28 Julho 2014
"A teologia nas mãos das mulheres descobriu Jesus Cristo como um amigo compassivo, libertador dos fardos, um amigo que consola na tristeza e um aliado nas lutas das mulheres. Por meio de sua vida e de seu Espírito, ele traz salvação – dando-lhes de volta a plena dignidade pessoal diante de Deus. A benção que elas encontram em sua relação com Jesus não é apenas uma benção particular e espiritual, embora seja isso também", afirma Elizabeth Johnson, em artigo publicado no Global Sisters Report, 01-04-2014.
Elizabeth A. Johnson, religiosa da Congregação das Irmãs de São José, é professora de teologia na Universidade de Fordham, em Nova York. Ela irá receber o Prêmio Liderança de Destaque da LCWR (LCWR Outstanding Leadership Award) na assembleia anual da organização, a ocorrer Nashville, Tennessee, em agosto.
Nota do editor: O texto original foi publicado em bósnio sob o título “Isus I Žene: Uspravite Se!”, na edição especial de 2012 (Isus iz Nazareta: U Perspektivi Medureligijskog Dijaloga) da revista franciscana, com sede em Saraievo, chamada Svjetlo Riječi. Pediu-se a Johnson para abordar o assunto mulher em ensaios sobre o significado de Jesus Cristo numa sociedade pluralista e multirreligiosa (católica, ortodoxa, muçulmana e ateia).
Segunda parte de uma série de dois artigos. A primeira parte pode ser lida aqui.
Eis o artigo.
Vida, morte e ressurreição de Jesus
Os estudos das relações de Jesus durante sua vida pública revelam a sua falta de temor às mulheres e um forte interesse no florescimento delas. Nenhuma palavra de menosprezo ou ridicularização saiu de sua boca, nem ele viu as mulheres como uma classe inferior de seres humanos. Tratando-as com graça e respeito, curou, exorcizou, perdoou e restaurou-as a “shalom”, estando atencioso com as mais necessitadas: a pequena que tinha acabado de morrer, a viúva cujo filho tinha falecido recentemente, a viúva pobre que deu tudo o que tinha ao templo, a adúltera prestes a ser apedrejada.
Jesus teve uma preocupação particular pelas pessoas nas margens da sociedade, e esta preocupação se estendia por completo às prostitutas a quem ele acolheu em sua mesa, até mesmo dizendo ao sacerdotes que tais mulheres entrariam no Reino do Céu antes deles. (Mt:21,31). Pessoalmente, as mulheres são contadas entre seus amigos; as irmãs Marta e Maria, por exemplo, o abrigaram em sua casa e receberam seus ensinamentos. Resumir isto está próximo do impossível, mas o Papa João Paulo II captou a essência:
“Que este pesar se traduza, para toda a Igreja, num compromisso de renovada fidelidade à inspiração evangélica que, precisamente no tema da libertação das mulheres de toda a forma de abuso e de domínio, tem uma mensagem de perene atualidade, que brota da atitude mesma de Cristo. Ele (...) teve para com as mulheres uma atitude de abertura, de respeito, de acolhimento, de ternura. Honrava assim, na mulher, a dignidade que ela sempre teve no projeto e no amor de Deus. (...) Vem-nos espontaneamente a pergunta: em que medida a sua mensagem foi recebida e posta em prática?” (Carta às mulheres, Conferência Mundial sobre a Mulher, julho de 1995, parágrafo 3.)
Além de suas ações, a pregação de Jesus é inclusiva para com as mulheres. Ele nunca estabeleceu uma forma de agir para homens e outra para mulheres. Observemos e ficaremos surpresos pelo fato de que o Sermão da Montanha é endereçado a todos; tudo o que é certo aos homens também o é às mulheres. De forma radical, a visão do Reino de Deus que permeia o seu ensino supera as relações de injustiça: os últimos deverão ser os primeiros, e os primeiros os últimos, de forma que, no final, um novo tipo de comunidade possa se formar.
As parábolas que Jesus contou também honram as mulheres apontando para a suas realidades humanas como símbolos dignos do Deus vivo. Nas escrituras judaicas, Deus é dito com imagens femininas em formas comoventes e belas – como uma mulher grávida, mãe lactante, parteira, cuidadora, ou como Senhora Sabedoria (“Sophia”) governando o mundo com ternura e poder.
Influenciado por esta sua própria herança bíblica, Jesus também falou via imagens femininas em sua pregação. O Reino de Deus é como o fermento que uma mulher pega e mistura com três porções de farinha, até que tudo fique fermentado; eis aqui o Deus feminino que faz pão, trabalhando no fermento da nova criação até que tudo esteja transformado. (Mt:13,33)
Talvez ainda mais surpreendente seja a parábola da mulher que procura por sua moeda. Ela perdeu uma das suas 10 moedas de prata (economias, seguro para quando estiver na velhice?), e então vira a casa de cabeça para baixo até a encontrar. Em seguida, chama suas amigas e vizinhas para se alegrar com elas, pois tinha encontrado o que havia perdido. (Lc:15,8-10). Aqui temos uma imagem maravilhosa de Deus, o Redentor, procurando – de cima a baixo – pelo pecador.
Esta parábola é uma de duas, sendo a outra a do bom pastor que procura por sua ovelha perdida. Ambas revelam o amor enorme de Deus pelos que se perdem. Embora o imaginário cristão favoreceu o pastor, a dona de casa está lá para refletir como a vida diária das mulheres oferece imagens para se falar de Deus. O mesmo acontece com animais fêmeas: certa vez Jesus referiu-se a si mesmo usando o imaginário feminino, ao desejar poder reunir o povo de Jerusalém em de seus braços como uma mãe galinha reúne seus pintinhos debaixo das asas. (Mt:23,37).
Além de curar as mulheres de suas enfermidades, de desfrutar de suas amizades e de falar de Deus por meio delas, Jesus as convidou para fazerem parte de seu círculo de seguidores próximos. Elas deixaram suas famílias e lares para se juntar a ele na estrada para a Galileia. Elas absorveram o seu ensinamento e se juntaram a ele em refeições comunitárias alegres –uma antecipação da vinda do Reino. Os ricos entre eles financiaram o seu ministério, provendo de seu próprio bolso o que era necessário à comunidade:
Depois disso, Jesus andava por cidades e povoados, pregando e anunciando a Boa Notícia do Reino de Deus. Os Doze iam com ele, e também algumas mulheres que haviam sido curadas de espíritos maus e doenças: Maria, chamada Madalena, da qual haviam saído sete demônios; Joana, mulher de Cuza, alto funcionário de Herodes; Susana e várias outras mulheres, que ajudavam a Jesus e aos discípulos com os bens que possuíam. (Lc:8,1-3).
Os nomes destas e de outras mulheres (“várias outras”, “com ele”) são ditos inúmeras vezes nos evangelhos, mas se tornaram uma parte esquecida da história.
O discipulado das mulheres durante o ministério de Jesus não cessou no final de sua vida. Elas o acompanharam até Jerusalém, tornando-se o ponto em movimento do testemunho para a paixão. Cada um dos quatro evangelhos narra que, enquanto os discípulos correram e se esconderam quando Jesus foi preso, as mulheres se mantiveram em vigília com ele na cruz. Na verdade, a única pessoa nomeada em todos os quatro evangelhos como tendo permanecido junto à cruz é Maria Madalena. Por terem sido as mulheres que ficaram, elas sabiam onde estava a sepultura e foram as primeiras a descobri-la vazia quando foram finalizar a unção de seu corpo no primeiro dia da semana. Aí, elas encontraram o Cristo ressuscitado e foram incumbidas de “ir e informar” aos outros.
Maria Madalena, a quem a Igreja mais tarde chamou de “a apóstola aos apóstolos, e as demais mulheres assim fizeram, embora os homens não acreditassem nelas, pensando que eram apenas mulheres histéricas. Não obstante, a Escritura mostra que, tanto em sua vida terrena quanto em sua vida de ressuscitado, Jesus Cristo incluiu as mulheres em sua comunidade não como subordinadas aos homens, mas como irmãs de seus irmãos e, no caso das proclamação da ressureição, mesmo como aquelas em quem primeiramente confiou.
Através do prisma da experiência feminina, a crucificação de Jesus constitui uma enorme crítica contra o patriarcado. Eis aqui a própria carne transformada em Verbo (“E a palavra se fez homem” [Jo,1:14]) trazida à morte por tortura pelo poder estatal, derramando-se no amor abnegado. Este evento é o exato oposto do exercício do poder dominador masculino. À luz da cruz, teólogas feministas refletem que, sociologicamente, seria melhor que a encarnação tivesse ocorrido num ser humano masculino.
Pois, se uma mulher tivesse pregado a compaixão e tivesse doado a si mesma até morte, o mundo teria se perguntado: Afinal, não será isso o que as mulheres devem fazer? Mas para um homem viver e morrer assim num mundo de privilégios masculinos é desafiar o ideal patriarcal da dominação masculina em sua raiz. A cruz é a “kenosis”, o autoesvaziamento, do patriarcado.
Na ressurreição, o Espírito de Deus preenche Jesus com vida nova para além da morte. Presente de uma forma nova, Jesus Cristo se torna a pedra angular da nova comunidade que é o seu corpo, a Igreja. Em Pentecostes, as mulheres bem como os homens estão no andar de cima quando línguas de fogo sinalizam o derramamento do Espírito: “Todos ficaram repletos do Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas.” (At,2:4). Os primeiros cristãos adotaram o rito de iniciação do batismo.
Diferentemente o ritual judeu da circuncisão, desenvolvido apenas com os homens, o batismo é administrado pela imersão em água, e assim é feito da mesma forma com pessoas de ambos os gêneros. A carta de Paulo aos Gálatas contém um hino batismal cristão primitivo que mostra o que significa esta prática. Assim que o recém-batizado é retirado da água, trajando vestes brancas, cantam: “Não há mais diferença entre judeu e grego, entre escravo e homem livre, entre homem e mulher, pois todos vocês são um só em Jesus Cristo.” (Gl,2:4) Na unicidade do Espírito santificador, transcendem-se todas as divisões baseadas na raça ou classe, ou mesmo no gênero. O poder do Cristo ressuscitado se torna efetivo ao ponto em que esta visão se torna realidade na comunidade.
Nas primeiras décadas da Igreja há uma grande evidência para com um forte ministério das mulheres divulgando o Evangelho assim como seus colegas homens. A partir dos Atos dos Apóstolos e das cartas de Paulo, temos uma imagem das mulheres como missionárias, pregadoras, mestres, profetas, apóstolas, curadoras, que falam em línguas e líderes das comunidades. Elas são colegas de trabalho de Paulo e de outros homens, com todos os dons do carisma que se deu para a edificação da Igreja. Hoje, estudiosos estão tentando listar quais forças trouxeram este ministério das mulheres nos primórdios da Igreja para um estado diminuto. Mas não há dúvida de que Febe, Prisca, Júnia, Pérside e muitas outras pregaram o evangelho nos primeiros dias da Igreja. (Ver as cartas de Paulo aos Romanos, capítulo 16).
Conclusão
A teologia nas mãos das mulheres descobriu Jesus Cristo como um amigo compassivo, libertador dos fardos, um amigo que consola na tristeza e um aliado nas lutas das mulheres. Por meio de sua vida e de seu Espírito, ele traz salvação – dando-lhes de volta a plena dignidade pessoal diante de Deus. A benção que elas encontram em sua relação com Jesus não é apenas uma benção particular e espiritual, embora seja isso também.
Esta benção igualmente influencia suas vidas nos domínios públicos e sociais, inspirando a luta por libertação das estruturas de dominação em todas as dimensões da vida. Em nome de Cristo, a sociedade e a Igreja são chamadas à conversão dos corações, das mentes e estruturas, de forma que o Reino de Deus possa se afirmar neste mundo. Eis aí uma visão de mundo desafiadora. Porém, as palavras libertadoras já foram ditas: “Mulher, você está livre de sua doença”.
Ponham-se de pé, dêem graças a Deus e sigam com a obra de curar o mundo.
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Jesus e as mulheres: “Vocês estão livres” (II). Artigo de Elizabeth Johnson - Instituto Humanitas Unisinos - IHU