Por: Jonas | 26 Mai 2015
Tudo se cumpriu. As palavras que deveriam ser ditas foram pronunciadas por quem deveria dizê-las, e o povo, para o qual elas foram dirigidas, concentrou-se massivamente para escutá-las. Francisco, o Papa chamado da periferia a Roma, habilitou Romero diante de toda a Igreja como “um de seus melhores filhos”, o cardeal que veio de Roma à periferia, o prefeito Angelo Amato, inscreveu-o à tradição de santidade da Igreja latino-americana. Um beato “americano” cujo ministério se distinguiu “por uma especial atenção aos mais pobres e aos marginalizados”: foram os dois aspectos fundamentais do rito que hoje se celebrou sob o sol ardente de San Salvador, após uma vigília atingida por um violento temporal. Com Romero houve um reconhecimento da melhor tradição eclesial latino-americana e, ao mesmo tempo, se a propôs como modelo a seguir para toda América. Uma tradição que no Concílio teve um forte processo de amadurecimento e nas assembleias de Medellín (1968), Puebla (1979), Santo Domingo (1992) e Aparecida (2007) importantes momentos de autoconsciência, inclusive no plano teológico, ou mais secularmente, teórico. A visão de Romero é uma expressão autêntica da maneira como a Igreja leva os homens à salvação. Isto é o que ficou definitivamente ratificado.
Fonte: http://goo.gl/8O325w |
A reportagem é de Alver Metalli, publicada por Vatican Insider, 24-05-2015. A tradução é do Cepat.
É sabido que os 35 anos que foram necessários transcorrer para chegar ao ato deste dia 23 de maio tiveram épocas de grande impulso e outras de estagnação, acelerações e verdadeiras paralisações. Vários dos celebrantes que estiveram no local erigido na Praça Salvador do Mundo se referiram a esse ponto. Em reiteradas oportunidades, sobretudo entre 2000 e 2005, o Vaticano solicitou investigações suplementares ou o aprofundamento de alguns aspectos que não eram considerados suficientemente claros no pensamento e na práxis de Romero. Que foi alheio às atividades guerrilheiras como inspirador intelectual, inclusive indireto, é um deles. Mais ainda, foi o ponto onde se concentrou a resistência mais inflamada. O historiador italiano Morozzo dela Rocca, biógrafo e influente partidário da postulação, ao chegar a El Salvador, referiu-se expressamente à “oposição de bispos latino-americanos de direita, convencidos de que Romero era subversivo” e à “exaltação de Romero como figura revolucionária, junto a Che Guevara e Salvador Allende”. E que ambas se alimentavam reciprocamente.
Contudo, todas as suspeitas ficaram resolvidas pela análise minuciosa do enorme volume de material que passou sob a lupa, sem dar margem para a dúvida, nem nada. Romero mantinha em ordem sua correspondência, registrava as reuniões, tomava nota dos encontros e das conversas, carregava um diário, como se inconscientemente – ainda que nos últimos tempos, sim, estava consciente – conhecesse seu próprio destino e estivesse se preparando para o exame de um futuro tribunal eclesiástico. A eclesialidade de sua inspiração foi plenamente reconhecida pelos múltiplos escrutinadores. A morte sobre o altar, com o cálice na mão, foi a morte de um ministro de Deus, as palavras que pronunciou do púlpito foram as de um sacerdote de Cristo, o testemunho que deu com sua vida aproximou o mistério de Deus e da salvação dos homens de seu tempo, que em El Salvador se caracterizava – disse o Papa em sua carta escrita em latim – “por uma difícil convivência”. E a causa ganhou velocidade, até a rapidez final que foi imprimida pelo Papa. Francisco, como latino-americano, estava nas melhores condições para compreender o bispo centro-americano.
Do momento em que o recurso de Romero começou a escalar posições para se tornar uma prioridade da Congregação para os Santos até o momento em que foi proclamado o caráter martirial de sua morte, transcorreu-se menos de um ano. Alguns meses mais tarde, anunciou-se a beatificação, em seguida, foi escolhida a data para celebrá-la, a data de hoje (23 de maio). Pouco tempo, bem pouco para que a sociedade e a Igreja salvadorenha, em sua totalidade, pudessem assimilar a grandeza do ocorrido. Será preciso mais tempo para que Romero se torne o mártir de todos, o mártir da concórdia e da paz, da unidade e da reconciliação, para usar as palavras do Papa; mas, agora, o tempo corre na direção correta, é um tempo favorável. Romero ainda não é um santo americano, como gostaria sua hagiografia. No sul, na Argentina, Romero nunca recebeu a atenção que hoje lhe é concedida; no Brasil, um pouco mais, quase nada no Chile e muito pouco no Paraguai. Entretanto, chegará a receber. A propagação de sua figura se apoia nos acentos deste pontificado que o latino-americanizará e americanizará completamente, convertendo-o em uma expressão da “Ecclesia in America” de wojtyliana memória. Romero e Junípero Serra, que será beatificado em breve, na Califórnia – o cardeal Amato mencionou ambos em sua homilia –, marcharão juntos pelos caminhos do continente.
Seu último sucessor, o arcebispo de San Salvador, José Luís Escobar Alas, nestes dias, referiu-se a Romero como uma figura “sumamente carismática e atrativa”. É uma pena que, acrescentou, “seja pouco conhecido e pior ainda que tenha sido difamado”. Contudo, faltam três anos para a celebração de seu nascimento, no dia 15 de agosto de 1917. A Igreja de El Salvador se propõe aproveitar profundamente este tempo para o beato Romero seja conhecido em toda sua estatura humana e cristã. Cada ano será dedicado a um tema. O primeiro, que acaba de se encerrar, teve como lema “Romero, homem de Deus”; o segundo começará no mês de agosto e falará de “Romero, homem da Igreja, pastor e sacerdote”. O terceiro, de agosto de 2016 até agosto de 2017, estará centrado na relação do bispo beato com os pobres.
“Houve tanta santidade na América!”, disse o Papa Francisco na carta que escreveu para a celebração. Em El Salvador ainda resta muito para desenterrar. O atormentado país centro-americano está destinado a ser uma usina de mártires e já há vários na lista de espera. Rutilio Grande, cujo cadáver foi velado por Romero, na noite do dia 12 de março de 1977 – como recorda seu ex-secretário e posterior biógrafo e postulador, Jesús Delgado, traçando uma sucinta biografia do beato –, é o primeiro. Em seguida, os jesuítas da Universidade Centro-Americana José Simeón Cañas (UCA), assassinados nos dia 16 de novembro de 1989: o reitor, Ignacio Ellacuría, junto com seus compatriotas espanhóis Ignacio Martín Baro, Segundo Montes, Amando López e Juan Ramón Moreno, e o salvadorenho Joaquín López, assim como a cozinheira Elba Julia Ramos e sua filha de quinze anos, Celina Mariceth Ramos. Um caso não citado, mas que está perto de vir à luz é o de quatro religiosas da congregação Maryknoll, torturadas e assassinadas três meses antes que Romero, no dia 2 de dezembro de 1980: irmã Ita Ford, irmã Maura Clarke, irmã Dorothy Kazel e a leiga Jean Donovan. Depois, há um número grande de sacerdotes, catequistas e seminaristas mortos antes e depois de Romero. “Estamos estudando mais de 500 casos e instituímos uma comissão especial para que trabalhe nisso”, declarou José Luis Escobar, sétimo bispo da diocese e sucessor do mártir que a partir de hoje também é beato.
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Romero beato e os outros 500 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU