08 Abril 2015
Professor de Antigo Testamento na Faculdade Valdense de Teologia em Roma, Daniele Garrone afirma que "a Reforma se distanciou da hostilidade antijudaica baseada nas acusações de que os judeus traziam a peste, sequestravam e matavam crianças cristãs, profanavam hóstias. Não diminui, no entanto, a aversão teológica ao judaísmo. A polêmica de Lutero se desenvolveu e cresceu em tons ao redor do problema da interpretação do Antigo Testamento".
A reportagem é de Claudio Paravati, publicada na revista Confronti, publicação mensal de fé política e vida cotidiana, de abril de 2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis a entrevista.
O debate sobre os Cadernos Negros e, portanto, sobre o antissemitismo de Martin Heidegger sugeriu a leitura histórica "de Lutero a Heidegger". De Lutero à Alemanha nazista?
A ideia de uma linha direta não resiste a uma reconstrução historiográfica e não é sequer nova: foi sustentada por nazistas, por alguns poucos teólogos protestantes pró-nazistas e, a partir de 1945, por fortes críticos da Alemanha, argumentando que aquelas eram as raízes e que, portanto, só podia acabar assim. No mais virulento dos seus escritos sobre os judeus, em 1543, Lutero acrescenta um pedido explícito para que as autoridades tomem procedimentos antijudaicos. Os seus conselhos se assemelham, em alguns pontos, ao que aconteceu na "Kristallnacht" [Noite dos Cristais]: é preciso confiscar os seus livros e queimá-los, fechar as sinagogas, colocar os judeus a fazer trabalhos manuais...
Outros reformadores (Bucer, Bullinger) também se pronunciaram contra a tolerância para com os judeus, e o Talmude foi queimado em Roma, no Campo dei Fiori, em 1553. Depois do século XVI, os escritos antijudaicos de Lutero foram reimpressos apenas nas grandes edições de estudo e, por isso, não tiveram uma ampla difusão. Foram publicados em edição manual apenas durante o nazismo, a ponto de haver alguns nazistas que repreendiam que aquele Lutero, que eles apresentavam como congenial a eles, tinha sido mantido escondido.
Portanto, como se deve olhar para essa relação entre Reforma e história posterior?
A questão é muito mais complicada. A Reforma do século XVI herdou e pôs em discussão apenas em mínima parte a visão tradicional de Israel que se desenvolveu muito cedo na história do cristianismo, segundo a qual a única chave de leitura legítima do Antigo Testamento é o Novo Testamento. Os verdadeiros herdeiros espirituais do povo de Israel e bíblico são os cristãos e a Igreja. Essa é uma herança comum.
A Reforma se distanciou da hostilidade antijudaica baseada nas acusações de que os judeus traziam a peste, sequestravam e matavam crianças cristãs, profanavam hóstias. Não diminui, no entanto, a aversão teológica ao judaísmo. A polêmica de Lutero se desenvolveu e cresceu em tons em torno do problema da interpretação do Antigo Testamento. O confronto com os judeus se tornou para ele uma espécie de "batalha final pela Bíblia", para usar a formulação eficaz de um historiador contemporâneo.
Lutero abandona a exegese medieval com os seus "quatro sentidos" para se basear apenas no sentido literal ou histórico: é por meio dessas palavras, e não para além delas, que se ouve a Palavra de Deus. Além disso, Lutero defendeu o retorno ao original hebraico. Os outros reformadores, ainda mais devedores do Humanismo, compartilharam esse retorno às fontes, à veritas hebraica. Desenvolveram-se escolas de hebraístas cristãos e também protestantes. Lutero, portanto, busca nas Escrituras em hebraico a Palavra de Deus e a encontro nelas como anúncio de Cristo, desde as primeiras páginas do Gênesis ao profeta Ageu, como, aliás, fazia a exegese anterior.
Para ele, que encontra Cristo no hebraico do Antigo Testamento, o saber que os judeus leem nesses textos naquela língua, com resultados totalmente opostos, torna-se inquietante, ameaçador; para ele, ele só pode ser explicado como voluntária e obstinada falsificação da clareza das Escrituras. Daí a sua polêmica, obsessiva, raivosa: eu penso que essa animosidade estava ligada ao fato de que todo o discurso teológico de Lutero queria estar ligado apenas à Escritura, ou seja, "sem rede", sem possíveis obstruções na tradição, no magistério, na filosofia; só a Escritura e, em particular, aquela Bíblia hebraica à qual ele dedicou a maior parte do magistério. Os judeus, porém, não encontravam ali aquilo que lhe parecia já se impor no plano literal.
Se os estereótipos antijudaicos eram difusos e amplamente compartilhados naquele tempo, por que Lutero, sobre o assunto, é mais chamado em causa do que outros?
De um lado, está o fato de que, com a mesma atitude em relação aos judeus, Lutero foi mais prolífico em termos de escritos temáticos. A distinção entre Lei e Evangelho, em seguida, foi muitas vezes entendida como contraposição entre a economia das obras e legalismo, e a economia da graça. E aqui era fácil polemizar com os judeus. Na frente reformada, trabalhou-se bastante com a ideia de um único pacto, isto é, com a ideia de que, desde o início, Deus tinha concluído uma única aliança com a humanidade e com Israel, depois cumprida em Cristo e estendida também aos gentios, mas sem que isso renegasse ou abolisse as estipulações anteriores.
Também nessa linha, no entanto, era óbvio que o caminho da única aliança continuava na comunidade cristã, não no povo judeu não cristão. Porém, é verdade que, na frente reformada (pense-se no puritanismo), desenvolveu-se um certo pró-judaísmo. Parece-me que isso depende, principalmente, do fato de que as comunidades reformadas – muitas vezes minoritárias, perseguidas, diaspóricas – encontraram no Antigo Testamento a sua própria história de escravidão, de exílios e diásporas, e pensaram que podiam reviver, dos Vales Valdenses à América e ao Sul da África, para o bem ou para o mal, aquela que tinha sido a história da "Igreja de Israel", julgada e perdoada por Deus, conduzida rumo à sua terra.
Portanto, essa é a linha direta entre Lutero e o nazismo?
Não há nenhuma linha direta nem de Lutero a Hitler, nem de Lutero a Heidegger. A relação entre Reforma e modernidade, entendida como liberdade de consciência, Estado laico e democracia, também é complexa, e a história nos ajuda a perceber essa complexidade. Certamente, existem prenúncios de modernidade na Reforma, mas não nexos unívocos e diretos. Justamente Lutero, que tem essa visão do judaísmo, ao colocar no centro do discurso o indivíduo que se torna pessoa por ser perdoado por Deus, traz à tona um novo sujeito. Um sujeito que pode ler a Bíblia, que, acima de si, não tem mais ninguém, a não ser o Deus que o perdoou.
Certamente, esse é um prenúncio de modernidade. Para que isso se articulasse, depois, em liberdade de consciência concebida como direito fundamental de cada um, eram necessárias outras conquistas. Certamente, o fato de ter abolido a escolha religiosa como abandono do mundo e aquisição de um estado particularmente merecedor está na base do surgimento da moderna concepção da profissão, do trabalho como vocação. O seu trabalho não é mais simplesmente um acidente que você deve fazer para ganhar a vida, mas é o modo como você responde à sua vocação e em que você é sacerdote: essa é a visão do sacerdócio universal em Lutero.
Sendo um único sacerdócio que é o de Cristo, nós somos todos sacerdotes, e, portanto, para servir a Deus como os sacerdotes O devem servir, não é preciso ser pastor, não é preciso se tornar padre (como se sabe, o pastor não é um sacerdote, mas é uma pessoa que estudou algumas coisas que outros não estudaram e a quem a comunidade delega esse papel). Lutero, em um escrito, chama-o de ius commune christianorum, todos os cristãos têm o mesmo ius. Algumas funções desse ius são confiadas pela comunidade a alguém em particular. Em suma, entre nós, hoje, e o século XVI, não há "linhas diretas" e unívocas, mas a história.
Antissemitismo hoje: é algo novo?
Há um debate conceitual e historiográfico sobre antijudaísmo e antissemitismo. Eu defendo a distinção entre os dois termos. Por um lado, justamente porque sou contrário a uma apologética que defende que o antissemitismo racial moderno não tem nada a ver com o tradicional antijudaísmo cristão que foi apenas teológico. Por outro lado, acho que não se pode afirmar que o antijudaísmo cristão, de Lutero ou de outros, produziu a política do extermínio. A linha predominante na Idade Média, ao contrário, foi a de conservar o povo judeu, em condição subordinada, como "povo testemunha" do juízo de Deus e da verdade do cristianismo.
A polêmica religiosa e ideológica propagandeada em homilias e livros de teologia, pregada do púlpito, é outra coisa em relação a esse racismo biológico, "científico"; mas é na criação e difusão do estereótipo do judeu que consiste a pesada responsabilidade do cristianismo. Não só nas lendas caluniosas, mas também em discursos "de bem", a identidade cristã se alimentava de uma figura negativa, o judeu onipresente nos discursos cristãos, mesmo quando não estivesse presente no território em que esses discursos ocorriam. O antijudaísmo teológico foi a implicação da incapacidade de manter a irredutível alteridade de Israel, do qual provinha, por parte de uma Igreja que conquistava o mundo inteiro para si mesma. Infelizmente, foi necessária a Shoá, é preciso dizer, para que se começasse a tomar consciência dessas dinâmicas.
Então, em que sentido podemos entender antijudaísmo e antissemitismo depois da Shoá?
O antijudaísmo havia antes e poderia sobreviver apesar de ter rejeitado o antissemitismo de marca racista, biologista, em suma, nazista. As nossas perguntas de hoje em relação aos cristãos e a Shoá não se limitam apenas ao problema ético daquelas gerações de cristãos que subestimaram, ou ignoraram, ou aceitaram, ou apoiaram o nazismo e a sua política racial. O nosso problema é ver que continuidades e que rupturas nós instituímos com um discurso que começa no século II e que produziu o estereótipo do judeu a partir de categorias cristãs. Que identidade cristã nós podemos articular hoje, reconhecendo-nos devedores em relação às Escrituras de Israel, mas sabendo que nós damos a ela uma leitura e que há outra que nós não devemos e não queremos demonizar? Nesse sentido, a nossa tarefa é trabalhar sobre o antijudaísmo que carregamos conosco e com o qual devemos fazer as contas.
Como fazer isso depois de Auschwitz?
Não para reduzir ou atenuar, mas para acentuar a nossa responsabilidade, eu acentuaria a historicidade de Auschwitz. Se isso se torna uma questão metafísica, então, por assim dizer, não podemos fazer nada. Ao contrário, Auschwitz é uma coisa enorme, histórica, que pode se repetir. Porque se pode imitar uma criação humana. Ela foi feita e, em seguida, pode ser refeita, por pessoas como nós. Por pessoas que eram fanáticas e presas ao ódio. Por pessoas que tinham preconceitos e, portanto, diziam que tudo bem. Por pessoas que sabiam e não queriam ver etc.
Eu defendo que há ao menos uma unicidade de Auschwitz no que diz respeito à herança cristã. Em Auschwitz, não morreram apenas judeus, mas também homossexuais e ciganos, para citar apenas outras duas categorias. Mas a diferença é que não se falou dos homossexuais no coração do discurso cristão, mas dos judeus sim. Devemos ler historicamente Auschwitz e não torná-lo um monumento metafísico, caso contrário, torna-se um problema de Deus, e eu posso ficar só olhando. Ao redor de Auschwitz, havia pessoas como nós, com ideias, ações e omissões.
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De Lutero a Hitler, nada de continuidade. Entrevista com Daniele Garrone - Instituto Humanitas Unisinos - IHU