08 Janeiro 2015
"Diante do desafio, a Casa Branca moveu-se primeiro. Os EUA não poderiam dar-se ao luxo de não participar da expansão de processos capitalistas dentro do Estado que fora seu adversário por mais de 50 anos", escreve Bruno Lima Rocha, professor de ciência política, relações internacionais e jornalismo lecionando na ESPM-Sul, Unisinos e Unifin.
Eis o artigo.
A reaproximação progressiva entre Estados Unidos e Cuba foi anunciada na tarde de 4ª, 17 de dezembro, com a solenidade devida. Simultaneamente, o presidente dos EUA Barack Obama e o comandante em chefe (com status de general) Raúl Castro, informaram ao mundo e em especial para a América Latina que as relações entre os dois países passarão por uma distensão progressiva. Vários são os eixos de análise possíveis para discutir o caso. Neste breve texto damos ênfase para a dimensão geopolítica, dentro da projeção dos EUA e suas esferas de influência diretas e indiretas para a América Latina e no Caribe. Também observo, sob um ângulo geoestratégico, a preocupação dos EUA com o aumento da presença de capitais chineses em Cuba e a franca adesão do chefe de Estado cubano a uma linha chinesa pós-Deng Xiao Ping. Reconheço que para a sociedade cubana e a percepção da ilha como espaço de resistência anti-imperialista em nosso continente, o ambiente doméstico dentro da terra de José Martí e a contraparte dos gusanos na interna da direita cubana-estadunidense é mais relevante. Deixo esta análise para outra ocasião, concentrando-me agora no aspecto estratégico para os Estados e não para as forças político-sociais correspondentes.
Washington vê com certa temeridade a projeção da China como parceiro econômico da América Latina e com especial participação no eixo dos países membros do Mercosul e Unasul. Beijing está financiando a construção de uma rota marítima alternativa ao Canal do Panamá – o novo Canal Interoceânico - passando pelo Lago da Nicarágua e onde terá papel importante o novo porto de Mariel, em Cuba. Esta impressionante obra de engenharia – com custos ambientais e para os povos originários da Nicarágua – traz a uma ironia macabra. Ironicamente o país de Sandino tem seu nome em homenagem ao cacique Nicaróguan e tal obra atropela o direito ancestral destes povos! Mas, como se sabe, quando há razão de Estado todos os demais direitos são considerados como danos secundários ou “custos de segunda ordem”. O que preocupa ao Pentágono, além da dimensão das rotas para os navios de classe Post-Panamax (as belonaves com calado superior ao Canal na entrada Atlântica das reclusas de Colón, Panamá) é um fato contundente, impensável no período de Guerra Fria.
Desde a crise dos mísseis que não há a chance real de presença ostensiva de vasos de guerra da armada da Rússia na região. O Kremlin ofereceu sua marinha como força protetiva da nova rota interoceânica promovida pela China. Assim, caso este projeto evolua em sua plenitude, o Comando Sul dos EUA teria em seu costado a uma aliança comercial-estratégica entre China e Rússia, com tratado de cooperação assinado por 50 anos e tendo como entreposto a ilha cubana. Os EUA operam como força protetiva da via entre o Pacífico e o Caribe/Atlântico, garantindo a “segurança” do Canal do Panamá apesar da devolução do território do mesmo e a plenitude das operações ao Estado panamenho a partir de 1997. Logo, a presença chinesa em Cuba como parceira comercial pode implicar numa perda de influência direta maior do que a representada pelo poderio militar do Comando Sul das forças armadas estadunidenses. Para evitar isto, o governo Obama estaria seguindo os passos da própria China que começou a financiar seu crescimento nos anos ’80 ao facilitar a repatriação de capitais chineses ultramarinos evadidos do país após 1949. A administração Obama aposta nos interesses comerciais e mundanos das famílias de origem cubana, não se deixando chantagear pela direita bipartidária que controlava a agenda da reaproximação com Cuba. Diante do desafio, a Casa Branca moveu-se primeiro. Os EUA não poderiam dar-se ao luxo de não participar da expansão de processos capitalistas dentro do Estado que fora seu adversário por mais de 50 anos.
O reatamento das relações diplomáticas e o afrouxamento do bloqueio econômico terão efeitos no curtíssimo prazo. As previsões iniciais são um aumento em torno de 6 milhões de turistas, passando de 3 milhões em média de visitantes na ilha para 9 milhões, sendo a imensa maioria destes estadunidenses. Somente com o acréscimo do turismo, e a consequente presença de redes hoteleiras dos EUA, as receitas advindas desta indústria equivaleriam a 25% do PIB cubano ao ano. O envio de dinheiro de tipo transferência familiar pode aumentar o fluxo de capital de pequena monta (como uma segunda renda para milhares de unidades familiares), reforçando a posição dos cerca de 500 mil micro e pequenos empreendedores hoje atuando em Cuba.
De sua parte, o governo de Raúl Castro ganha novas condições de barganha diante dos parceiros poderosos – como China e por tabela, a Rússia – além de se fortalecer com os aliados secundários, como o Brasil (investidor no porto de Mariel já supracitado). Do lado cubano, é urgente sobreviver, aumentando a condição de manobra diante das urgências nas parcerias comerciais e de troca de produtos fundamentais é uma imposição do Estado cubano. A Venezuela, cujas trocas e aportes com Cuba representam cerca de 18% do PIB da Ilha, vê-se hoje diante de uma encruzilhada. No cenário internacional, o Palácio Miraflores e a PDVSA estão contra a parede. Ao ancorar sua receita nas exportações de petróleo, os ganhos reduzem-se constantemente, em função da queda do preço desta commodity manipulado pela produção da Arábia Saudita, com incentivo dos EUA, visando derrubar os ganhos da Yukos e Gazprom russas. Internamente a Venezuela também vive um momento de instabilidade política que pode resultar na possibilidade de uma derrubada do governo Maduro (mesmo eleito) e um bloqueio ao bloco político chavista.
A vontade do Departamento de Estado de aumentar o aporte de capitais cubano-americanos e o tempo de navegação na internet por cidadãos cubanos também é uma operação de “corações e mentes”. Com a proximidade e os laços históricos de amor e ódio junto aos EUA, os jovens dentre os 10 milhões de cubanos, com o enfraquecimento ideológico – advindo também da ausência de democracia interna e possibilidade real de organização social não-estatista – podem ser absorvidos ideologicamente pelo universo do consumo (diante da escassez) e da tecnologia barata. A administração Obama vê o bloqueio econômico como forma ineficaz para derrubar o castrismo (sendo o regime hoje um adversário de segunda monta), terminando por gerar maior coesão ao Estado na população da ilha. Mais expostos ao modo de vida dos EUA, os cubanos poderiam vir a aderir ideologicamente ao mundo do consumo suntuoso e do individualismo identificando-se assim com a superpotência. Assim, reforçam a presença dos Estados Unidos em seu mare nostrum (o sistema Caribe/Antilhas), prevenindo-se da projeção estratégica comercial chinesa com a Rússia como provável aliado de segunda monta, mas com capacidade militar.
Infelizmente, esta etapa herdeira da Guerra Fria é superada sem uma alternativa ideológica e estratégica a contento para a América Latina e o Caribe.
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EUA, Cuba e a projeção geoestratégica - Instituto Humanitas Unisinos - IHU