24 Abril 2015
"As palavras-chave da Bula que proclama o Jubileu da Misericórdia, são: o concílio deve permanecer vivo no seu intento de traduzir a tradição e de abater as muralhas da auto-referencialidade. A quem pensa que o Sínodo sobre a Família poderia acabar com um nada de fato, estas palavras soam – quase a posteriori – como forte admoestação e uma espécie de desmentido", escreve de Andrea Grillo, teólogo italiano, em artigo publicado por Settimana, 26-04-2015. A tradução é de Benno Dischinger.
Eis o artigo.
A bula com a qual Francisco proclamou o jubileu da misericórdia – Misericordiae vultus – oferece um ponto de apoio para compreender mais em profundidade o significado estratégico do Sínodo dos bispos, mostrando melhor sua fina estrutura teológica e a alta hermenêutica pastoral, não obstante todas as vãs tentativas daqueles que procuram redimensionar o sentido do sínodo e do papado de Francisco, criticado por setores limitados, embora respeitáveis, da Cúria romana.
Podemos avançar uma hipótese: o texto da bula que guiará a direção do caminho eclesial de 8 de dezembro d 2015 a 23 de novembro de 2016 pode lançar – retroativamente – um feixe de luz poderosa sobre a história precedente, na qual a preparação e o desenvolvimento do sínodo ordinário dos bispos terá uma relevância objetivamente muito grande.
Em outros termos, a “lógica da misericórdia” sobre a qual é estruturado o ano santo, pode tornar-se a coroação de uma passagem epocal, na qual a herança conciliar se realiza numa Igreja cada vez menos auto-referencial, disposta a fazer da misericórdia a sua cifra identificadora.
Neste desígnio de refinada compreensão teológica e pastoral – que somente um ressentimento auto-referencial não está disposto a reconhecer – o percurso pode ser iluminado por uma “memória do concílio Vaticano II” a ser entendido precisamente como inauguração de uma “práxis de misericórdia”, segundo a qual também o jubileu é um modo da “Igreja em saída” e da Igreja que se reconhece como “campo de prófugos”, com o anúncio de uma palavra de perdão realmente estendido a todos os homens de boa vontade.
O Vaticano II como ato de misericórdia
Neste desígnio de refinada compreensão teológica e pastoral – que somente um ressentimento auto-referencial não está disposto a reconhece – o percurso pode ser iluminado por uma “memória do concílio Vaticano II”, a entender-se precisamente como inauguração de uma “práxis de misericórdia”, segundo a qual também o jubileu é um modo da “igreja em saída” e da Igreja que se reconhece como “campo de prófugos”, com o anúncio de uma palavra de perdão realmente estendida a todos os homens de boa vontade.
O texto da Bula introduz, desde seus primeiros números, o contexto conciliar como perspectiva de interpretação do jubileu. E o faz de modo claro e inequívoco: sublinha em cursivo as expressões mais potentes: “Escolhi a data de 8 de dezembro porque é plena de significado para a história recente da Igreja. Abrirei, de fato, a Porta santa no quinquagésimo aniversário da conclusão do concílio ecumênico Vaticano II. A Igreja sente a necessidade de manter vivo aquele evento. Para ela iniciava um novo percurso de sua história. Os Padres reunidos no concílio tinham percebido de modo forte, como um verdadeiro sopro do Espírito, a exigência de falar de Deus aos homens de seu tempo num modo mais compreensível.“
“Abatidas as muralhas que, por demasiado tempo, haviam encerrado a Igreja numa cidadela privilegiada, tinha chegado o tempo de anunciar o Evangelho de modo novo. Uma nova etapa da evangelização de sempre. Um novo empenho para todos os cristãos a fim de testemunharem com mais entusiasmo e convicção a sua fé. A Igreja sentia a responsabilidade de ser no mundo o sinal vivo do amor do Pai”.
As palavras-chave, neste belo texto, são: o concílio deve permanecer vivo no seu intento de traduzir a tradição e de abater as muralhas da auto-referencialidade. A quem pensa que o Sínodo poderia acabar com um nada de fato, estas palavras soam – quase a posteriori – como forte admoestação e uma espécie de desmentido.
João XXIII e Paulo VI
Igualmente importante é a escolha das citações atuadas pela Bula: dos dois “discursos extremos” – o primeiro, aquele de abertura, de João XXIII, e o último, de fechamento, de Paulo VI – foram escolhidas aquelas passagens nas quais o concílio é lido como “ato de misericórdia”, em clara contraposição a duas possibilidades que, tanto há cinquenta anos como hoje, continuam a permanecer disponíveis às opções eclesiais. Escutemos também esta passagem, com os oportunos sublinhamentos.
“Retornam à mente as palavras repletas de significado que São João XXIII pronunciou na abertura do concílio para indicar o caminho a seguir: Agora a Esposa de Cristo prefere usar a medicina da misericórdia, em vez de empunhar as armas do rigor”... “A Igreja católica, enquanto com este concílio ecumênico ergue a chama da verdade católica, quer mostrar-se mãe amabilíssima de todos, benigna, paciente, movida pela misericórdia e pela bondade com os filhos dela separados” (1).
No mesmo horizonte colocava-se também o Papa Paulo VI, que assim se exprimia na conclusão do Concílio: “Queremos antes notar como a religião do nosso concílio tenha sido principalmente a caridade... A antiga história do Samaritano foi o paradigma da espiritualidade do Concílio... Uma corrente de afeto e de admiração se derramou do concílio sobre o mundo humano moderno.
Reprovados os erros, sim; porque isso exige a caridade, não menos que a verdade; mas, para as pessoas somente exijo respeito e amor. Em vez de deprimentes diagnósticos, encorajadores remédios; em vez de funestos presságios, mensagens de confiança partiram do concílio para o mundo contemporâneo: os seus valores foram não só respeitados, mas honrados, os seus esforços sustentados, as suas aspirações purificadas e abençoadas...
Há outra coisa que deveremos relevar: toda esta riqueza doutrinal está orientada numa única direção: servir o homem. O homem, dizemos, em toda a sua condição, em toda a sua enfermidade, em toda a sua necessidade” (2).
Do concílio ao sínodo
Também estas citações são de todo iluminadas pela mens com a qual Francisco pretende celebrar não só o jubileu, mas também o sínodo.
De um lado, de fato, ele sublinha a necessária “escolha de campo” – refinadamente conciliar – que privilegia a “medicina da misericórdia” com respeito às “armas do rigor”. Do outro, torna próprios – trazendo-os de um elenco tanto elegante quanto impressionante – os pontos qualificadores que deverão caracterizar o trabalho sinodal daqui a outubro nos confrontos da “família no mundo contemporâneo”: antes que deprimentes diagnósticos, encorajadores remédios: ao invés de funestos presságios, mensagens de confiança. Parece escutar-se o eco do duro confronto que nestes meses contrapôs tão fortemente nesta linha serenamente conciliar a insistência sobre a “tradição ameaçada”, sobre os “valores negados”, sobre “resvaladuras anticatólicas”.
Da Bula do Jubileu vem quase um “decálogo conciliar para o Sínodo”: com surpreendente atualidade e com um único fim: “servir o ser humano”, para que todos possam encontrar acesso à reconciliação com Deus.
Notas:
1 Discurso de abertura do concílio ecumênico Vaticano II, Gaudet Mater Ecclesia - 11 de outubro de 1962, 2-3.
2 Alocução na última sessão pública, 7 de dezembro.
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Um decálogo conciliar para o Sínodo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU