24 Novembro 2015
O Deus tradicional tinha os atributos da onipotência, da bondade e da compreensibilidade: atributos insustentáveis com a Shoá. Deve-se, portanto, abandonar essa concepção e conceber um Deus que se "temporalizou", que devém junto com o mundo e participa do destino do homem por Ele criado na luta entre o bem e o mal.
A opinião é de historiador italiano Adriano Prosperi, professor da Universidade de Pisa e membro da Accademia Nazionale dei Lincei, a principal academia científica da Itália. O artigo foi publicado no jornal La Repubblica, 23-11-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
No tempo do Terror, assiste-se a singular ressurgimentos de espíritos religiosos. Será preciso se acostumar com isso. O taxista que, na Roma pré-Jubileu, leva você até o Vaticano, meta de rios de turistas, se professa anticlerical, mas reage à ideia de tirar os crucifixos das escolas, gritando que, contra as ameaças pseudoislâmicas, ele gostaria de fixar não um, mas 100 crucifixos por sala de aula.
Em vez disso, um pensativo teólogo se refere ao massacre parisiense do Bataclan assumindo a frase de Justin Welby, o arcebispo de Canterbury: "Há momentos em que você pensa: existe um Deus? E onde está Deus?". É uma pergunta que agora conhece uma renovada atualidade diante de uma realidade cada vez mais invadida por imagens do mal, da dor e da morte.
A frase de Justin Welby deve a repercussão que provocou à mais alta autoridade eclesiástica que a pronunciou e ao poder da BBC. Aliás, quem viu mesmo que superficialmente textos e documentos da história da vida religiosa sabe muito bem que essa pergunta é inerente à própria fé das religiões monoteístas, é como que a sua outra face necessária.
A experiência de um Deus que não responde, que está ausente, é fixada no próprio coração da tradição cristã, nas últimas palavras de Jesus sobre a cruz, atestadas pelos Evangelhos, assim como nas experiências dos místicos tateantes naquela que João da Cruz chamava de "noite escura".
No entanto, uma coisa é a dificuldade pessoal de quem busca a relação com um Deus pessoa e não O encontra, sofre as Suas intermitências, invoca a Sua certificação interior e, talvez, se resigna a assumir a fé de uma Igreja, contentando-se com a autoridade constituída e fixada em textos e tradições. Outra coisa bem diferente é referir a existência de Deus à cena de um mundo que há muito tempo aprendeu a abrir mão d'Ele.
Um grande historiador francês, Lucien Febvre, mediu por comparação a realidade dos seus anos – os da Segunda Guerra Mundial – e a do seu predileto século XVI, quando, segundo ele, era impossível não crer em Deus, conceber a própria ideia da Sua inexistência: tal era a densidade de ritos, imagens, experiências de uma época em que a vida cotidiana fluía totalmente sob a insígnia da fé em Deus e em Cristo: do som dos sinos aos ritos religiosos, passando pelas imagens e pelas palavras da linguagem comum, à própria ideia do céu e das estrelas ainda não perturbada pelas descobertas de Galileu.
A tese de Febvre não resistiu à pesquisa histórica: o ateísmo era possível também naquela época, seja como fenômeno isolado, seja como aventura intelectual, seja como retorno do materialismo dos antigos. Mas é verdade que, de fato, não só as formas do pensamento e da imaginação, mas também as constituições políticas e as regras sociais eram obtidas naquela época a partir de uma concepção do mundo totalmente religiosa.
Hoje, a cultura e a sociedade modernas estão muito longe dessa condição. A morte de Deus anunciada pelo louco em A gaia ciência, de Nietzsche, tornou-se substância da vida cotidiana do mundo desenvolvido. Chegamos a isso por graus. O materialismo doloroso e implacável de Leopardi precedeu por pouco a filosofia de Feuerbach. E a obra criativa de Dostoiévski se concentrou no cerne da capacidade humana de fazer o mal que se desencadeia em um mundo do qual Deus foi expulso: pense-se nas páginas terríveis sobre o personagem de Stavróguin em Os demônios. Os homens mataram Deus: e, se Deus está morto, então tudo é permitido.
As consequências da expulsão de Deus do mundo humano, de acordo com Dostoiévski, são assustadoras. A liberdade que os homens conquistaram é uma liberdade ilimitada de fazer o mal; o niilista consequente é Kirillov, que se mata para demonstrar ao mundo inteiro que Deus não existe, e que o homem tornou-se tão onipotente a ponto de renunciar à própria vida.
Mas foi no século XX, diante de Auschwitz, que a reflexão sobre a imensa tragédia do mal cometido por uma diabólica vontade de poder também minou a voz dos representantes supremos das religiões constituídas, aqueles que têm a tarefa e a obrigação de testemunhar a fé.
O pontífice católico Bento XVI, o alemão Joseph Ratzinger, que se sentiu especialmente compelido a visitar Auschwitz repetidamente, justamente por ser um homem da Igreja e alemão, se perguntou: "Onde estava Deus naqueles dias? Por que Ele se calou?".
No entanto, mesmo nesse caso, descobre-se como em uma religião que confia o cumprimento da justiça e da verdade a um mundo celeste em espera depois da nossa morte o silêncio de Deus não basta para minar a fé na Sua existência. O testemunho daquele grande teólogo e heroico testemunho de fé e de resistência ao nazismo que foi o luterano Dietrich Bonhoeffer elaborou um importante núcleo conceitual e deixou um exemplo pessoal do que pode se tornar a fé cristã depois de Auschwitz.
Em vez disso, coube ao filósofo Hans Jonas, judeu e alemão, enfrentar lucidamente o problema de qual é o conceito de Deus depois de Auschwitz para quem parte de uma ideia judaica da divindade como uma entidade dona da história, chamada a fazer a justiça e a tutelar aquele povo que foi exterminado sem encontrar n'Ele nenhuma defesa. Foi Jonas que comparou a Shoá com o terramoto de Lisboa, que, no século XVIII, tinha ofuscado a luz otimista do racionalismo iluminista, curvando a cultura ocidental em uma direção diferente.
Mas o evento natural do terremoto, embora tremendo, não era comparável ao que a vontade humana foi capaz de cometer deliberadamente. O Deus tradicional tinha os atributos da onipotência, da bondade e da compreensibilidade: atributos insustentáveis com a Shoá. Deve-se, portanto, abandonar essa concepção e conceber um Deus que se "temporalizou", que devém junto com o mundo e participa do destino do homem por Ele criado na luta entre o bem e o mal.
Nascerá do choque de forças hoje no mundo uma nova religiosidade? Ou, ao enfrentar as raízes do mal e da dor que hoje envolvem diretamente também aquela parte do mundo que, por séculos, escravizou, massacrou e explorou a outra metade dos homens, se conseguirá fazer reiniciar a história e a civilização humana a partir de um nível mais alto?
Sobre Deus, não é difícil conciliar as três religiões monoteístas nascidas no Mediterrâneo. Os atributos são mais ou menos sempre os mesmos: entre os 99 nomes que o Alcorão dá a Deus, há os do "Misericordioso", do "compassivo", do "amável", do "justo" de "Aquele que ama, que ajuda". Mas é sobre a natureza humana e sobre o modo de fazer justiça no mundo que o acordo parece difícil.
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Deus, o horror e a eterna pergunta. Artigo de Adriano Prosperi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU