obrigar a discutir a autorreferencialidade da filosofia política para além dos gregos clássicos”, avaliou o conferencista.
Uma ética da profanação “desencarnada” e a dessubjetivação do sujeito: um debate acerca da noção de dispositivo em Foucault e Agamben
E acrescenta: “Ele será um dos motivos da sua constante desconfiança tanto em relação a Max Weber quanto à Escola de Frankfurt. Reconduzir a tomada dos sistemas de pensamento ao possível – isto é, à ‘experiência nua’ da ordem e de seus modos de ser, como Foucault define – significa atingir o plano sobre o qual está a “atitude positiva” do conhecimento implantado nos saberes que definem a ordem do discurso de uma determinada fase histórica. Perguntamo-nos, então, sobre a sua origem, onde Foucault buscou o termo ‘dispositivo’”.
A fim de se aproximar pontualmente do problema, Chignola se concentrou em uma conferência proferida por Agamben em 2006, intitulada O que é um dispositivo, que retoma o título de um ensaio importante de Deleuze, dedicado à filosofia de Michel Foucault. “Para Foucault, cada dispositivo é um posicionamento; o modo pelo qual se realiza a multiplicidade segundo a singularidade que é uma sua característica e que a distingue de outros processos em outros dispositivos”, explica Chignola.
Quando Agamben retoma o título do texto de Deleuze, ele o faz isolando três pontos que resumem o significado do termo dispositivo. “No entanto, o que mais interessa para Agamben é a relação que pode ser estabelecida em Foucault entre o aumento à crescente frequência do uso do termo dispositivo e o diagnóstico que descreve a progressiva governamentalização do poder”, mencionou o filósofo. Em seu ponto de vista, “o que interessa a Agamben é a ligação que pode ser estabelecida entre dispositivo e biopolítica”.
Agambem e uma perspectiva anárquica e messiânica
Chignola (foto) dá algumas pistas sobre a origem da compreensão peculiar de Agamben sobre o conceito de dispositivo, quando o turinense está “pensando por conta própria”: “Talvez se possa dizer que Agamben, leitor extraordinário, colecionador de citações, assim como Walter Benjamin, uma referência para ele, trabalha metodicamente os textos nos quais fixa sua atenção, com o objetivo de neles encontrar a centelha do brilho que nos permite compreender aquele ‘momento especialmente feliz’, em que sabemos que é hora de abandonar o texto que está sendo analisado e proceder por conta própria”.
Assim, Agamben cinde em dois grandes grupos ou classes que dividem o existente. De um lado estão os seres humanos, e do outro, os dispositivos, que não cessam de nos capturar. Agamben classifica como um dispositivo “qualquer coisa que tenha, de algum modo, a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, comportamentos, opiniões e discursos dos seres vivos”.
Em sua compreensão, Chignola acentua que essa captura dos humanos pelos dispositivos na filosofia agambeniana é unidirecional, nunca reversível. Diferentemente de Foucault, Agamben compreende subjetivação como sujeição e passivização. Chignola demonstra de forma bastante crítica o que considera ser um paradoxo no pensamento de Agamben:
“Em Agamben fica escondida, mas não muito, não só uma tentação ‘metafísica’ muito distante da genealogia de Foucault, mas uma visão bastante catastrófica do momento em que vivemos. Por um lado esse vórtice circular de máscaras que coincide com a linguagem que gira no vazio, que Agamben chama juntamente de Debord de a ‘sociedade do espetáculo em que vivemos’, por outro lado, a definição da atual fase do capitalismo atravessada por poderosos dispositivos de ‘dessubjetivação’ pelo consumo”.
Agamben e Foucault, pontos de vista
Isso afasta enormemente Agamben de Foucault, pondera Chingola, que se pergunta se realmente vivemos em sociedades nas quais nossos corpos inertes são atravessados “por gigantes processos de dessubjetivação, onde não existe nenhuma subjetivação real”. Ele pondera que “talvez a cena do capitalismo global não seja tão terrível e desesperadoramente pacífica como parece ser para Agamben”, vide as inúmeras insurgências mundo a fora nos últimos anos, dando mostras de inconformismo e reação à política do status quo.
Na obra filosófica de Agamben, em andamento porquanto sua produção intelectual segue em plena atividade, as brechas para uma alternativa a esse estado opressivo seriam os mecanismos da potência do não, cuja origem remonta ao conceito aristotélico de potência, e a profanação. Para Chignola, isso demonstra a perspectiva anárquica e messiânica que fundamenta o ideário agambeniano. “Não por acaso um de seus textos de referência é Zur Kritik der Gewalt, de Walter Benjamin”, observa.
Tais expedientes agambenianos não convencem Chignola, que diz não ser possível atribuir mais nada à política a partir desse ponto de vista, a não ser “esta ética da profanação desencarnada de qualquer sujeito. Só podemos dizer que o sujeito funciona como parte do dispositivo que dessubjetiva. Uma passivização implícita, na qualidade de falante que marca o sujeito e o toma como refém. Muito diferente é a filosofia do dispositivo de Foucault, que abre outras possibilidades”. E a liberdade é o grande mote do pensador falecido há 30 anos.
Reportagem de Márcia Junges e Ricardo Machado
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Foucault, Agamben e Deleuze – Provocações, genealogia e debates com Sandro Chignola - Instituto Humanitas Unisinos - IHU