15 Mai 2014
“Uma coisa era pensar a Igreja em um ambiente restrito, como o europeu daquela época, no qual a tradição cristã estava inserida como fator cultural predominante; outra coisa era inserir-se em culturas alheias, nas quais o cristianismo era algo totalmente estranho e que já possuíam sistemas religiosos milenares sem relação nenhuma com Cristo ou com o judaísmo do Antigo Testamento. Se a solução doutrinária da época foi a formulação de conceitos como fé implícita, batismo de desejo, cristianismo anônimo (ou seja, afirmar que aqueles povos eram cristãos e não sabiam), o Vaticano II traz, em seu ensinamento, novidades que acabam, sim, por romper com o entendimento oriundo de Florença.” escreve Renato Machado, doutor em teologia, ao comentar o artigo “Diálogo Inter-Religioso: 50 anos após o Vaticano II”, de autoria do teólogo vietnamita Peter Phan, recentemente publicado pelos Cadernos Teologia Pública, no. 86.
Eis o artigo.
O cinquentenário do Concílio Vaticano II vem produzindo análises diversificadas, que buscam compreender a herança deste concílio e suas reais perspectivas para a Igreja. No artigo "Diálogo Inter-Religioso: 50 anos após o Vaticano II", publicado no Cadernos de Teologia Pública nº 86, pelo Instituto Humanitas Unisinos, Peter Phan debruça-se sobre o discurso conciliar a respeito da relação da Igreja com as religiões não cristãs. Seu texto tem como objetivo fazer um levantamento da teologia e prática do diálogo inter-religioso na Igreja Católica Romana desde o término do Vaticano II, projetando suas direções futuras. O autor realiza esta reflexão perguntando-se pelas perspectivas atuais desta questão em um olhar retrospectivo e analítico da mesma: segundo Peter Phan, é preciso que perguntemos de onde viemos, onde estamos e para onde vamos, quando nos referimos ao diálogo inter-religioso. Assim, ele busca revisar o olhar católico e o discurso a respeito desta questão no contexto da década de 60, observar os acontecimentos mais importantes ocorridos na Igreja em relação ao diálogo com religiões não cristãs nos últimos 50 anos e, por último, olha perspectivamente para as direções e trajetórias que parecem surgir no início do terceiro milênio cristão, quanto à busca por uma vida comum harmoniosa entre os adeptos de diferentes religiões.
Seu ponto de partida é o documento Nostra Aetate, produzido no contexto do Vaticano II e que trazia, de forma oficial, a Declaração sobre a Relação da Igreja com as Religiões Não Cristãs. Phan afirma que, por mais que se assuma uma hermenêutica conciliar de reforma, que não romperia com a identidade eclesial pré-conciliar, o fato de termos, até então, as orientações do Concílio de Florença, ocorrido entre 1438 e 1445, como ensinamento eclesial oficial sobre a relação com outras religiões, impossibilita não haver um rompimento sobre esta questão. Os séculos transcorridos entre Florença e o Vaticano II e os fatos históricos ocorridos neste longo tempo, revelaram facetas da realidade que não cabiam mais na compreensão universalizante da Igreja Católica da época florentina. Se, em Florença, cunha-se a expressão extra ecclesiam nulla salus (fora da Igreja não há salvação), ao afirmar que a Lei Mosaica e as prescrições veterotestamentárias cessavam em Cristo, sendo substituídas pelos sacramentos neotestamentários, a chegada de europeus aos continentes americano, asiático e africano colocava sérios questionamentos a estas afirmações. Uma coisa era pensar a Igreja em um ambiente restrito, como o europeu daquela época, no qual a tradição cristã estava inserida como fator cultural predominante; outra coisa era inserir-se em culturas alheias, nas quais o cristianismo era algo totalmente estranho e que já possuíam sistemas religiosos milenares sem relação nenhuma com Cristo ou com o judaísmo do Antigo Testamento. Se a solução doutrinária da época foi a formulação de conceitos como fé implícita, batismo de desejo, cristianismo anônimo (ou seja, afirmar que aqueles povos eram cristãos e não sabiam), o Vaticano II traz, em seu ensinamento, novidades que acabam, sim, por romper com o entendimento oriundo de Florença.
Na Lumen Gentium, por exemplo, encontra-se declarações que afirmam a proximidade de Deus de todos aqueles que o buscam, mesmo desconhecendo-o, reconhecendo-se como valor Evangélico tudo que há de bom e verdadeiro nestas culturas. Além disso, o mesmo texto reconhece o desígnio salvífico no Povo de Israel e nos Muçulmanos, uma vez que cultivam sua fé a partir de Abraão. Já o decreto Ad Gentes afirma que “o que de bom há no coração e no espírito dos homens ou nos ritos e culturas próprias dos povos, não só não se perde, mas é purificado, elevado e consumado para a glória de Deus”. Finalmente, no próprio Nostra Aetate, declara-se que a Igreja Católica em nada rejeita o que há de verdadeiro e santo nas religiões primais, como hinduísmo e budismo, guardando sincero respeito pelos preceitos e doutrinas destas tradições, sem, com isso, deixar de anunciar Jesus Cristo. Há, por isso, uma clara mudança de paradigma entre Florença e o Vaticano II e, para Peter Phan, a jornada entre um concílio e outro se deu em 500 anos de caminhada em ziguezague, com muitos desvios e estradas secundárias. Por isso, o Vaticano II assume seu lugar na história como um evento, no qual acontece uma profunda conversão e uma inesperada transformação intelectual para a Igreja. Pode-se reconhecer nele um acontecimento pneumatológico, que sopra vida nova na arrogante visão eclesiástica que impedia de reconhecer o outro como portador da verdade.
Esta transformação, porém, não se deu de forma tranquila. Peter Phan relata, em seu artigo, que a declaração Nostra Aetate quase não foi aprovada. Houve uma primeira versão, elaborada pelo Secretariado para os Judeus que não foi sequer recebida pela Comissão Teológica, por ter sido considerada puramente pastoral. Uma segunda versão foi retirada da pauta por pressão dos Estados Árabes. Uma terceira versão, aprovada para análise, sofreu objeção por parte de três grupos: um grupo conservador, que o rejeitava por não mais afirmar que a antiga aliança com o povo de Israel havia sido substituída pela Nova Aliança, em Cristo; um grupo de patriarcas e bispos das Igrejas Católicas Orientais do Oriente Médio, que acusavam o texto de favorecer o Estado de Israel; e um grupo de bispos asiáticos e africanos, que não se satisfizeram como texto por este se referir apenas ao judaísmo, não mencionando outras Tradições Religiosas.
O que resultou de todos estes debates foi o texto publicado como Declaração sobre a relação da Igreja com as religiões não cristãs que, sendo o documento mais breve do Vaticano II, tornou-se um dos mais influentes do Concílio, extrapolando os limites da própria Igreja. São 41 frases distribuídas em cinco parágrafos: o primeiro trata da origem e destino comum da humanidade em Deus, elaborando a fundamentação teológica para o diálogo inter-religioso; o segundo discorre sobre as tradições hinduísta e budista; o terceiro discursa sobre o Islã; o quarto, mais extenso, trata do judaísmo; e o último reprova quaisquer formas de discriminação contra qualquer indivíduo ou grupo. E é a partir de Nostra Aetate que precisamos realizar a leitura histórica do diálogo inter-religioso dos últimos cinquenta anos.
O lugar onde estamos
Para Peter Phan, se viemos do Concílio de Florença, perfazendo 500 anos de caminhos tortuosos, o documento sobre diálogo inter-religoso do Vaticano II é o lugar onde chegamos. O olhar sobre os desdobramentos práticos deste documento aponta os caminhos para onde iremos. Por isso, Phan realiza esta leitura de contexto através dos pontificados onde este documento passou a vigorar, a saber, em Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI. Paulo VI, por exemplo, foi o primeiro Papa a visitar a Índia e a citar uma oração do Upanixade, além de estabelecer o Secretariado para os Não-Cristãos, renomeado oportunamente de Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-Religioso. João Paulo II é visto por Phan como o Papa que mais fez pelo diálogo inter-religioso, utilizando-se habilmente de gestos simbólicos que aproximaram diferentes tradições.
