16 Março 2015
"Ele é conhecido como um mestre espiritual, e com razão: ninguém teve uma busca mais ardente. Ele ficou conhecido como um homem de ponta para a escrita católica norte-americana, e assim foi: sua fama, sua energia e a gama de seus interesses fizeram com que, nos anos do pós-guerra, todos os caminhos católicos passassem por ele".
A opinião é de Paul Elie, pesquisador da Georgetown University, autor de The Life You Save May Be Your Own: An American Pilgrimage. O artigo foi publicado no sítio The New Yorker, 05-03-2015. A tradução é de Claudia Sbadelotto.
Eis o texto.
Aqui termina o livro, mas não a busca. Com essa frase de efeito em latim, Thomas Merton (na foto, em 1951) terminou "A montanha dos sete patamares": Sit finis libri, non finis quaerendi. Colocada como que em uma lápide com letra minúscula, ao mesmo tempo pomposa e obscura, a frase vai contra o espírito do livro, que é pessoal, casual, prolixo e autodepreciativo - a história de uma conversão ao catolicismo e de um chamado a viver em um mosteiro trapista contada como as aventuras de um jovem errante em Nova York.
Aqui termina o livro, mas não a busca. Essas palavras acabaram sendo tão verdadeiras quanto quaisquer outras que Merton escreveu antes ou depois. "A montanha dos sete patamares" vendeu seiscentos mil exemplares entre 1948 e 1949, e o sucesso do livro forçou Merton a ter o papel de uma celebridade de clausura, um porta-voz do silêncio.
Enquadrado por este desenvolvimento e repentinamente descoberto como um autor, Merton pôs-se a superar "as limitações que eu criei para mim mesmo com A montanha dos sete patamares" e "a imagem pública artificial que essa autobiografia criou". Não haveria nenhuma sequela, mas ao longo dos próximos 20 anos, ele iria espalhar relatos de suas novas aventuras em dezenas de milhares de páginas: livros devocionais, poemas, ensaios, cartas, diários, aforismos e letras de músicas - tudo, menos ficção.
Aqui termina o livro, mas não a busca. Sua busca definiu os termos da busca religiosa moderna para os leitores de três gerações - católicos do pós guerra, peregrinos dos anos sessenta, progressistas opositores da era Reagan e de João Paulo II - que fizeram da sua busca a sua própria. E, no entanto, a exposição de livros e artigos que a Columbia University (sua alma mater) disponibilizou para marcar seu centenário sugere que a busca terminou - que Merton, por tanto tempo, um precursor ou representante de outros buscadores, passou para a história finalmente.
Dois textos de "A montanha dos sete patamares" - ambos marcados a lápis por seu amigo e eventual editor da Columbia, Robert Giroux - estão colocados em uma vitrine, na metade da exposição. Esta segue o esquema habitual da carreira de Merton, na qual a autobiografia é um divisor de águas, dividindo a vida em antes e depois. De um lado, estão os anuários da Columbia; desenhos; páginas de um diário que Merton mantinha e um romance que ele escreveu enquanto vivia na Perry Street, em 1939; e algumas cartas e poemas que ele enviou aos amigos depois que decidiu deixar "o mundo", em 1941, e entrar para um mosteiro trapista, onde ele estaria proibido de sair da propriedade, falar casualmente ou escrever por escrever. Do outro lado, estão exemplos dos escritos que fluiram dele depois de que sua autobiografia (escrita com permissão) fizesse dele um bem lucrativo para o mosteiro. Ali estão seus livros sobre vida monástica e oração contemplativa, e seu diário publicado, "O Sinal de Jonas".
Nesse ponto, está a carta que ele redigiu sobre a vida diária na Abadia de Gethsemani, os horários definidos rigorosamente como aqueles de um soldado ou de um diretor-executivo. Ali estão as suas contribuições para o renascimento católico na liturgia e na arte, pródigas produções tipográficas em cartolina. Ali também está a sinopse que ele enviou para a orelha do livro de Martin Luther King, Jr, "Why We Can not Wait": "Este é um pequeno livro histórico, com a qual todo norte-americano, negro ou branco, deveria ter familiaridade". Ali está uma edição de "Monks Pond", a revista literária que ele diagramou no mosteiro, com páginas dobradas e grampeadas, em meados dos anos sessenta. Ali está uma carta manuscrita com o papel timbrado do Hotel Oriental em Bangkok, quando fez uma parada durante a viagem para a Ásia, passando pela Califórnia e Alasca, viagem que ele fez após os trapistas atenuarem sua regra contra viagens. E ali está um telegrama já amarelado enviado a um velho professor de Merton na Columbia University, Mark Van Doren: "Lamento informar a morte do padre Merton em Bangkok".
Sua morte ainda pega as pessoas de surpresa. Ele era um dos palestrantes em uma conferência de monges em Bangkok. Depois de terminar uma palestra (sobre o monasticismo e o marxismo), ele foi para a casa de hóspedes para descansar. Ele tomou um banho e, em seguida, caiu no chão do banheiro molhado; ele segurou um ventilador rotativo para tentar equilibrar-se e foi eletrocutado. Era o dia 10 de dezembro de 1968, exatamente 27 anos após ele ter entrado no mosteiro trapista, quando tinha vinte e sete anos - um vinco numerológico que levou algumas pessoas a sugerir que a sua morte foi parte de um padrão, sinistro ou providencial.
Merton foi embora antes do tempo, mas a sua vida teve uma terceira parte na qual ele acompanhou seus leitores imaginativamente - sua relativa juventude, sua morte repentina em uma terra distante e uma corrida constante de publicações póstumas nos fez sentir que a sua peregrinação ainda estava em progresso. Quando pensamos no caso Catonsville1 e nas fitas de Watergate; no treinamento EST2 e na Nova Era; em Jerry Falwell3 e no cardeal John O'Connor4; no escudo antimísseis Star Wars e na crise de abuso sexual do clero: sobre tudo isso, poderíamos perguntar: "O que Merton teria dito?". E nós poderíamos supor que as coisas teriam sido diferentes se ele ainda estivesse vivo, bombeando missivas de dentro do eremitério de concreto que ele construiu em uma colina desgrenhada perto do mosteiro. Poderíamos agir como se ele estivesse vivo, uma pessoa cuja mudança de ideia nós conhecíamos melhor do que a nossa própria.
Agora, a busca terminou, e Merton - cujos pais morreram na década de trinta, cujo irmão morreu na Guerra Mundial - está embalsamado em papel e tinta de fita.
Isso é o que eu senti quando estive na Columbia, de qualquer maneira. A exposição, na Coleção Livros Raros e Manuscritos, no andar de cima da Biblioteca Butler, está construída sobre a base de uma exposição sobre Merton realizada no mesmo local em 1990. Eu fui à exposição de 1990, enquanto ainda era um aluno de pós-graduação do programa de Mestrado em Belas Artes da Columbia University. Fui passando de uma caixa de vidro para a outra, nas salas superaquecidas, silenciosas, exceto pelos "poc-poc" das bolas de tênis na quadra que fica perto da biblioteca. Como muitos dos leitores de Merton, eu o tinha engolido por inteiro, e os manuscritos à vista posicionavam-se pelas fases de sua vida: o super-trapista; um poeta moderno; a versão católica de Gandhi, Martin Luther King e D. T. Suzuki, um homem santo com um discipulado mundano; um eremita em construção; a voz da não-violência; um pretenso boêmio de macacão e camisa de brim, com a câmera de 35 mm pendurada no braço. E como muitos dos leitores de Merton, identifiquei minhas próprias fases da vida com as de Merton: como ele tinha ensinado composição aos calouros na Columbia University, eu também estava ensinando composição aos calouros na Columbia University; como ele havia escrito uma autobiografia, eu também gostaria de tentar viver de uma maneira que exigisse uma autobiografia.
Acabei escrevendo algo mais. Dessa exposição, veio o impulso para escrever sobre Merton e sobre os escritores católicos norte-americanos que foram seus contemporâneos - como Flannery O'Connor, Walker Percy e Dorothy Day - de tal forma que suas histórias pudessem ser vistas como aspectos de uma história. Doze anos mais tarde, o livro estava pronto, com textos datilografados de Merton interpretados como pegadas da peregrinação de um escritor que procurou tirar o padrão figurado elaborado do misticismo católico e torná-lo o padrão de sua própria caminhada interna em uma abadia no Kentucky.
Doze anos depois disso, Merton não é mais um homem em etapas, pelo menos não para o meu olhar. As cartas, livros e desenhos, por muito tempo vistos como a expressão de espasmos de sua inquietação, agora parecem todos uma peça serena. Aqui está Merton como um autor notável da era da máquina de escrever - uma era cuja austeridade preta-e-branca parece ainda mais distinta da nossa do que era no anno dot matrix de 1990. Sua vida de trabalho (tempo visto como frenético e sem interrupção) agora parece impressionantemente eficiente: uma série muito longa do que ele chamou de pensamentos na solidão, cada um deles concebido, esclarecido, trabalhado e datilografado em sua máquina de escrever manual e, em seguida, postado (pelos Correios dos EUA) para seus editores e correspondentes - rolos no estilo Kerouac5 de auto-expressão, subdivididos em várias milhares de peças. A escrita em si, de modo uniforme de alta qualidade, parece uma grande explosão de energia - o impulso em direção à vida de um homem que amava as cidades e as pessoas, mas que amava a solidão e a Deus ainda mais, e que encontrou um ponto médio tolerável quando estava sozinho e escrevendo para alguém.
"Para esclarecer quaisquer equívocos quanto a saber se eu poderia ser o que é vulgarmente conhecido como um preguiçoso...". Foi por isso (ele explicou) que ele estava escrevendo; e numa carta de mil palavras, urgente, porém profundamente pensada e cuidadosamente datilografada, ele expôs as razões porque ele não era de nenhuma maneira um preguiçoso. A carta, datada de dezembro de 1941, foi dirigida ao escritório de alistamento: Pearl Harbor tinha acabado de ser bombardeado, e Merton, que estava trabalhando como professor adjunto de inglês, escreveu para ser dispensado do serviço militar, alegando que, como católico, ele estava comprometido com a não-violência, e que, além disso, estava entrando para um mosteiro. Mas essa carta inicial dá voz ao impulso que percorre toda a sua escrita, seja datilografada ou manuscrita em sua caligrafia fluída, bonita e pequena. Eu não sou um preguiçoso. Ele é conhecido como um mestre espiritual, e com razão: ninguém teve uma busca mais ardente. Ele ficou conhecido como um homem de ponta para a escrita católica norte-americana, e assim foi: sua fama, sua energia e a gama de seus interesses fizeram com que, nos anos do pós-guerra, todos os caminhos católicos passassem por ele. Ele é conhecido como um expositor da oração contemplativa, e pode ser que ele foi o último escritor norte-americano a descrever a oração com a confiança pura e sem cortes que o objeto da oração realmente existe e não é um produto da imaginação cultural.
Merton era todas essas coisas; e todas essas coisas tinham suas raízes em sua tremenda insatisfação com o mundo como ele o encontrou. O que é realmente notável sobre ele, um século depois, é o quão profunda era a sua insatisfação e quão altas eram as suas expectativas para si mesmo e para a sua vida. Aqui estava um jovem, aparentemente próspero, que colocou de lado medidas exteriores - caracterizando a Columbia como "uma grande fábrica de fuligem", desdenhando seu trabalho como crítico literário freelance para o Times e o Herald Tribune (ele tinha 24 anos) como uma busca trivial. Aqui estava uma pessoa que resolveu não perder o sentido de sua vida no fato de vivê-la. Aqui estava um homem errante que estava determinado a não ser preguiçoso.
É um fato pouco conhecido que J. D. Salinger fez um curso de extensão em escrita na Columbia University em 1939, quando Merton estava lecionando esse mesmo curso. É mais conhecido que no ano após Robert Giroux ter publicado "A montanha dos sete patamares", pela Harcourt Brace, ele tentou publicar "O Apanhador no Campo de Centeio" - mas ele foi colocado de lado pelos superiores da empresa. Essas correspondências são significativas. Como os próprios homens errantes de Salinger6 - Holden Caulfield, Buddy e Seymour Glass - Merton definiu-se contra os embusteiros como uma forma de definir-se contra o embuste de si mesmo. Como eles, ele procurou uma vida, um modo de vida, que fosse autêntico e não falso.
Enquanto Salinger se retirou para New Hampshire para buscar um silêncio literário, a retirada de Merton para o Kentucky acabou por ser o oposto do silêncio. "É possível duvidar de que eu me tornei um monge (uma dúvida com a qual tenho que conviver), mas não é possível duvidar de que eu sou um escritor, que eu nasci um escritor e provavelmente vou morrer como um", ele escreveu, em 1961, na introdução de uma antologia de sua obra. "Pode ser desconcertante e não edificante, mas esse parece ser o meu destino e a minha vocação".
"Bem, o que é que eu tenho tentado dizer?", perguntou ele na mesma obra. Depois de descartar a resposta óbvia - que ele estava tentando defender a vida contemplativa - ele respondeu a pergunta com outra pergunta. "Quando um homem entra em um mosteiro, ele precisa colocar-se diante da comunidade e formalmente responder a uma pergunta ritual: Quid petis? 'O que pedes?' A resposta não é a de que ele busca uma vida feliz, ou escapar de ansiedade, ou a liberdade do pecado, ou o cume da contemplação. A resposta é que ele busca misericórdia. 'A misericórdia de Deus e a Ordem'". Isso, declarou Merton, é o que ele tinha pedido, e ele ofereceu a sua escrita como evidência de "que eu encontrei o que procurava e continuo buscando".
"O que estou procurando? O que estou tentando dizer?". Essas são questões que cada escritor sério se pergunta. Ver as amostras da escrita de Merton arrumadas atrás de um vidro é saber que ele fez essas perguntas tão autenticamente quanto qualquer outro escritor. Vê-las novamente no mesmo lugar 25 anos mais tarde - capturar o seu próprio reflexo no vidro: a testa marcada com linhas, o cabelo nas têmporas tonsurado pelo tempo - é ver o trabalho de Merton mudar de um ideal a uma medida diante de seus olhos. É reconhecer que a sua autenticidade agora pertence a ele e ao passado e não há crédito para aqueles de nós que o admiram hoje.
O Papa Francisco, que fez da misericórdia um tema-chave de seu pontificado, é um membro da geração após Merton. O Dalai Lama - um jovem radiante quando Merton o conheceu em Dharamsala - agora é o mais velho dos anciãos. Os monges noviços que foram orientados por Merton nos anos sessenta são octogenários. Eu, pessoalmente, estou perto dos cinqüenta - a idade que Merton tinha quando ele começou, segundo os estudiosos, a sua etapa "última" ou "final" - e eu posso dizer o que eu estou tentando dizer ou o que estou procurando? Não tão bem ou tão urgentemente quanto Merton, isso é certo. Aqui termina o livro, mas não a busca. Agora, sua busca acabou e é um desafio e uma repreensão para a nossa.
Notas:
1. Relativo a nove católicos que queimaram suas convocações para a Guerra do Vietnam em um estacionamento do posto militar de Catonsville (entre os nove estavam um padre jesuíta, um irmão lassalista, um ex-padre josefino e um ex-padre Maryknoll).
2. Também conhecido como Seminários de Treinamento Erhard, organizados originalmente por Werner H. Erhard. Esses seminários tem como objetivo mudar nossos pensamentos sobre a realidade.
3. Famoso televangelista e comentarista político conservador dos Estados Unidos.
4. Cardeal de Nova York, falecido no ano 2000.
5. Jack Kerouac, escritor norte-americano
6. Escritor norte-americano, autor de várias obras célebres, entre elas "O Apanhador no Campo de Centeio".
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Foto: AP
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Thomas Merton e a eterna busca - Instituto Humanitas Unisinos - IHU