17 Julho 2015
"Está claro que não chegamos ao fim de nenhum capítulo da mítica Revolução Brasileira da minha geração. Era só o que faltava, embora não seja menos impressionante a sensação incongruente de estarmos nos defrontando com uma contrarrevolução (que não veio para liquidar ou prevenir revolução alguma, ou mesmo as tais “conquistas sociais” que não ameaçavam ninguém, antes contribuíam para o desarmamento moral da nação, muito embora o pau continuasse comendo solto nos porões da Democracia), mas a um fim certamente chegamos e, além do mais, exaustos", escreve Paulo Arantes, professor de Filosofia, em artigo publicado por Correio da Cidadania, 15-07-2015.
Segundo ele, "a crise é assim, essa convergência desastrosa de uma inédita exaustão de todo tipo de recursos, dos mais elementares aos mais elevados, da polinização à imaginação política. Até a potência de Junho parece que se esgotou. Pois é tal a entropia do capitalismo, desorganizado desde o Big Bang de meados dos anos 1970 em seu núcleo orgânico, que desorganiza até mesmo as forças antissistêmicas".
"Para que não haja mesmo dúvida a respeito do que vem por aí, - escreve Paulo Arantes - relembro que um coletivo carioca, agrupado teórica e politicamente em torno da Crítica do Valor, há algum tempo vem refinando suas análises acerca do que denominam “gestão da barbárie”, sobre a qual se explicam e ilustram, por exemplo, no livro Até o último homem, a respeito da gestão armada da vida social na cidade olímpica do Rio de Janeiro. Foi precisamente essa gestão da barbárie que se esgotou com a crise exposta pela reviravolta de Junho, esquerda e direita confundidas na mesma ressaca, e que evoquei nesta digressão sobre a crise de exaustão numa sociedade cansada. Sai a gestão, resta a barbárie".
Eis o artigo.
Vivemos o fim de um ciclo. Mas não um ciclo qualquer, tampouco uma crise cíclica, como é da natureza de um sistema descrito por Marx como a contradição em processo. Estamos simplesmente vivendo o fim de toda uma era. Há quem veja nesse desfecho, que se arrasta aos trancos e barrancos desde junho de 2013, talvez a mais grave crise de nossa história. Por isso mesmo não é de fácil identificação. Não é uma crise saneadora a mais, ao fim da qual o bom negócio chamado Brasil entraria nos eixos. O drama agora é outro. E olhe que a recessão econômica mal está começando, o desemprego ainda não bateu forte, a polarização está muito longe dos padrões venezuelanos ou mesmo argentinos, para ficarmos nos ingredientes clássicos, dentre os quais nem precisei mencionar um ainda muito remoto surto inflacionário.
No entanto, semana sim, semana não, a remoção institucional da presidente entra na agenda, na dependência de um arranjo entre os caciques de sempre, enquanto a esquerda legal se limita a soltar manifestos. Creio que dá para sentir o drama e sua novidade nessa trivialização da conversa sobre as modalidades de cassação de um mandato popular, em meio à gesticulação de uma esquerda que na melhor das hipóteses já é apenas memória e comentário.
Esse é o meu ponto. Nunca se falou tanto de uma crise, no próprio momento em que ela transcorre, como se já fosse passado passando, por assim dizer. Não sei se é mera impressão, mas, para ser sincero, acho que ninguém aguenta mais falar justamente da “mais grave crise de nossa história”! Menos ainda ouvir ou ler a respeito. Estamos todos à bout de soufle. Não por acaso se falou muito do fôlego curto dos manifestantes de junho. Desconfio que não sou o único a ter chegado a esse ponto de saturação. Mesmo assim, sabendo de antemão que mal serei lido, pois todo mundo já disse de tudo ao longo desses seis meses de ata-não-desata, vou procurar responder à pergunta. E precisamente puxando por esse fio a meu ver revelador da sua natureza profunda, só aparentemente frívola: estamos cansando de tanto falar da crise, no fundo estamos sendo vencidos pelo cansaço.
Ouvi certa vez um especialista dizer que a Revolução dos Cravos batera no teto e refluíra até se extinguir, para além dos obstáculos mais ou menos previsíveis, como o veto da OTAN, a desmoralização soviética ou o dinheiro da União Europeia, porque o povo português simplesmente cansara da batalha diária nas ruas durante meses a fio. O fôlego simplesmente acabara. Exatos quarenta anos depois, não é menos verdade que neste último dia 5 de julho não se sabe bem onde 60% dos eleitores gregos foram buscar a energia que faltava para derrotar, por enquanto nas urnas, o regime de austeridade imposto pelo atual sistema europeu de poder sobre a moeda comum. Numa palavra, venceram o cansaço provocado por cinco anos de um arrocho que parecia sem fim e ainda não se sabe que destino terá. Nos dois contextos de crise, uma revolucionária, outra de restauração da ordem, o cansaço pode muito bem se apresentar como uma chave política capaz de fechar ou abrir uma conjuntura que está longe de ser apenas mental.
Quanto a nós, está claro que não chegamos ao fim de nenhum capítulo da mítica Revolução Brasileira da minha geração. Era só o que faltava, embora não seja menos impressionante a sensação incongruente de estarmos nos defrontando com uma contrarrevolução (que não veio para liquidar ou prevenir revolução alguma, ou mesmo as tais “conquistas sociais” que não ameaçavam ninguém, antes contribuíam para o desarmamento moral da nação, muito embora o pau continuasse comendo solto nos porões da Democracia), mas a um fim certamente chegamos e, além do mais, exaustos.
Pois, assim, é esse um dos sintomas desconcertantes dessa anomalia com cara de crise à moda antiga. A inexpressiva vitória eleitoral do ano passado, à base de voto no “mal menor” e correria esquerdista de última hora, revelou uma sociedade cansada e soterrada por uma avalanche conservadora que de geração espontânea não tinha nada, crescera nos anos das tais “conquistas”.
Paralelos com 1964
Durante a Ditadura, o que mais se debatia nos círculos oposicionistas era a natureza do “modelo”, como se passou a falar desde então. Discutia-se qual a natureza do modelo econômico ou do modelo político do regime, quais os seus limites, em função dos quais, cedo ou tarde, se esgotariam caso não se renovassem. Foi esse, então, o momento da crise e, portanto, o momento ótimo para a virada que ela representava, segundo a acepção clássica do termo. E ela finalmente veio com as crises conjugadas da dívida, da inflação, do petróleo etc. Todas interpretadas como choques, a um tempo externos e internos.
Como também passaram a ser de choque as terapias adotadas para reverter a fase aguda da crise. Como um teórico observou recentemente, cada época tem as suas doenças paradigmáticas. Assim, tanto a Guerra Fria como o Terror Branco das ditaduras do Cone Sul seguiram o esquema imunológico, na verdade um autêntico dispositivo militar de ataque e defesa orientado pelo princípio de eliminação de tudo o que fosse estranho, mesmo que desprovido de qualquer intenção adversa; bastava a estranheza enquanto tal.
Todo o repertório punitivo de hoje em torno de choque disso ou aquilo, ordem, gestão ou mesmo capitalismo, como disse um sábio no fim dos anos Sarney, é resíduo arcaico daquele período idem. O Choque está nas ruas desde junho, mas os assim chamados golpistas (outra reminiscência) estão tratando a corrupção endêmica como uma falha imunológica generalizada, como nos tempos em que subversão e corrupção eram intercambiáveis. Não há mais campanha de vacinação contra o vírus comunista, por mais que alguns homens das cavernas espumem. O estresse agora é outro, ou melhor, só agora o paradigma do estresse tornou-se lugar comum, estendendo-se da saúde estourada no trabalho ao colapso dos ecossistemas.
Mas voltemos ao tempo em que os modelos entravam em crise e se esgotavam, a fim de reparar que talvez (ou melhor, com certeza) não seja mais assim, sendo a crise um nome antigo para uma coisa nova. Seja como for, por inércia, ou clarividência que ainda não encontrou a palavra da vez, de esgotamento é o que mais se fala, seja das virtudes terapêuticas do lulismo, seja de políticas específicas, a começar pela exótica nova matriz econômica. A novidade é o esgotamento simultâneo, ambos fatores reforçando-se mutuamente, desde vários mecanismos de governo até as coisas e as populações, para prolongar a velha distinção de Saint Simon da qual a tradição de esquerda não soube se desvencilhar.