Peter Phan destaca, neste sentido, a visita realizada por João Paulo II à sinagoga de Roma, a convocação do Dia Mundial de Oração pela Paz, em Assis, seus muitos encontros com budistas e muçulmanos, sua visita à Terra Santa e a colocação de uma oração numa fenda do Muro Ocidental, suplicando a Deus que perdoasse os cristãos por seus pecados contra os judeus.
Já Bento XVI, lembrado por Phan como mais reservado, em relação aos anteriores, realizou gestos bastante significativos em relação aos judeus e muçulmanos, como as visitas ao Muro Ocidental e a Auschwitz, bem como à Mesquita Azul, na Turquia, ao Domo da Rocha e à Mesquita de Al-Aqsa, em Jerusalém. Da mesma forma, o número de documentos do magistério sobre o diálogo inter-religioso, sob estes pontificados, foi o mais prolífico de toda a história da Igreja, sendo que o diálogo judaico-católico tem sido o mais amplo e bem-sucedido, sendo considerado um verdadeiro legado de João XXIII. Nesta linha, surgem também várias produções teológicas que tentam responder ao contexto pluralista de nosso tempo, buscando um diálogo frutífero entre as religiões.
Peter Phan destaca a produção de Paul Knitter, teólogo católico que amplia a categorização de diálogo entre as religiões em quatro modelos: o modelo de substituição, no qual o cristianismo seria a única religião verdadeira, que substituiria as demais com o tempo; o modelo da consumação, que reafirma o cristianismo como única religião verdadeira, mas reconhece elementos de verdade e graça nas demais religiões, defendendo uma complementaridade entre estas e o cristianismo através do diálogo; o da mutualidade, que sustenta o valor próprio de cada religião, sem que haja alguma que seja superior, sendo todas conclamadas ao diálogo e colaboração em projetos de libertação, que realizem sua verdadeira natureza; e o modelo de aceitação, que acentua a diversidade entre as religiões, sem buscar um terreno comum entre elas. Obviamente que, junto à essa fecundidade eclesial na busca do diálogo inter-religioso, houve muitos recuos e adversidades, principalmente em tempos bem recentes, nos quais se aventava uma “reforma das reformas” iniciadas no Vaticano II.
Incentivadas, principalmente, pelo fantasma da ditadura do relativismo, estas atitudes tem jogado uma verdadeira ducha de água fria sobre os esforços para avançar no diálogo entre as religiões e no próprio ecumenismo. Peter Phan cita, neste rol, a atuação da Congregação para a Doutrina da Fé no disciplinamento de teólogos que tem buscando ampliar as fronteiras relacionais entre as religiões. Além disso, no ano 2000, a Declaração Dominus Iesus, que no melhor espírito florentino retoma a afirmação de que os não cristãos se encontram em situação pecaminosa, provocou vários protestos entre as comunidades que militam pelo diálogo inter-religioso. Algumas atitudes pontuais de Bento XVI também contribuíram com este retrocesso, como a citação de Manuel II Paleologus, ofensiva à figura de Maomé, em palestra proferida da Universidade de Regensburg, em 2006; a revogação da excomunhão do bispo Richard Williamsom, em 2009, sendo que este bispo negava a ocorrência do Holocausto; a reformulação da oração pelos judeus na Missa Tridentina da Sexta- feira Santa, na qual se pede que os judeus reconheçam Jesus como seu salvador.
Caminhos que se abrem
Ao abordar a terceira categoria a que se propõe em seu artigo – “para onde vamos” – Peter Phan lança um olhar sobre algumas questões teológicas essenciais, na opinião do autor, para romper o atual impasse no diálogo inter-religioso. Primeiramente, seria preciso aprofundar uma teologia do Espírito (pneumatológica) como chave para o diálogo inter-religioso. Phan insiste que um diálogo entre tradições religiosas não poderia ter como ponto de partida, por parte do Igreja, a figura de Jesus Cristo, mas o Espírito Santo: no Espírito estaria uma realidade universal concretamente reconhecível na diversidade histórica, ao contrário da figura de Cristo, inscrita em determinado tempo e espaço, que não são universais.
No Espírito se reconhece mais claramente o Absoluto, o Transcendente que se inscrevem na elaboração histórica de diversos povos. Em segundo lugar vem a própria questão cristológica. O autor enfatiza que há uma profunda diferença entre reconhecer Jesus como salvador e redentor universal e reivindicar Jesus como salvador. No primeiro caso se encontra o problema instaurado pela Dominus Iesus: colocar Jesus como único salvador possível para a humanidade, embasado no fato de que, sendo Filho de Deus, ele teria revelado Deus de maneira plena. Citando Jacques Dupuis, Phan lembra que, sendo humana, a relação de Jesus com Deus também era limitada e inacabada e que, por isso, pode-se reconhecer em outras relações, de outras tradições religiosas, a mesma legitimidade.
Além disso, Jesus era judeu e este fator deveria servir como fomento para o aprofundamento do diálogo entre cristãos e judeus. Reivindicar Jesus como salvador, portanto, ao invés de exigir que ele seja o único salvador, pode servir para alimentar uma cristologia que dialogue com a pluralidade religiosa. Em terceiro lugar, Phan toca na questão eclesiológica missionária no contexto do diálogo inter-religioso: em contraponto à ideia de missio ad gentes, que guarda um caráter de conversão através do anúncio kergmático, o autor levanta a possibilidade de uma missio inter gentes e cum gentibus, partindo-se do pressuposto de que o Espírito já se encontra atuante e presente na história, independente da evangelização promovida pela Igreja. Assim, o caráter missionário se daria no trabalho conjunto com as diversas tradições religiosas na luta pelo Reino.
No epílogo de seu artigo, Peter Phan arrisca algumas previsões sobre o futuro do diálogo inter-religioso na Igreja a partir de Francisco. O autor lembra que o atual Bispo de Roma ainda não deixou uma longa lista de textos e que não parece ter a pretensão de ser reconhecido como filósofo ou teólogo, mas que vem revelando um carisma diferente da erudição teológica, que parece vir ao encontro daquilo que a situação atual da Igreja exige. Francisco tem transparecido, em gestos e atitudes, a pressuposição para o diálogo na pluralidade, de acordo com o atual contexto sócio cultural: desde sua oração silenciosa, em sua primeira entrevista coletiva, em respeito aos que não compartilhavam a fé católica ou não tinham fé alguma, passando pela crítica que fez, quando ainda era cardeal, ao discurso de Bento XVI em Regensburg, até a própria escolha do nome Francisco para seu pontificado.
É referindo-se a Francisco de Assis, aliás, que Peter Phan conclui seu artigo, lembrando a história do encontro entre o poverello de Assis e o sultão Malek al-Kamil, durante a quinta cruzada. Francisco, acompanhado do Irmão Illuminato, cruzou a linha de batalha. Ambos foram presos e levados até o sultão. Ao se encontrarem, Francisco e o sultão tentaram converter um ao outro, até se darem conta que ambos conheciam e amavam a Deus. Durante 20 dias, então, Francisco e Illuminato ficaram hospedados com o sultão, discutindo sobre oração e vida mística. Ao partirem, Francisco e Illuminato ganharam do sultão uma corneta de marfim, que se encontra até hoje na cripta da Basílica de São Francisco, em Assis. Por isso, Peter Phan conclui seu artigo dizendo: “Esse encontro entre Francisco e Malek al-Kamil é um paradigma para o diálogo inter-religioso em nossa época. Apesar de diferenças na religião, as pessoas podem encontrar terreno comum em suas experiências de Deus. O diálogo exige que verdadeiramente escutemos a outra pessoa: mas, para ter condições de fazer isso, precisamos primeiramente ver a outra pessoa como um ser humano, que é amado por Deus e deve ser respeitado por nós. Não há outro caminho para a paz, tanto no século XII quanto no século XXI”.
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Espírito de diálogo e diálogo no Espírito - Instituto Humanitas Unisinos - IHU