Por: André | 16 Novembro 2015
A “barca de Pedro” está atravessando águas de um tempo muito singular, impulsionada por ventos primaveris, mas também sacudida por correntes geladas e povoadas de um novo conformismo. Até mesmo os beneficiários de documentos roubados tentam ganhar dinheiro com suas mercadorias traficadas apresentando-se como defensores da “reforma desejada por Francisco”. É possível confundir-se. E neste caso poderia ser útil recordar algumas coordenadas proporcionadas pelo cardeal Godfried Daneels, arcebispo emérito de Malinas-Bruxelas. Suas palavras são neutras e, como sempre, não são necessariamente óbvias.
A entrevista é de Gianni Valente e publicada por Vatican Insider, 13-11-2015. A tradução é de André Langer.
Eis a entrevista.
Jozef De Kesel é o novo arcebispo de Malinas-Bruxelas. Você o conhece bem. Qual é o seu perfil humano e pastoral?
Jozef De Kesel é um bom teólogo, que coloca a Igreja no meio da sociedade. Ele tem uma visão da Igreja: uma Igreja para o mundo, absolutamente mergulhada na cultura. É um homem muito humilde e amável no trato. Quer curar e santificar em primeiro lugar as almas. Sempre pensa primeiro nas almas e depois nas estruturas. Reflete e pondera muito as coisas antes de tomar uma decisão.
O que acha dos critérios que o Papa Francisco seguiu na nomeação dos bispos?
O Papa dá uma prioridade à alma e à vida espiritual. A pastoral precede todo o resto. Por isso, dá sua preferência ao perfil pastoral e não ao perfil do professor. E manifesta também a predileção pelos pobres. Tenho a impressão de que é muito independente da cúria, inclusive nas nomeações. Demonstra certa autonomia em suas decisões.
Há alguns que estão começando a dizer que a salvação do catolicismo pode vir somente das Igrejas africanas, “saudáveis” e doutrinariamente robustas, em comparação com as “decadentes” Igrejas ocidentais. A começar por vocês, belgas.
Alguns bispos africanos nos dizem: vocês são uns pagãos. Vocês acabaram com tudo. Mas eu lembro que a Bélgica tinha muitas vocações, foram construídos grandes seminários e noviciados, até os anos 1960. As famílias cristãs faziam de tudo para transmitir aos filhos o sentido de pertença à Igreja. Mas depois viam que a fé se apagava nos filhos, aos 17 ou 20 anos. E para eles era uma ferida, um sofrimento muito grande. Pode-se dizer que era culpa sua, que os pais não eram bons cristãos? Não, as coisas não funcionam assim. Tornar-se cristão e perseverar na fé continua sendo um mistério, e não é o efeito de algum mecanismo educativo ou sociológico. E então penso que os discursos sobre as “Igrejas robustas” que deveriam salvar o resto do catolicismo servem, sobretudo, para fazer operações de política eclesiástica. Surpreende a abstração destes discursos.
Quais?
As Igrejas europeias foram avassaladas por fenômenos de secularização que produziram um aumento do individualismo. Mas, o mesmo individualismo, em um futuro mais ou menos próximo, poderia chegar à África: esse fenômeno que leva as pessoas a pensarem em si mesmas como indivíduos e não apenas como membros de um grupo, de uma comunidade ou de uma massa. É possível que esta crise que tivemos chegue também ali, com tudo o que isso implica. Pode ser que um dia a África também vá viver uma situação semelhante à nossa. E então, talvez, nos chamarão para saber o que foi que nós fizemos. Para que lhes demos alguns conselhos.
E você, que conselhos daria?
Eu sempre reconheci que talvez Deus nos conduziu para uma espécie de novo “exílio babilônico”, para nos ensinar a ser mais humildes e experimentar que a Igreja pode viver e crescer apenas pela força e a Graça de Cristo. Então, sempre aconselhei a todos para que se cuidem de qualquer forma de triunfalismo ou de pretensão de autossuficiência. Aqueles que acreditam estar de pé, que se cuidem para não cair.
Com o chamado caso Vatileaks 2.0 surgiu novamente no debate público a expressão “reforma da Igreja”. Os meios de comunicação apresentam-na como uma espécie de reestruturação para que o ambiente eclesial seja mais “apresentável” segundo critérios mundanos. Mas, qual é a razão e o objetivo da reforma da Igreja?
A reforma só pode resultar do desejo de que a luz de Cristo brilhe com maior transparência sobre o rosto da Igreja. Por isso, é preciso fazer o que seja possível, incluindo a reforma das leis e das instituições, para simplificar a vida cristã de todos os fiéis. Sempre me lembro da simples constatação de Yves Congar: “As reformas bem sucedidas na Igreja são aquelas que se fazem em função das necessidades concretas das almas”.
Mas a reforma das estruturas não é secundária em relação ao anúncio e a conversão dos corações?
A Igreja é um instrumento nas mãos de Cristo. Então, em certo sentido, toda a Igreja, enquanto instrumento, é secundária, e pode ser mudada e reformada para desempenhar melhor sua função. Portanto, a necessidade de mudar e de reformar as coisas faz parte da própria natureza da Igreja. “Ecclesia semper reformanda”.
Quais são os critérios e as condições para reconhecer e levar adiante uma reforma da Igreja autêntica do ponto de vista eclesial, sem que esteja contagiada pelo funcionalismo?
O único critério é a salvação das almas: favorecer a vida de fé e a salvação de todos deveria ser o critério vinculante para julgar qualquer mudança, incluindo os modos de exercício da autoridade na Igreja. A Igreja é para os homens e não os homens para a Igreja. Por isso, uma condição para uma verdadeira reforma é a paciência. A Igreja não pode ser reformada mediante revoluções, mas por meio de processos orgânicos. Não há mudanças bruscas e violentas, não há separações. O Papa Francisco também repete que os processos requerem tempo, em vez de pensar em resolver os problemas ocupando espaços de poder.
No passado, você assinalou que a relação com os órgãos centrais da Igreja pode converter-se em algo pesado para os bispos locais. Continua sendo o caso?
Durante muito tempo, nós nos vimos inundados por documentos longuíssimos, instruções e orientações. Uma saraivada de pronunciamentos que sempre assumem um caráter normativo, dado que provém dos dicastérios romanos. Convém favorecer uma simplificação. Ter um momento de calma.
O debate sobre a colegialidade é muitas vezes interpretado com a categoria mundana da democracia.
A sinodalidade não é uma questão de equilíbrio de poderes. Tem um valor teológico. Não se trata de diminuir a influência do Papa ou dos demais bispos, beneficiando um ou outro. Felizmente, o Sínodo está começando a ser um lugar de debate real, onde é possível uma discussão livre e responsável, respeitando as prerrogativas do Papa.
Falando do Papa, alguns destacaram o “gigantismo papal” como uma distorção que marcou as épocas recentes da Igreja. E pedem para corrigir a imagem do Papa como um “super-bispo”, cuja diocese coincide com o mundo inteiro. Você concorda com isso?
O que não se pode mudar é a vontade de Cristo referente à Igreja, ou seja, o fato de que o Papa é o Sucessor de Pedro e possui o primado. Historicamente, o exercício do primado foi exercido de forma diversa. Não podemos planejar o que vai acontecer no terceiro milênio. Mas, na minha opinião, é sempre útil insistir nas características do ministério petrino.
Quais destas características vale a pena sublinhar tendo em conta a situação atual?
O Papa é, em primeiro lugar, Bispo de Roma. Exerce o seu primado sem deixar de ser bispo de sua diocese. E o atual Pontífice vem insistindo neste ponto desde a primeira vez que apareceu como Papa diante da multidão na Praça São Pedro. O enorme volume de compromissos que precisa assumir faz com que seja difícil acompanhar a própria diocese no dia a dia. Mas esta continua sendo essencial e novas formas precisam ser encontradas: servir a Igreja universal, sendo o Bispo de Roma.
No passado, você aplicou ao trabalho dos pastores de hoje a fórmula da “thlipsis”, a “pressão” à qual são submetidos os Apóstolos, já usada por São Paulo. Certos ataques e certas acusações que o Papa Francisco sofreu pertencem a esta categoria?
A palavra “thlipsis” indica os sofrimentos apostólicos de que fala São Paulo. Quando um homem é verdadeiramente evangélico, e não pensa em si mesmo, sempre acaba sofrendo a “thlipsis”. Não se pode ser um verdadeiro apóstolo de Cristo sem que se dê esta prova. E isto vale também para o Papa Francisco.
Mas, o que é concretamente a “thlipsis” apostólica?
São Paulo, quando algo não saía bem na sua missão, pensava que era culpa sua. Diante de algo que não funciona, diante dos acidentes e dos fracassos, a pessoa pode pensar: é minha culpa, errei, deveria ter feito isto, ou com outra metodologia. Mas depois, em certas situações, a pessoa se dá conta de que os próprios erros e pecados não explicam tudo. “Oderunt me gratis”, diz o salmo. Odiaram-me sem motivo. Não tinham motivos para odiar Jesus. Da mesma maneira, creio que, mesmo sendo o testemunho do Papa Francisco claro, não significa que tudo teria que sair perfeito. Talvez o ódio se desencadeasse mais ainda. Sem motivo.
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A reforma da Igreja e os “sofrimentos apostólicos” do Papa Francisco. Entrevista com Godfried Daneels - Instituto Humanitas Unisinos - IHU