A esta altura, desnecessário enumerar as múltiplas falências, do manejo macroeconômico ao distributivismo indolor. Tudo bateu no limite, pelo que se lê nas centenas de comentários. Tampouco vale qualquer comentário o circo de horrores político. Salvo pela paródia grotesca da antiga equação keynesiana, do bom governo que induzia cada classe a assumir o papel da outra, de tal modo que o capitalismo no centro de tudo parecia um jogo de soma positiva. Por aqui o que vemos são centrais sindicais fechando com os megaprojetos tocados pelas empreiteiras chocadas pela Ditadura enquanto as pavorosas bancadas da bala, da bíblia e do boi jogam cascas de banana nas políticas de direita de um Executivo de esquerda. Mas chega de varejo e conjuntura, o que não falta é colunista em cima dessa rapadura.
Para voltar, assim, ao nosso “esgotamento”, de tudo e ao mesmo tempo, é bom não perder de vista o timing nada trivial do encadeamento dos diversos estresses (para variar) hídricos das grandes regiões metropolitanas, aos quais se soma a iminência de outros tantos apagões. Na mesma linha, um governo em queda livre, um dia depois de sua posse, não deixa de ser no seu gênero um evento extremo. Se estivéssemos à procura de uma metáfora que resumisse todo esse clima de consumação de uma época, nada melhor do que o olho clínico de um personagem carismático no seu ocaso. É no “volume morto” que nos encontramos mesmo, em todos os sentidos abaixo da linha de captação do que quer que seja. Esgotamos por predação extrativista um imenso reservatório de energia política e social armazenada ao longo de todo o processo de saída da Ditadura.
A entropia avassaladora de agora não afeta apenas os últimos doze anos e meio de hegemonia lulista como se costuma resumir o polo prevalecente nesse período de FlaxFlu eleitoral ininterrupto, mas o longo prazo iniciado por uma Transição que está morrendo agora na praia. Os pretensos herdeiros desse espólio simplesmente não sabem o que os espera ao apressarem seu fim institucional. Estarão abreviando sua própria sobrevida, pois a fuga para frente que ainda insistimos em chamar de crise é antes de tudo um processo ao qual nenhum lance dramático porá fim, nem suicídio, quanto mais intrigas regimentais de políticos e negocistas de quinta. Vencidos pelo cansaço, então, também é isso: trinta e cinco anos ralando, e de permeio um descomunal desperdício, o próprio emblema da tragédia segundo os Antigos.
A crise é assim, essa convergência desastrosa de uma inédita exaustão de todo tipo de recursos, dos mais elementares aos mais elevados, da polinização à imaginação política. Até a potência de Junho parece que se esgotou. Pois é tal a entropia do capitalismo, desorganizado desde o Big Bang de meados dos anos 1970 em seu núcleo orgânico, que desorganiza até mesmo as forças antissistêmicas.
Só para efeito de comparação, veja-se o caso do outrora maior partido de esquerda do Ocidente. O PT não está agonizando por força de rejeição imunológica, por maior que seja o efeito do choque externo das ondas sucessivas de anticorpos enraivecidos até o ódio mortal, mas por motivo de uma combustão interna que o consumiu, por assim dizer, do berço ao túmulo. Nenhum ato de violência de classe o desviou de sua vocação original, pura e simplesmente dissipou-se a energia que o mantinha em funcionamento. Bem como a das grandes centrais sindicais e movimentos sociais históricos que gravitavam em sua órbita. Foram todos vencidos pelo cansaço, como sabe todo batalhador de movimento social, quase sempre à beira de um burnout.
Dito assim, parece, quando muito, a expansão duvidosa de uma metáfora, mas apenas porque esquecemos que o PT nasceu antes de tudo de um colapso, mais precisamente do colapso da construção da sociedade do trabalho no Brasil, justamente – mas agora em plano global, pois estamos falando de modernização capitalista – por uma falha do “motor humano” de todo o edifício. Como não posso me explicar, corto o caminho por uma recapitulação de época, afinal estamos tentando desde o início identificar o fim de uma época e não a enésima alternância de ciclo e crise.
O fim de uma narrativa de Brasil
Como lembrado, o raio detonador da crise caiu em junho de 2013. Em março daquele ano, a aprovação do governo beirava níveis norte-coreanos. Três meses depois, se ainda não estava no chão como agora, rolava ladeira abaixo. Por isso ganhou mal as eleições, ao contrário da direita que perdera convencida de que o seu ressentimento já era uma praga nacional – outro recurso que se esgotou e marquetagem alguma renovaria. Para uma comunidade política de expectativas imaginadas como a brasileira, e como tal embalada desde o berço por uma procissão de milagres e miragens, uma reversão traumática. Em menos de quinze dias de ação direta nas ruas, e outros tantos de uma insurgência coxinha jamais vista, embora estivesse na cara a tremenda sociedade aquisitiva-conservadora que o elixir lulista irrigara, virou letra morta a grande narrativa contemporânea do Brasil global player que deu certo e rendia conforto e boa consciência à recaída neodesenvolvimentista da esquerda, literalmente um projeto amazônico de poder para escola superior de guerra nenhuma botar defeito.
Mas deixemos de lado, por enquanto, nossa Segunda Guerra Fria, parcialmente imaginária como a primeira, embora quentíssima na periferia, também como a outra. Numa palavra, a fórmula mágica da paz simplesmente se esgotou, como todos os demais recursos que alimentaram o jogo de cena da trégua lulista. Todo mundo sabe de trás para frente quais eram esses recursos: o consenso das commodities, o acesso facilitado ao crédito e consequente endividamento popular em grande escala, o consumo de massa puxado por uma descomunal e caótica expansão urbana etc. Como também todo mundo sabe, nada disso teria sido possível caso o monstruoso renascimento do poder de mercado chinês não tivesse subvertido todo o metabolismo do capitalismo global, tanto pela reconfiguração da divisão internacional do trabalho como pela divisão internacional da natureza, Amazônia incluída.
Como resumiu Camila Moreno, “nós estamos dentro da China, e a China está dentro de nós”. Um dia ainda nos daremos conta de que o drama de época que está se encerrando agora foi representado em dois palcos distintos, transitando do finado Consenso (financeiro) de Washington ao não menos fantasmagórico Consenso (extrativista) de Pequim. Mas não estou querendo resumir toda essa época dizendo que o cobertor encurtou, o armistício rompeu-se e a guerra social voltou, pois ela nunca foi embora, nossa “pacificação”, como as aspas de rigor indicam, nunca deixou de ser crescentemente armada, a quarta população carcerária do mundo não é apenas uma enormidade estatística, mas uma política de sequestro de populações selecionadas para apodrecer.
O que, portanto, está virando pó, ou definitivamente já virou, não era em absoluto um horizonte em expansão, mas antes de brutal contração, ofuscada, no entanto, pela poeira de uma ditadura que batia em retirada. Nem por isso deixa de virar pó aquela narrativa ascensional, segundo a qual uma nação reencontrara o seu destino, deixando para trás um ciclo autoritário, constitucionalizando a nova ordem, contendo a hiperinflação e estabilizando a moeda para em seguida incluir os pobres num mercado interno de consumo de massa, desenhar políticas sociais celebradas mundo afora como best practices, projetar suas próprias transnacionais e arrastar consigo megacanteiros de obras de infraestrutura e muitos outros etcéteras, todos igualmente milagrosos, pois sem ônus para qualquer interesse estabelecido.
Nada nessa narrativa de redenção que acabou rendendo capa na Economist era inteiramente falso, pela simples razão de que poderia ter sido muito pior. Mal menor não é progresso, mas estabilização numa desgraça de qualquer modo incontornável, como de resto sabem todos os envolvidos no conflito Israel-Palestina, para dar um exemplo extremo porém congruente, um impasse que um insuspeito historiador do problema dos refugiados palestinos, Beny Morris, chamou de apocalíptico. A verdade verdadeira em nosso caso de sucesso, a caminho, de sucesso em sucesso, do esgotamento de agora, consistia, ao fim e ao cabo, no êxito na contenção de um processo de desintegração múltipla que exigia um novo tipo de governo na contramão da rigidez disciplinar do desenvolvimentismo de caserna.
O horizonte de expectativas tão brutalmente rebaixado de Junho para cá tinha na realidade um perfil baixo desde o início. O fato é que lá atrás recomeçamos por baixo, com uma democracia de baixa intensidade (novamente “racionada”, como diria Marighella e relembrou recentemente Lincoln Secco), acoplada a um processo de desestruturação produtiva altamente explosivo que da noite para o dia descartou por falta de interesse econômico uma massa considerável de futuros trabalhadores inviáveis, salvo para o subemprego nos mercados informais ou ilícitos.
O sopro novo conquistado no processo de saída da Ditadura, sem ser de modo algum efeito de uma respiração artificial, foi se esgotando desde então à medida que uma queda social jamais vista exigia uma política “presentista” de pronto atendimento, igualmente inédita em termos de engenharia social. Resumindo de outro modo: à constatação silenciosa de que a construção de uma sociedade do trabalho no Brasil era página virada, respondeu-se com a invenção (aliás, bipartidária) de um novo governo do social, cuja fratura a eclipse do trabalho selara. Como no seu país de origem, a França, estava fora de cogitação uma sociedade salarial no Brasil. Porém, o mais desconcertante naquela saída em falso, na qual somente mais tarde reconheceríamos o que era, a rigor uma saída de emergência, é que com ela se abria uma outra frente de trabalho.
Entendamo-nos. Por assim dizer, o que se deteriorava por um lado brotava do outro: uma onda nunca vista de trabalho social militante parecia varrer o país, que passava a ser visto como um imenso mutirão de resgate de uma dívida social histórica que a Ditadura agravara ainda mais. Tudo se passava, então, como se o choque causado pela crise da dívida, que explodiria na moratória de 1987, tivesse intensificado por sua vez uma certa percepção social de emergências acumuladas, como se o flagelo da hiperinflação, a fome velha e nova, a demanda por direitos achados na rua, a dívida externa impagável que ninguém contraíra etc. etc. formassem um grande continuum de urgências pedindo outras tantas intervenções. O take off celebrado mais à frente, quando moeda estável e inclusão através dessa mesma moeda formaram outro continuum, decolaria justamente desse campo humanitário minado.
Sob o signo da carência sem fim, aos poucos a política deixava de ser vista como luta para se converter em ação terapêutica voluntária. Até mesmo o ciclo de acumulação primitiva e seu cortejo de violências saneadoras representada pela onda de privatizações e âncoras cambiais também não deixaram de ser uma fuga para frente e como tal uma outra ilusão encobridora de nossa queda. A dominância financeira que se consolidou a seguir amarrou de vez nosso capitalismo de cupinchas (nossa versão do crony capitalism inventado no sudeste asiático), do qual o Estado, paradoxalmente ampliado pelas privatizações, tornou-se o nó de todos os nós de toda aquela rede de big shots consorciados.
Uma exaustão que não deixa nada
Empurrada pelo trabalho social de inclusão – em suas várias vertentes: estatal, empresarial, Terceiro Setor, igrejas, e operadores dos mercados de substâncias ilícitas – pode-se dizer que a monetização integral do laço social era uma questão de tempo... E dinheiro. A começar pela redenção em dinheiro vivo justamente daqueles sujeitos monetários sem dinheiro, deixados no caminho pela marcha de nosso crescimento oco pós-colapso.
Mas é claro que não vou reabrir agora o dossiê das Transferências Monetárias Condicionadas, o Welfare do século XXI, segundo Lena Lavinas. Um modelo (isso mesmo, mais um modelo) cujos recursos (em todos os sentidos, mágicos inclusive) estão precisamente, não custa repetir, se esgotando (também em todos os sentidos), por incrível que pareça. Ou melhor, faz todo o sentido: política social como colateral de acesso ao sistema financeiro, de forma a potencializar o consumo represado por pobreza e salários historicamente baixos.
O fato é que batalhando por, e em nome de, emancipação, alargávamos uma espécie bizarra de Câmaras de Compensação e Reparações onde cabia todo tipo de acertos de contas: novamente um continuum no qual se expressa uma outra relação da política com o tempo, uma tremenda novidade em sociedades nacionais que se formaram orientadas para o futuro, de acertos seja com as contas de um passado de abandono ao deus dará social, seja com um passado de grandes violações de direitos humanos em que a reparação monetária passa a entrar, sim, em linha de conta, como se os crimes da história se pagassem agora com dinheiro (note-se de passagem que a história deixou de ser uma estrela guia), ou ainda na forma de ajustes pontuais a título de redução de danos, e mais uma montanha de etecéteras na mesma linha da política de ambulância e governos terceirizados. Uma sociedade cansada de gestão e agora em crise dessa mesma gestão é isso: intervenções para enxugar gelo e retardar um pouco um processo entrópico maior. No limite, uma sociedade em que até trabalhar pela própria emancipação parece cansar mais do que se deixar sucumbir de uma vez pela intensificação alucinada desse mesmo trabalho que ninguém consegue encontrar.
Estamos viajando? Pois voltemos aos trilhos. Não é mero acaso que toda a engrenagem da transição para um pretenso capitalismo descarbonizado (e mais ou menos como num processo dito de Justiça de Transição) esteja baseada precisamente num mercado de compensações no qual se compra o direito ao mal menor das emissões excedentes, tal como o dano colateral num ataque de Drone desincumbindo-se de sua kill list entra na conta de uma prevenção humanitária maior (um massacre de turistas numa praia mediterrânea qualquer). Tudo se compensa, além do mais, e cada vez mais, monetariamente, neste cenário de desgraças comparadas, sob o fundo do qual falar no avanço de nossas conquistas sociais que a “crise” estaria estancando, se não digo que beira o escárnio é por ser simples falta de noção, embora sempre se possa dizer: antes isso do que nada.
Mas é justamente essa visão progressista do progresso por degraus de melhoria a subir ou a descer que caducou. E esvaziou-se precisamente tal lógica ascensional escandindo o curso do mundo quando se passou, enfim, a convocar como último recurso (novamente) o direito dos pobres ao dinheiro, se não estou abusando do esforço esclarecedor do filósofo Homero Santiago de pensar os efeitos paradoxais do Bolsa Família.
Entretanto, vai na direção contrária, embora raciocine a bem dizer nos mesmos termos, a figuração da segmentação dos pobres nas periferias segundo o sociólogo Gabriel Feltran, cenário sombrio onde se aposta pesado no dinheiro como única mediação do conflito entre grupos que de outro modo se confrontariam em condições de alteridade radical e violenta: sejam legais ou ilegais os mercados onde circula livremente o pagamento à vista em efetivo, o dinheiro é a última fronteira do “comum”. Como é o último recurso mesmo, quando também ele começar a secar na chapa quente de um outro aquecimento global, o regime de espoliação punitiva que é o Estado de Austeridade, voltaremos a rolar ladeira abaixo depois da insustentável pausa conservadora das antirreformas ou não-reformas lulistas (urbana, agrária, tributária etc.).
Para se ter uma ideia dessa ladeira e dos sucessivos horizontes que por ela vão se estreitando desde que caímos para cima, como diziam os humoristas nos tempos da descompressão política com inflação nas nuvens, basta lembrar que houve época em que o assalariamento e a correspondente subordinação ao comando do capital parecia aos despossuídos e estropiados em geral a única rota de fuga aos horrores do mando proprietário num país de raízes coloniais. E para alguns, selecionados a dedo pela máquina varguista da “cidadania regulada”, na fórmula famosa de Wanderley Guilherme, uma estreita porta de acesso ao mundo dos direitos básicos do eleitor-trabalhador. Agora que o assalariamento se dessocializou, pulverizando a classe, o acesso ao dinheiro nu e cru se apresentou como a tábua de salvação da vez. Qual será a próxima em nossa Câmara de Compensações, cujo fornecimento de oxigênio a atual geopolítica de recursos escassos está cortando?
Para que não haja mesmo dúvida a respeito do que vem por aí, relembro que um coletivo carioca, agrupado teórica e politicamente em torno da Crítica do Valor, há algum tempo vem refinando suas análises acerca do que denominam “gestão da barbárie”, sobre a qual se explicam e ilustram, por exemplo, no livro Até o último homem, a respeito da gestão armada da vida social na cidade olímpica do Rio de Janeiro. Foi precisamente essa gestão da barbárie que se esgotou com a crise exposta pela reviravolta de Junho, esquerda e direita confundidas na mesma ressaca, e que evoquei nesta digressão sobre a crise de exaustão numa sociedade cansada. Sai a gestão, resta a barbárie.
Como tal gestão e o fabuloso arranjo lulista são uma só e mesma coisa, pode-se dizer que deixará saudades – que seja dito em agradecimento e louvor à esquerda que está sendo escorraçada agora na ignomínia. Alguém lembrou com justeza que o ônus será coletivo. Iremos todos pedalar no inferno por uma geração, na melhor das hipóteses.
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A fórmula mágica da paz social se esgotou - Instituto Humanitas Unisinos - IHU