02 Dezembro 2015
Antônio da Silva mora na ilha dos Dorneles há cerca de dez anos. Localizada no rio Jacuí, encravada entre os municípios de Charqueadas e Triunfo, a ilha é testemunha de uma história de degradação ambiental causada pela extração de toneladas de areia utilizadas pela construção civil. Uma história que já tem cerca de 100 anos e que nas últimas décadas se intensificou em virtude do desenvolvimento de barcos com mecanismos capazes de extrair toneladas de areia do rio em um tempo muito menor do que era no passado. O “seu Antônio”, como é conhecido na região, vive sozinho na ilha com sua esposa e tornou-se uma espécie de Dom Quixote do Jacuí, que luta, não contra moinhos imaginários, mas contra empresas de mineração que transformaram a paisagem do rio nas últimas décadas.
A reportagem é de Marco Weissheimer, publicada por Sul 21, 02-12-2015.
No dia 17 de novembro deste ano, Antônio se acorrentou ao portão de entrada do prédio da Justiça Federal, em Porto Alegre, segurando um cartaz onde aparecia o nome da juíza Clarides Rahmeier e um apelo: “Salve o nosso Jacuí! Quase 100 anos de extração de areia acabou com todas as praias do Jacuí. Até quando Justiça Federal?”. A juíza deve decidir sobre a Ação Civil Pública que a Associação para Pesquisa de Técnicas Ambientais (APTA), organização não-governamental sediada em Canoas, move contra a Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam), o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), a Sociedade dos Mineradores de Areia do Rio Jacuí (Smarja), a Sociedade Mineradora Arroio dos Ratos (Somar) e a ARO Mineração, pedindo o cancelamento, de forma definitiva, das licenças concedidas pelos órgãos governamentais autorizando essas empresas a extrair areia do Jacuí. Além disso, pede a reparação das áreas degradadas, por parte das empresas que operam no rio.
Desaparecimento de peixes e ilhas
Na ação, a APTA alega que a extração de areia nas margens do rio Jacuí, da forma que vem ocorrendo, tem causado sérios prejuízos ao meio ambiente, com solapamento das margens e destruição da mata ciliar, sem que ocorra uma fiscalização adequada pelos órgãos competentes. Seu Antônio garante que a sua ilha está sendo literalmente devorada pela extração de areia. “Há dez anos, essa ilha tinha em torno de 468 hectares. 416 da minha parte que eu comprei e o restante do governo. Hoje não tem 300 hectares. Se acusar os barcos, eles vão dizer que é erosão. Eles vão na Justiça e dizem que a erosão comeu a terra, mas isso não existe. Essa ilha quase encostava na ilha das Cabras. Hoje você vai ali e tem uma distância de 900 metros”.
O desparecimento das praias, de ilhas e dos peixes do rio Jacuí são algumas das principais reclamações de Antônio e de moradores da região. “Quando eu cheguei aqui, há mais ou menos dez anos, tinha um pescador que chegava a pegar 350 piavas por dia. Hoje, quando ele pega dez piavas por semana, dá graças a deus. Estes “chupão” (apelido das máquinas instaladas nas barcaças que extraem a areia do leito do rio por meio de um cano de sucção) danificam tudo. Os peixes subiam aqui para desovar, na região do Vale Verde, mas os alevinos não se criam mais. Hoje encontra-se carpas de 18, 20 quilos mortas no rio. Quem é que matou? Doze ilhas já desapareceram nesta região. Quem é que comeu? O magnata vem aqui, come a ilha e depois diz que foi a erosão. Se erosão comesse ilha, existiria ilha?” – pergunta.
À espera do zoneamento ambiental
Nos últimos anos, Antônio já fez inúmeras denúncias sobre essa situação e relata ter sofrido várias ameaças também. “O pobre não tem direito a ter uma praia para tomar um banho. Só quem tem dinheiro tem direito a ir para uma praia. Moro só eu e minha mulher aqui na ilha. Já me disseram: sai daí que vão te matar. Mas nenhum de nós vai ficar pra semente. Alguém precisa dar uma força para os pequenos”. Ele pretende retornar a Porto Alegre no dia 15 de dezembro, quando a juíza Clarides Rahmeier, da 9ª Vara Federal, realizará uma nova audiência informativa com os envolvidos no caso. No início de 2013, a Justiça Federal chegou a suspender a extração de areia no Jacuí a partir de uma ação movida pelo Ministério Público Federal. A atividade foi retomada em julho de 2013, depois de um acordo com a Justiça Federal que previa, entre outras coisas, a realização de um zoneamento ambiental na área, que deveria ser contratado e supervisionado pela Fepam.
O processo licitatório para a contratação de uma empresa para fazer o zoneamento do Jacuí chegou a ser iniciado, mas parou por falta de recursos. Segundo Clovis Braga, presidente da APTA, o acordo firmado em 2013 para retomar a extração de areia no Jacuí não foi cumprido. “Nós não concordamos com esse acordo que autorizou a retomada da extração de areia. Nada foi cumprido e as empresas continuam fazendo tudo o que faziam antes. Temos notícias, vindas de moradores da região, de que segue ocorrendo mineração à noite e nos finais de semana. A situação no Jacuí é cada vez mais grave”. A destruição das margens do rio, acrescenta, está colocando em perigo inclusive torres de alta tensão da Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE), instaladas na Ilha das Cabras. A CEEE fez uma contenção com cimento nas margens da ilha, mas ela está cedendo.
Clovis Braga defende que já existem estudos técnicos suficientes apontando a exaustão do Jacuí e a necessidade de suspender a mineração na área, mas ele não é muito otimista a respeito. “Vamos participar da audiência do dia 15, mesmo achando que, por todo o quadro que se apresenta, há poucas chances de a Justiça determinar a suspensão da extração de areia”.
Degradação e consumo: 600 mil toneladas de areia por mês
Os sinais de degradação do Jacuí nas áreas de extração de areia são plenamente visíveis. As praias do rio desapareceram e deram lugar a barrancos instáveis e margens – quando existem – repletas de lama resultante dos dejetos lançados no rio depois da extração da areia. Na região entre Charqueadas e Triunfo, belas e históricas ilhas do Jacuí, como a Ilha do Fanfa, cenário de uma das principais batalhas da Revolução Farroupilha, em 1836, estão cercadas hoje pelos barcos que extraem a areia do rio e também por usinas e empresas ligadas à mineração do carvão. Pequenos barcos de pescadores ainda são vistos parados em alguns locais, como a sinalizar um tempo passado que apresenta seus últimos vestígios.
A recuperação das áreas degradadas, se ocorrer, levará algumas décadas. Mas, se a extração de areia do Jacuí fosse totalmente suspensa, de onde sairia a areia para a construção civil? – perguntaram os empresários do setor em 2013, quando a atividade foi temporariamente interrompida pela Justiça Federal. Segundo a Sociedade dos Mineradores de Areia do Rio Jacuí (Smarja), o Rio Grande do Sul é hoje responsável por quase 10% da areia produzida no país e consome mais de 600 mil toneladas por mês. Com a interrupção da mineração no Jacuí, uma alternativa seria passar a extrair areia do Guaíba, em uma área próxima à Lagoa dos Patos. A Justiça Federal diz que só autorizaria a abertura de novas frentes de extração a partir de estudos ambientais prévios para evitar a repetição do que ocorreu no Jacuí. Além disso, quer que o Estado faça o zoneamento ambiental para determinar o quanto de areia ainda existe no Jacuí e se ela ainda pode seguir sendo explorada.
A satisfação da demanda de 600 mil toneladas de areia por mês deixaram suas marcas no rio e em suas margens. “Porto Alegre foi construída com a areia do Jacuí”, assinala Antônio da Silva, cobrando da capital do Estado um gesto de gratidão e, principalmente, de reparação para com o rio. Por enquanto, a degradação vem ganhando de goleada da reparação.
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Após décadas de mineração de areia, Jacuí mostra marcas da exaustão - Instituto Humanitas Unisinos - IHU