Por: Cesar Sanson | 25 Mai 2015
Nesse domingo, 24 de maio, completam-se quatro anos do assassinato de José Cláudio Ribeiro e Maria do Espírito Santos, em Nova Ipixuna, Pará. O crime foi sucedido, naquele momento, por uma série de outras mortes, espalhando ainda mais sangue na Amazônia, como o assassinato de Adelino Ramos, em Rondônia, no dia 27 de maio, no total de 29 assassinatos no campo no Brasil inteiro – e entre elas, a de Nísio Gomes, liderança Guarani Kaiowa no Mato Grosso do Sul. Ao mesmo tempo, a bancada ruralista no Congresso avançava na defesa de seus interesses, garantindo um novo código florestal, financiamento para seus projetos, ameaças a direitos indígenas, paralização das demarcações e, nesse mesmo sentido, facilidades em mecanismos mais sofisticados, juridicamente, de regularização da grilagem de terra.
A reportagem é de Felipe Milanez e publicada por CartaCapital, 24-05-2015.
Nesses anos que passaram, por um lado, aumentou a violência no campo, segundo dados da Comissão Pastoral da Terra, enquanto nas instâncias burocráticas ruralistas e seus aliados no governo exercem cada vez mais o poder para seus próprios benefícios. O último mês de maio expôs ainda mais a violência brutal – que opera, por vezes, de forma silenciosa e discreta com ameaças e intimidações. O Conselho Indigenista Missionário denunciou o sistemático assassinato de lideranças indígenas, com a morte de Eusébio Ka’apor, no Maranhão, e duas lideranças na Bahia, Gilmar, do povo Tumbalala, e Adenilson Pinduca, dos Tupinambá. O CIMI protocolou um pedido de providências em órgãos públicos para tentar alguma medida urgente do Estado no sentido de estancar a série de execuções de lideranças indígenas, levadas a cabo logo na sequência das mobilizações do Abril Indígena no país inteiro.
Todas essas mortes foram de defensores da Terra, de ambientalistas, indígenas, camponeses, extrativistas, que lutam por terra e defendem o território e os recursos da exploração predatória e ilegal. Em todos os casos, o estado acobertou o crime com impunidade. Se há violência para a demarcação de terras e criação de assentamentos, Leonilde Medeiros, no último caderno de Conflitos no Campo da CPT, nota também uma violência continuada posterior: “o reconhecimento do direito à terra não elimina a pressão e a violência, reabrindo condições para conflitos.” Foi essa pressão e violência que acontece após o Estado reconhecer o direito à terra que levou ao assassinato de Zé Cláudio e Maria. Eles viviam em um assentamento criado em 1997, o Projeto de Assentamento Agroextrativista Praialta Piranheira, mas que nos anos subsequentes passou a conviver com extração ilegal de madeira e concentração de terras por grileiros.
O crime contra Zé Cláudio e Maria chocou o mundo. A fala de Zé Cláudio no TEDxAmazonia, realizado em Manaus em novembro de 2010 (em Marabá, difamadores tentam dizer que a palestra teria sido realizada na CIA, nos Estado Unidos) choca qualquer um que assisti-la hoje. Está disponível aqui no youtube. Eu havia convidado Zé Cláudio a falar no TEDx com a intenção de atrair atenção para sua luta, e a pedido dele e de sua esposa, pois sabiam que apenas uma repercussão poderia salva-los. Como ele dizia, para ver se os mandantes fossem ficar mais “receosos”. Não ficaram. E mesmo depois da imensa repercussão do caso, ainda não estão receosos de seguir matando mais pessoas, mais ambientalistas, mais camponeses, mais extrativistas.
Recentemente, durante a cerimonia em homenagem aos 19 sem terra mortos em Eldorado dos Carajás, na Curva do S, encontrei um assentado que era amigo de Zé Cláudio. E ele me contou: o assentamento hoje vive um clima de terror. A razão: a família do mandante, José Rodrigues, continua ameaçando novas pessoas, concentrando terras, expulsando trabalhadores que sequer se acham ambientalistas, sequer denunciam as irregularidades, e sequer eram amigos de Zé Claudio ou Maria. Simplesmente porque Zé Rodrigues, que esta foragido da Justiça, está escondido no assentamento e quer continuar grilando terras.
Fiquei pensando: como é possível isso? Por que esse “coração das trevas”? De forma patente, há duas razões urgentes. Primeiro, a impunidade de uma justiça injusta, cruel e infame. Depois, um órgão federal tomado por corrupção e descaso – sendo usado, de maneira eficiente, para a concentração de terras. O INCRA veste o que antropólogo Eduardo Viveiros de Castro me disse ser uma suposta impotência estratégica” do Estado. Finge não dar conta do problema, finge uma “ausência”, que na verdade, nada mais é do que uma aliança com certos interesses ilegítimos.
1: A Justiça injusta
O julgamento dos assassinos e dos mandantes foi uma violência contra a sociedade brasileira. O juiz conduziu todo o processo para que ele caminhasse para a impunidade. E foi brindado com uma articulação religiosa entre o advogado e dois jurados que colocaram suas crenças evangélicas sobre a lei. Como me disse o advogado assistente de acusação, da Comissão Pastoral da terra: “condenar os executores e inocentar o mandante não tem sustentação”.
O juiz Murilo Lemos Simão escreveu, na sua sentença, que as vítimas “contribuíram para o crime”.
Literalmente, o juiz criminalizou as vítimas. Os dois mortos passaram, na retórica da justiça injusta, a terem a culpa por suas mortes
Esse mesmo juiz soltou, em 2012, o fazendeiro Vicente Correia Neto e os dois pistoleiros que ele contratou, Valdenir Lima dos Santos e Diego Pereira Marinho, que tinham confessado terem sido pagos para matar o líder sindical Valdemar Barbosa de Oliveira, o Piauí, em 2011, em Marabá. E os movimentos sociais e a CPT protestaram contra a sua parcialidade no julgamento de conflitos por terra. Ano passado, de forma reincidente, mais uma vez esse mesmo juiz soltou outros dois pistoleiros que mataram o líder camponês Jair Cleber e o tratorista Agnaldo Queiroz. Novamente, mais uma vez, os movimentos sociais protestaram.
Para que serve um Poder Judiciário que julga dessa maneira?
E, como previu o advogado da CPT, a sentença de Simão não teve sustentação quando subiu de instância: o Tribunal de Justiça do Estado do Pará, em julgamento em agosto do ano passado, anulou a absolvição de Zé Rodrigues. O tribunal decidiu que foi, efetivamente, a disputa pela terra o que motivou o crime.
Agora vem um fato confuso: Zé Rodrigues está foragido e não se sabe aonde está o mandado de prisão para prendê-lo. As últimas informações que chequei dão conta de que o judiciário paraense não expediu um mandado de prisão. Primeiro, deveria ter sido expedido pelo TJ, logo após o julgamento do recurso que anulou a absolvição. Mas não o fez, e remeteu diretamente o processo para Marabá. Em Marabá, o juiz Simão tampouco mandou expedir o mandado para cumprir o acórdão do TJ. A polícia civil, que deveria prender Rodrigues, tem dado explicações vagas quando questionada. Na Delegacia de Conlfitos Agrários de Marabá e em Nova Ipixuna dizem que nada receberam. Na secretaria de Segurança Pública do estado dizem que o mandado estaria no “setor de inteligência”. Corri atrás do tal mandado de prisão do mandante nessas delegacias no Pará e na secretaria de segurança pública. A última informação prestada pela CPT é que iria peticionar o o Tribunal de Justiça para expedir e determinar a prisão com urgência. Mas, e o Ministério Público, que deveria cuidar da segurança da sociedade nesse caso?
O próximo objetivo dos familiares das vítimas e seus advogados, que corre em paralelo com a expectativa de prisão de Rodrigues, desaforar o júri de Marabá para que um novo julgamento ocorra em Belém. O argumento principal é que não há condições de seguranças para se realizar um novo júri em Marabá – e basta se lembrar que, no julgamento anterior, a principal testemunha foi ameaçada de morte por um irmão de Rodrigues na frente de todo mundo, e nada aconteceu. Aqui uma análise desse gosto amargo da impunidade.
No pedido de desaforamento protocolado, escrevem os advogados da CPT que no primeiro Juri, “A tensão e a pressão também atingiu o conselho de sentença, causando reação de jurados na forma de choro”; “Essa situação comprometeu a ordem pública e, sem dúvida interferiu na imparcialidade do conselho de sentença.” Esse choro reportado havia sido de compaixão evangélica entre uma das juradas e a cena religiosa perpetrada por Rodrigues pedido perdão a seu deus e sendo amparado pelo juiz Simão – o que havia causado transtorno e revolta no público que assistia.
2: O INCRA e a culpa do governo nas mortes
Enquanto Zé Rodrigues estava preso, por ação da polícia civil do Pará que em uma mega operação o havia prendido (nessa reportagem na revista GQ mostrei os detalhes dessa operação que envolveu 65 homes da polícia), escondido com seu irmão e pistoleiro Lindonjonson, a superintendência do INCRA em Marabá decidiu assenta-lo como beneficiário da reforma agrária. Foi um escândalo – como era de se esperar, e o superintendente do INCRA caiu.
Tal foi o erro grotesco do INCRA que suspeitava-se que seria um caso de “desatenção” – e talvez não de “corrupção”.
Acontece que novas denuncias da região apontam que a situação do INCRA em Marabá é absolutamente crítica. Assentados acusam funcionários do INCRA de cobrarem propina para que eles recebam o documento de Relação de beneficiários (RB). O mesmo INCRA que assentou um assassino, dando causa não apenas a legitimar o crime praticado (isso foi usado como um argumento da defesa no julgamento) também é acusado de extorquir assentados – segundo denuncias dos próprios, eu mesmo ouvi de diferentes pessoas que pediram anonimato – para que suas posses sejam regularizadas.
