Por: Jonas | 13 Agosto 2014
Ao cruzar a fronteira entre os Estados Unidos e o México, aproximadamente 60 mil crianças provenientes da América Central foram detidas desde outubro de 2013 até junho desse ano. Essa situação reacendeu o debate sobre as políticas migratórias dos Estados Unidos, onde 11 milhões de migrantes indocumentados são altamente vulneráveis ao abuso dos seus direitos básicos que são garantidos pelas leis do país e pela legislação internacional.
Fonte: http://goo.gl/wrSQ |
A reportagem é de Aleksander Aguilar, publicada por Nota de Rodapé, 10-08-2014.
Já são 60 mil em menos de um ano. Uma grande quantidade de crianças de idades tão tenras quanto cinco anos. Elas viajam a partir de atravessadores (coyotes) até quatro mil km em lanchas, a pé, clandestinamente em trens de carga e ônibus, passando fome e enfrentando assédio, violência, assaltos, e inclusive o risco de sequestro de máfias narcotraficantes que os infligem cirurgias clandestinas de extração de seus órgãos para a venda.
Não estamos falando, pese que a intensidade do relato assim o faça soar, de algum roteiro hollywoodiano de imaginação fértil. Tampouco de distantes rincões na Síria ou em Gaza e dos refugiados de suas atuais guerras. Enquanto assiste-se estarrecido a absurda violência de Israel sobre a Palestina, o Brasil e grande parte do planeta ainda percebe pouco e ignora muito uma outra realidade, regional, dramática e nefanda, que se dá no nosso continente. Ela se inicia bem ali, logo acima da Venezuela, nesta região latino-americana que infelizmente para a maioria dos brasileiros ainda soa tão exótica quanto a longínqua região do Oriente Médio – a América Central. E conforma um contexto em que se misturam violência social, segurança regional e narcotráfico internacional.
A atual crise das crianças migrantes centro-americanas evidencia não apenas um grave problema migratório, mas revela a avassaladora situação de precariedade socioeconômica em que se encontra a América Central, principalmente nos países do chamado Triangulo Norte do istmo – El Salvador, Guatemala e Honduras. Desde essas nações, que estão entre as mais vulneráveis do continente, essa multidão de crianças atravessa todo o México até encontrar o “muro da vergonha”, que separa a América Latina dos Estados Unidos, onde se encontrarão com um limbo migratório: nem podem permanecer, nem podem serem enviadas de volta.
O drama social é evidente, e revela a desumanidade do nosso sistema internacional estatal – nem os Estados de origens dessas crianças, nem o Estado de destino as desejam. Não há um território que busque a realização dos seus direitos e as crianças migrantes centro-americanos transformaram-se em relegados sociais internacionais.
Uma verdadeira emergência humanitária que tem como uma de suas principais causas o corrente modelo econômico, característico da atual América Central, de dependência crônica das remessas – o dinheiro que os imigrantes, legais ou ilegais, centro-americanos que vivem na América do Norte enviam para os seus parentes nos países de origem – e é responsável, em larga medida, por manter a economia do istmo girando. Nos últimos 20 anos os centro-americanos enviaram aos seus países valores em remessas que alcançam 120 bilhões de dólares. Isso criou na região uma economia de consumo financiada artificialmente, e em que os lucros acabam concentrados nas mãos das oligarquias tradicionalmente dominantes, já que são os ricos que controlam os espaços de bens de consumo. Tal concentração, por sua vez, aumenta a desigualdade social que, como sabemos, também faz aumentar a violência. O desemprego crônico gera a migração massiva e investimentos produtivos são feitos em outros países, mesmo nos da região, melhor estruturados, como Costa Rica e Panamá. Assim exportar pobres se converte num negócio mais lucrativo do que buscar reduzir a imigração com tentativas de construção de uma matriz produtiva sólida.
O fator “maras” centro-americanas
É uma sequência perversa, e que relaciona migração com violência. Mas a situação econômica não totaliza a explicação. A Nicarágua tem uma economia talvez ainda mais vulnerável, mas suas crianças não fazem parte desta crise.
Porque entre essas pontas há o fator “maras”, as famosas gangues centro-americanas, que estão centradas no Triângulo Norte, e não no país Sandinista, que tem números de violência muito menores que os dos seus vizinhos. As gangues, ou no espanhol “pandillas”, é um fenômeno resultante do grande número de famílias fragmentadas, consequência direta das guerras civis que convulsionaram a América Central entre os anos 1960 e 1990, e da degeneração do tecido social familiar e comunitário que a migração produz. Milhares de centro-americanos da diáspora dessas guerras foram deportados pelo governo Bush (pai) a partir dos anos 1990.
Em terreno fértil para a violência, como são os territórios socialmente precários centro-americanos, e sem expectativas de bem-estar via “sistema”, consolidou-se dois grupos poderosos e rivais: a Mara Salvatrucha 13 e Pandilla Barrio 18, hoje consideradas duas das maiores gangues do mundo.
Muitas escolas públicas de bairros periféricos de Guatemala, El Salvador e Honduras, em lugar de proporcionar segurança e oportunidade para a juventude local, tornam-se espaços de recrutamento das pandillas. Os jovens que se negam são ameaçados e muitos assassinados, e a migração começa por aí – esses cidadãos sem segurança mínima nos seus próprios países são obrigados a sair de casa para não serem obrigados a se unir às gangues, e o caminho natural é a rota ao Norte. As maras dominam bairros inteiros e afetam diretamente a vida dos mais pobres, cobrando extorsão desde a entrada de transporte público em seus territórios até a entrega de jornal nessas áreas que comandam. Essas pandillas estão presentes nos três países e associadas em redes transnacionais. A perseguição de gangues e o recrutamento começaram a se impor como principais motivadores da fuga para os Estados Unidos.
A migração centro-americana hoje é uma catástrofe social para os pobres e um grande negócio para os ricos.
Dinheiro estadunidense resolve?
Os presidentes dos países do Triângulo Norte centro-americano, em reunião com Obama em Washington em julho deste ano, apontam parte da culpa nos Estados Unidos e utilizam a crise para solicitar mais investimento em segurança regional por parte do país, baseado no que foi o Plano Colômbia e na Iniciativa Mérida (para o México) mas há poucos indícios de que norte-americanos se dediquem a ações de mesma dimensão.
Os líderes da América Central argumentam que esses planos – essencialmente polêmicos programas de combate ao narcotráfico de bilhões de dólares financiados pelos Estados Unidos – foram exitosos nas regiões ondem foram implementados, mas empurraram o tráfico internacional para a América Central. Tal sucesso, porém, é tema de grande controvérsia, pois seus resultados positivos são parciais, frágeis e acompanhados de um inaceitavelmente alto custo humano, com dezenas de milhares de mortes associadas, cuja principal lição deveria ser a de não se tornar modelo para coisa alguma.
O governo Obama, na verdade, possui desde 2009 uma iniciativa especifica para a América Central com objetivo semelhante ao Colômbia e Mérida (chamado CARSI, na sigla em inglês), mas os impactos foram mínimos, pois sua alocação de recursos para os centro-americanos até agora foi de 642 milhões de dólares – um valor irrisório quando se pensa nos 90 bilhões de dólares que os Estados Unidos investiram em segurança fronteiriça repressiva nos últimos dez anos.
“Pobreza não garante status de refugiado”
Atualmente, as crianças migrantes centro-americanas que chegam aos muros do “mundo livre” são detidas na patrulha de fronteira dos Estados Unidos e em até 72 horas são deslocadas para albergues onde recebem cuidados médicos e psicológicos e assessoria jurídica. Devem então esperar que seu caso seja julgado por um tribunal, o que pode levar meses.
Essa situação reacendeu o debate sobre as políticas migratórias dos Estados Unidos, onde 11 milhões de migrantes indocumentados são altamente vulneráveis ao abuso dos seus direitos básicos que são garantidos pelas leis do país e pela legislação internacional. Uma significativa reforma migratória nos Estados Unidos é parte da solução, de forma a respeitar famílias, proteger direitos laborais dos migrantes, e garantir o acesso ao processo legal.
Como lembra a internacionalista Juliana Vitorino, nesse cenário, “o governo dos EUA não é isento de culpa, já que foi, ele mesmo, promotor de desestabilizações políticas, ingerências, financiador de guerras civis na América Central, além de ter transplantado e piorado o problema da violência do pós-guerra com a deportação de membros de gangues para El Salvador, Guatemala e Honduras, países onde nasceram esses novos migrantes indesejáveis”.
Entre as razões dessa cumplicidade dos Estados Unidos às condições que forçam a migração centro-americana estão o apoio histórico às ditaduras militares e regimes de violência na região, a promoção de acordos de livre comércio e políticas econômicas que arrasam a agricultura familiar e degradam os serviços públicos, e a adoção de políticas migratórias cada vez mais duras, que separam famílias com acirrada deportação.
Mas enquanto os presidentes centro-americanos buscam receber mais ajuda financeira dos Estados Unidos para manejar a crise, o governo norte-americano demonstra que sua resposta à questão descansa em outras prioridades. A melhor solução para o governo Obama é retirar o problema da sua porta o mais breve possível. E assim a primeira medida do presidente estadunidense diante da crise foi solicitar recursos especiais ao Congresso de 3.700 bilhões de dólares para mitigar a crise, aumentando o número de agentes de fronteira e de juízes migratórios. Obama deixou claro que sua intenção é repatriar as crianças que chegam aos Estados Unidos porque, em suas palavras, “o status de refugiado não é outorgado a alguém apenas porque sua família vive em uma região ruim ou em pobreza”.
A estimativa é de que até o final de 2014 o número de crianças centro-americanas que chegarão à fronteira dos Estados Unidos alcance as 90 mil.
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As crianças migrantes centro-americanas estão no limbo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU