03 Fevereiro 2015
“Aqui nasceu Thomas Merton, escritor americano”, recita laconicamente a lápide sobre uma casa ordinária de Prades, aldeia dos Pireneus franceses. A data se encontra, junto a poucas informações essenciais, na carta que o noviço Merton escreveu no início de 1942 ao seu abade, no momento de seu ingresso no Mosteiro de Getsêmani em Kentucky: “Nasci aos 31 de janeiro em Prades, França, na diocese de Perpignan, de pais protestantes”. Estas concisas precisações - diocese e confissão cristã dos progenitores, necessárias para ser admitido num mosteiro católico – são literariamente transfiguradas na autobiografia que Merton escreverá seis anos mais tarde, agora monge professo e na iminência de se tornar, precisamente com aquele livro, escritor de sucesso mundial: “No último dia de janeiro de 1915, sob o signo de Aquário, num ano de uma grande guerra, nas divisas com a Espanha, à sombra de montes franceses, eu vim ao mundo”.
A reportagem é de Enzo Bianchi, publicado por La Stampa, 01-02-2015. A tradução é de Benno Dischinger.
“Assim, exatamente há cem anos, tem início a vida de um monge trapista, poeta, crítico social e escritor espiritual” (como recita outra lápide) que agora jaz sepultado sob uma cruz branca com a simples inscrição: “Fr. Louis Merton, falecido aos dez de dezembro de 1968”. Em meio a estes memoriais, uma vida extraordinária. Uma das chaves para interpretar uma existência tão rica e facetada fornecem-na precisamente as páginas do diário que Merton dedica ao evento ocorrido “em Louisville, no ângulo entre a Quarta Avenida e Walmut, no centro da zona com os melhores negócios da cidade”, onde agora surge a segunda estela recém recordada.
É o dia 19 de março de 1958 e Merton, na época mestre dos noviços de seu mosteiro, é colhido por estupor: “Fui de vez tomado pela idéia que eu amava todo aquele povo, que me pertencia como eu pertenço a eles, que não podíamos ser estranhos uns aos outros, também se de raças diversas”. É o estupor de descobrir-se pertencente à única humanidade, sem isenções e privilégios, um estupor que joga longe a ilusão que emitem os votos religiosos quando geram uma criatura de diversa espécie, pseudo-anjos, “homens espirituais, homens de vida interior”.
E é o estupor que havia caracterizado outros momentos decisivos da vida de Merton: o estupor do ateu libertino que fica encantado pelos escritos de Etienne Gilson e Jacques Maritain e, após poucos meses de freqüentação da igreja de Corpus Christi em Nova York, é batizado. É o estupor do jovem docente universitário que, somente três anos após o batismo, descobre uma abadia trapista no Kentucky rural e pede ser aí admitido como noviço. É o estupor divertido do monge que assim recorda o momento de sua profissão solene quando, estendido sobre o pavimento da igreja, ouve o abade invocar o Espírito Santo sobre ele: “Comecei a rir com a boca no pó: sem saber como e por que, tinha cumprido realmente a coisa justa, e também uma coisa magnífica”. É o estupor de quem sente nascer fora dos muros do mosteiro o germe dos movimentos pacifistas e pelos direitos civis, e experimenta do interior do mosteiro, o sopro novo que o concilio do Papa João está fazendo circular na Igreja.
Será ainda o sopro novo do monge que procura uma impossível conciliação entre o voto de obediência a uma comunidade cenobita e o crescente desejo de uma solidão eremítica. Mas também o estupor de quem descobre que, ao passo que se retira da freqüentação com os outros, - coirmãos, amigos, freqüentadores do mosteiro – sente crescer em si uma solidariedade cósmica, um encarregar-se das esperanças e dos sofrimentos da própria geração. Será também, num parêntesis de lacerante paixão, o estupor do celibatário maduro que conhece e intercambia as atenções de uma jovem enfermeira. Ou ainda, o estupor satisfeito do escritor pacifista que vê seladas por uma encíclica papal – a Pacem in terris de João XXIII – as teses que os seus superiores lhe haviam proibido publicar, porque “não se confia a um monge tratar de argumentos como a paz no mundo”.
Será também o estupor da última viagem para o Extremo Oriente: sigilo ao diálogo há tempo tecido com o budismo e o taoísmo, alegria do encontro com o Dalai Lama, descoberta do fascínio espiritual da ilha de Ceilão... até aquele último estupor que deixou atônitos a quantos que o conheciam, o amavam, simplesmente, o liam para conhecer e amar quanto lhe estava no coração: um ventilador defeituoso, uma descarga elétrica no silêncio de um bangalô em Bangcoc. Poucos minutos antes havia concluído assim sua conferência numa das primeiras convenções de diálogo inter-religioso: “Agora posso sair de cena!”. Referia-se à pausa dos trabalhos. Na realidade, a cem anos de seu nascimento, podemos dizer que Merton ainda não saiu de cena.
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Thomas Merton, o estupor da comunhão com os outros - Instituto Humanitas Unisinos - IHU