Uma denuncia a que tive acesso, protocolada no Ministério Público Federal semana passada, aponta que a “omissão de gestores do INCRA foi uma das causas do assassinato do casal.” O INCRA havia assentado diversos laranjas de uma cartorária que grilava terras; o INCRA nunca apurou as denuncias feitas por Maria do Espírito Santo; o casal havia apoiado três famílias extrativistas que viviam no assentamento e que estavam sendo expulsas por Zé Rodrigues, e o INCRA nunca tomou nenhuma providência. E, o pior: o mandante e seus familiares continuam assentados, o INCRA não ingressou com nenhuma ação para retomar os lotes que foram adquiridos de forma ilegal.
A principal vítima que está em risco, agora, é a irmã de Maria, Laisa Santos Sampaio, que continua vivendo no assentamento e tem recebido ameaças de morte da família. A última, ela me contou pelo telefone essa semana, veio de uma irmã de Zé Rodrigues que disse para uma vizinha de Laisa que ela iria ser morta em breve.
Nessa última semana de maio que segue, a presidenta do INCRA Maira Lúcia de Oliveira Falcón prometeu visitar a superintendência de Marabá (SR 27). Não vai faltar problemas a serem seriamente investigados e medidas a serem tomadas com coragem. Caso não venha a ser tomada alguma providência urgente, é difícil imaginar que os escândalos que ocorrem em Marabá não respinguem em Brasília.
Zé Cláudio sabia
Andei escutando novamente as entrevistas que eu fiz com Zé Cláudio em seu lote, quando o visitei no dia 9 de outubro de 2010. Me chamou a atenção rever a sua preocupação com a questão fundiária, a concentração de terras no assentamento, e o que ele previa: as novas ameaças vindo daí. Ele sabia que o INCRA não estava cumprindo o seu papel, e que o risco a sua vida viria da parte de empresários da cidade, um consórcio: com o declínio da madeira em razão da intensidade da exploração predatória, eles iriam começar a grilar terras dentro do assentamento. E isso poderia custar a sua vida.
Zé Rodrigues, nesse sentido, é apenas um dos mandantes – e mesmo assim impune. Há outras pessoas envolvidas, como tem denunciado os familiares de Zé Cláudio e Maria, e como mostrou o inquérito feito pela polícia federal (que apontava um outro pequeno grileiro, dentro do assentamento, e um fazendeiro e empresário da cidade de Nova Ipixuna).
Disse Zé Cláudio:
Eu vivo em constante tensão, vivo de orelha em pé. De noite, a gente não consegue dormir direito. Cachorro quando late você fica alerto. Em constante tensão.
Ultimamente, já teve muita ameaça. Sem contar com ameaça de defender o meio ambiente contra os madeireiros, ainda teve umas ameaças com fazendeiros. E agora as ameaças estão continuando de novo. Porque os empresários estão concentrando terra aqui, porque está ficando difícil: a madeira está acabando mesmo e daqui mais uns anos não vai mais ter madeira mesmo. Então, o que eles estão fazendo? Estão concentrando terra aqui dentro do projeto de assentamento, o que não pode. Não pode comprar terra aqui dentro do projeto de assentamento. Ainda mais empresário. E ai, eu vou para cima, eu denuncio, eu entro no Ministério Público, e vou para o INCRA. Inclusive já teve retomada de área de gente que já esteve concentrando terra, já tomou e já perderam.
E aí, a gente fica na mira que, algum dia que venha acontecer algum negócio desses, a gente não sabe nem da onde foi que veio.
As investigações apontaram, caro Zé Cláudio. Hoje, a gente sabe de onde é que vieram os tiros que mataram você e sua esposa.
E o mesmo que Zé Cláudio viu acontecer com Dedé em Morada Nova, com o Dézinho em Rondon do Pará, com o Dema, em Altamira, conforme tinha me falado, aconteceu, até agora, com ele e sua esposa: os mandantes estão soltos.
Ainda bem que as ideias não morreram junto. Zé Cláudio tinha me falado:
Mas a gente tem uma bandeira de luta, a gente tem uma obrigação como cidadão. E eu jamais vou ver uma injustiça e ficar de boca calada, eu não fico, de jeito nenhum. Nem que isso custe a minha vida, mas eu não fico calado. Porque enquanto eu tiver folego de vida e viver aqui dentro eu combato as injustiças, seja pela depredação do ambiente, seja pela apropriação da terra que ninguém tem direito de ter a terra só para si, a terra tem que ser distribuída para todos.
Nesse domingo, 24 de maio de 2015, familiares e diversos ativistas dos movimentos sociais da região estão lá no lote onde o casal vivia, lutando por essas ideias e pela memória de Zé Cláudio e Maria.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Grilagem de terra e saque de recursos: a máquina de matar na Amazônia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU