04 Março 2015
Entregue há pouco mais de dois meses, à presidenta da República, Dilma Rousseff, o relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV) tornou-se questão polêmica, de disputa de poder e termômetro nacional do preconceito, da discriminação e da cultura autoritária vigente no País.
A entrevista é de Ivânia Vieira, publicada por A Crítica, 03-03-2015.
Em meio ao embate, o documento se consagra como um dos mais relevantes já produzidos pela sociedade brasileira desde o ano de 1.500. A afirmação é do teólogo e filósofo Egydio Schwade, coordenador do Comitê Estadual de Direito à Verdade, à Memória e à Justiça do Amazonas.
Ativista dos direitos indígenas e das populações em vulnerabilidade, fundador do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Egydio, 79, considera os índios, os quilombolas e agricultores que resistiram e resistem aos projetos implantados na vigência do regime militar e mantidos até hoje como “perseguidos políticos” e pede vontade política para ouvi-los e desenvolver ações capazes de promover mudanças que cessem os males causados.
Do trabalho realizado pela Comissão Estadual da Verdade nasceram o relatório que integra a versão nacional do documento e o livro “A Ditadura Militar e o Genocídio dos Índios Waimiri-Atroari”, lançado em Manaus, no dia 11 de dezembro do ano passado.
Para Egydio Schwade, a CNV tem um longo caminho a percorrer nessa busca pela verdade, a Justiça e o direito à memória de todas as vítimas do período ditatorial.
“É necessário avançar pelo caminho dos indígenas, dos agricultores e dos quilombolas, é necessário um trabalho multicultural”, defende Egydio nesta entrevista ao A Crítica.
Eis a entrevista.
Qual é a sua sensação após o relatório pronto da Comissão Nacional da Verdade ter sido entregue? O que ficou faltando?
Excetuando aquelas graves gafes, aliás grosseiras, vejo o relatório como um dos documentos mais importantes produzidos desde 1.500 pela sociedade brasileira. O capítulo sobre os índios e as recomendações com respeito aos mesmos são importantes e correspondem às nossas expectativas.
Mas com respeito às inaceitáveis afirmações em outros capítulos, evidenciando velhos preconceitos devem ser corrigidos para não denegrir o relatório e comprometê-lo seriamente. De resto necessito ainda ler o relatório mais atentamente para evidenciar eventuais outras falhas ou lacunas.
As inclusões feitas, com nomes e responsabilizações de pessoas são suficientes?
Não são suficientes. É preciso avançar pelo caminho dos indígenas, agricultores e quilombolas mortos. Tendo resistido aos projetos da Ditadura Militar e continuando a resistir contra os projetos desencadeados pela Ditadura militar, eles (indígenas, agricultores e quilombolas) também são perseguidos políticos ou mortos por razões políticas.
Quais são os erros ou falhas da academia e do jornalismo no trato desse tema quando relacionado aos povos indígenas?
Acho que em nível nacional tanto a academia quanto o jornalismo estão hoje muito distantes e até omissos com relação à importante questão indígena. Muito mais distante do que ao tempo da Ditadura Militar. Tanto uma como o outro ainda não se deram conta do real sofrimento porque passaram esses povos e continuam passando e também da importância da luta indígena para um futuro melhor e feliz do nosso Brasil. Não é a luta dos índios, é a nossa luta.
Que passos devem ser dados pela comissão e/ou pelo Governo Brasileiro para avançar, de fato, nessa manifestação da verdade?
Antes de mais nada é preciso ter vontade política para ouvir as populações atingidas pelos projetos e ações da Ditadura e em seguida partir para medidas que abram caminho rumo a ações concretas que superem os males causados e continuados da Ditadura Militar.
Como o senhor ver o cabo de guerra em torno da Lei da Anistia? E quanto a posição do STF?
É muito triste constatar a insistência de um grupo importante de militares defendendo a posição mais negra da história militar sobre os cidadãos de nosso País, quando tem tantos bons exemplos a se inspirar como aqui mesmo, no caso do general Alípio Bandeira, que foi um exemplo de presença junto às populações indígenas mais oprimidas na região.
Em 1926, em seu livro “Jauapery”, ele deixou a todos esse recado: “Bem sei que muita gente, entre ela a maioria dos letrados, estranha e condena a História escrita assim com tão grande franqueza. Mas se o que se diz é a verdade, e se a verdade é dita com decência e publicamente, de modo que possam os acusados se defenderem, porque não dizê-la? E porque motivo não se há de dar a esses homens, que tão despejadamente desonram os cargos, o simples castigo de registrar os seus malefícios, já que outros não tem? Se os historiadores escrevessem assim era bem possível que muitos desses crimes fossem evitados por se arrecearem os criminosos da execração pública” [Escreveu o Gal. Alípio Bandeira, em 1926, após peregrinação entre os Waimiri-Atroari e escutar seus relatos sobre outros massacres perpetrados pelas forças públicas a mando de presidentes da Província e governadores do Estado do Amazonas]. (p. 40).
Quanto ao STF já que vive muito alienado e apático referente às questões e sofrimento do povo brasileiro, talvez pelos seus altos salários, deveria, em suas decisões, pelos menos inspirar-se em outros órgãos oficiais mais atuantes nessas causas, como, por exemplo, o MPF.
No caso das torturas e mortes na Amazônia no período do regime militar, qual é o balanço pós-relatório?
Há ainda um longo caminho pela frente, principalmente no que se refere à tortura e às mortes de indígenas e agricultores. Aos indígenas, principalmente pela tortura imposta tanto pelos governos militares quanto pelos que os seguiram com referência à perda e a não definição de seus territórios e pelo não reconhecimento de sua autonomia.
Aos agricultores pela tortura e conflitos iniciados pelos governos militares que incentivaram a grilagem de terras na Amazônia, grilagem que vem sendo reconhecida e continuada pelos governos que se seguiram até os nossos dias, deixando milhares de agricultores sem condições de obterem o título das terras que há anos vem trabalhando.
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‘Não se deram conta do sofrimento dos indígenas’, diz ativista sobre relatório da CNV - Instituto Humanitas Unisinos - IHU