07 Dezembro 2015
"Os protestos de rua, como os das/os sem-terra, sem-teto, índias/os, quilombolas, catadoras/os de material, atingidas/os por barragens, grupos LGBT, não são criados por geração espontânea. São vítimas daquela má intenção. Não só podem, por isso, como devem “radicalizar” as suas manifestações, bem na forma condenada pelo referido editorial, pois a radicalização com que estão sendo tratadas/os no Brasil precisa ser respondida com a mesma ou com maior força, sob pena de se tornarem cúmplices da injustiça histórica que os oprime e reprime", escreve Jacques Távora Alfonsin, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.
Eis o artigo.
Quando todas as garantias públicas de direito se restringem ao de segurança, é certa a multiplicação de muitas crises políticas e inseguranças para outros direitos. Na origem do tumulto brasileiro atual, essa constatação se impõe. Projetos de lei arquivados há mais de uma década, por sua notória inconstitucionalidade, como o da pretensão do Congresso Nacional substituir a administração pública, assumindo a competência exclusiva para aprovar, ou não, a delimitação de terras indígenas (PEC 215), e o da prorrogação de concessões públicas em terras devolutas situadas em área de fronteira do país, esse até já sancionado como lei em outubro passado, com o claro objetivo de limitar mais ainda o espaço reservado para a reforma agrária, vão levando por diante qualquer contraditório, mesmo ameaçando ou ferindo direitos humanos fundamentais sociais.
O poder socioeconômico das oligarquias representadas no Congresso, em nome da sua segurança - não a pública, enquanto social e política - estão aproveitando o ambiente confuso da profunda crise instalada no país, para tirar do armário iniciativas anteriores constitucionalmente barradas, vestindo-as com novos argumentos, emendas aparentemente inocentes, fortemente apoiadas por maiorias arregimentadas e muito bem organizadas em lobbys, comissões e plenário.
A finalidade é evidente. Fazer passar, senão a desconstituição de todo, pelo menos o bloqueio de efeitos dos direitos sociais reconhecidos em lei, alegadamente prejudiciais ao capital e ao mercado. Além de projetos já aprovados na Câmara e ainda em discussão no Senado, como o da terceirização do trabalho e o da maioridade penal, o relativo ao terrorismo até já voltou para a Câmara, com uma emenda introduzida pelo seu relator Aloysio Nunes, no intuito visível de impedir o direito de manifestação dos movimentos sociais, sabidamente uma das principais vozes de defesa dos direitos humanos, da dignidade de pessoas pobres sem acesso aos meios de comunicação, serem pelo menos ouvidas.
O editorial da Zero Hora de 4 deste dezembro, sob o título “O risco dos incendiários”, parece concordar com essa outra e evidente inconstitucionalidade, própria da desigualdade social e política aqui reinante. Rádios, jornais e televisões do Brasil todo, armaram uma tremenda tempestade quando o PNDH3 (Terceiro Plano nacional de direitos humanos) procurou introduzir alguma responsabilidade jurídica contrária aos danosos abusos que a liberdade de expressão da mídia causa sobre a honra e a vida das pessoas.
Agora, quando nenhum desses veículos de comunicação abre qualquer dos seus espaços para a tal liberdade ser exercida contra aqueles abusos e acusações infundadas, ou contrariar democraticamente as suas editorias, fora daquelas cínicas e selecionadas colunas de “palavra do leitor”, esconde o fato de os movimentos sociais não terem outra alternativa senão a de pôr-se em caminhada pública, nas ruas, para defender os direitos das pessoas, inclusive aquelas frequentemente condenadas sem defesa, por editoriais. O MST já foi vítima dessa criminalização mais de uma vez.
O editorial da Zero Hora, embora pesando cuidadosamente cada palavra, está com medo de uma nova onda de protestos de rua: “Embora a pressão popular seja parte legítima da democracia, há que se ter cuidado com incitações e com radicalismos que sempre podem piorar o que já está ruim.”
Mas quem é que deixou tudo tão ruim? Se os movimentos sociais e populares não são responsáveis por esse estado de coisas, seus militantes sendo até as principais vítimas dessas repetidas crises, devem ficar quietos como se nada disso lhes dissesse respeito ou afetasse a nação toda? O jornal e toda a mídia sabem perfeitamente que, no meio dessa crise, como se pode ver pelos projetos de lei em andamento, as emendas constitucionais e as leis, ela está servindo inclusive para acentuar o poder de exclusão do nosso sistema econômico, colocando novas e fortes balizas à sua segurança, a custa da insegurança e da violação de direitos sociais do povo trabalhador e pobre. As inconstitucionalidades estão agindo contra esse sujeito de direito, e elas são comprovadamente mal intencionadas.
Os protestos de rua, como os das/os sem-terra, sem-teto, índias/os, quilombolas, catadoras/os de material, atingidas/os por barragens, grupos LGBT, não são criados por geração espontânea. São vítimas daquela má intenção. Não só podem, por isso, como devem “radicalizar” as suas manifestações, bem na forma condenada pelo referido editorial, pois a radicalização com que estão sendo tratadas/os no Brasil precisa ser respondida com a mesma ou com maior força, sob pena de se tornarem cúmplices da injustiça histórica que os oprime e reprime.
Para tanto, deve-se sublinhar aqui mais uma vez, existe sustentação jurídica em franco crescimento, progresso e aceitação, até junto às universidades e a parte do Poder Judiciário. Um pluralismo jurídico, reconhecido como “direito achado na rua”, já identificou pautas de ação capazes de enfrentar desafios para as quais vem aglutinando forças lá onde os editoriais não gostam que elas apareçam, ou seja, justamente nas ruas.
O segundo volume da coletânea “Direito vivo” dos já vários estudos desse novo tipo de direito “achado na rua” (Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2015), está empoderando uma resistência jurídica popular capaz de se fazer ouvir sobre essas pautas-desafios, em franca oposição à manipulação inconstitucional, ideológica e anti social atualmente predominando na elaboração das leis, junto ao Congresso Nacional, com efeito direto na administração pública e no Judiciário.
Entre os referidos desafios, a publicação lembra: “ (I) a tensão entre os dois modelos de democracia” (certamente aqui referindo a representativa e a participativa): (II) a criminalização dos movimentos sociais; (III) a democratização da mídia; (IV) a necessidade de desmilitarização da Polícia; (V) as reformas das instituições públicas, principalmente do Poder Judiciário; (VI) a reforma da Educação e das Cidades, todas voltadas para uma educação de inclusão social e participativa; (VII) a ressignificação dos espaços públicos e privados; (VIII) a incorporação de diferentes linguagens e saberes; e a (IX) a integração entre as pautas dos movimentos sociais com respeito às sua diferenças.”
Basta comparar-se a relevância desses assuntos para o país com as sessões desse fim de ano, presididas (?) no Congresso Nacional, para se formar um juízo a respeito da atual composição do nosso Legislativo. Existe ainda alguma esperança de essas matérias serem tratadas com a sua importância, necessidade e urgência? A sombria avaliação feita em resposta a uma tal pergunta, justamente, é a causa de os movimentos sociais e populares preferirem as ruas para vencer o desespero, pois ali a sua liberdade de manifestação, mesmo reprimida, testemunha não confundirem a verdade com o erro, a segurança com a ordem, a lei com direito e nem esse com a justiça.
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A segurança econômica como causa de crise e insegurança social - Instituto Humanitas Unisinos - IHU