14 Julho 2015
"No final, o discurso é um lembrete de que o Papa Francisco é, cada vez mais, um agente político neste jogo multinível de xadrez. O seu poder e a sua influência detêm particular importância nos países da América Latina há séculos. Este jogo de empurra-empurra de Evo Morales apenas mostra que o Papa Francisco é, realmente, um ator livre neste ambient", comenta Elizabeth Dias, em artigo publicado pela revista Time, 10-07-2015. A tradução de Isaque Gomes Correa.
O discurso do Papa Francisco na Bolívia nessa quinta-feira (9) provavelmente vai ser lembrado como um dos momentos mais significativos da sua viagem de julho à América Latina. Em um discurso poético, de 55 minutos, o Papa Francisco pediu por justiça econômica em uma de suas falas mais duras.
“Vós sois poetas sociais: criadores de trabalho, construtores de casas, produtores de alimentos, sobretudo para os descartados pelo mercado global”, disse ele a uma multidão de trabalhadores bolivianos indígenas, agricultores e ativistas sociais. “Vós, os mais humildes, os explorados, os pobres e excluídos, podeis e fazeis muito. Atrevo-me a dizer que o futuro da humanidade está, em grande medida, nas vossas mãos, na vossa capacidade de vos organizar e promover alternativas criativas na busca diária dos ‘3 T’ (trabalho, teto, terra), e também na vossa participação como protagonistas nos grandes processos de mudança nacionais, regionais e mundiais. Não se acanhem!”
De longe, estas palavras fazem soar como se o Papa Francisco estivesse participando de um comício. Acrescente o fato de que o presidente da Bolívia, Evo Morales, presenteou o Papa com um crucifixo em forma de martelo e foice, e elas parecerão até mesmo socialistas.
Mas o contexto importa. O Papa Francisco não fez esta fala enquanto se dirigia ao Congresso dos Estados Unidos ou mesmo diante das Nações Unidas. Ele falava na Bolívia, o país mais pobre da América do Sul. Ele também estava de pé em frente de Evo Morales, índio aymara que vestia uma jaqueta com a imagem de Ernesto “Che” Guevara; Morales é o primeiro presidente do país descendente da maioria indígena. E ele estava fazendo este discurso em sua primeira visita a um país que tem tido um relacionamento conturbado com a Igreja Católica nos últimos tempos.
Com o governo Morales, as relações com as autoridades eclesiásticas têm sido tensas. Quase 90% dos bolivianos foram criados como católicos, de acordo com o Centro de Pesquisas Pew, e ainda assim o governo de Morales procurou limitar o poder da Igreja. Bíblias e cruzes foram retiradas do palácio presidencial quando ele assumiu o poder em 2006, e uma nova Constituição iria declarar o país como sendo um Estado secular. Ao mesmo tempo, 60% dos protestantes/evangélicos na Bolívia, hoje, dizem que nasceram em lares católicos, também de acordo com a Pew, destacando as preocupações católicas com o êxodo evangélico da fé na região.
O pedido de desculpas feito por Francisco pela opressão da Igreja aos povos indígenas no período colonial tem um significado especial neste contexto político. Francisco saiu do script em seu pedido de desculpas, deixando muito claro o seu esforço no sentido de uma reconciliação.
“Também quero que recordemos os milhares de sacerdotes, bispos, que se opuseram fortemente à lógica da espada, com a força da cruz”, disse ele. “Houve pecado, houve pecado e abundante, e por isto pedimos perdão, e peço perdão, porém também ali, onde teve pecado, onde abundou o pecado, superabundou a graça através destes homens que defenderam a justiça dos povos originários”.
De sua parte, Evo Morales ficou feliz em aproveitar a ocasião da visita do papa para marcar alguns pontos políticos de sua agenda. Na quinta-feira, ele aproveitou a visita para dizer que vem buscando uma reunião com o presidente Obama, a quem chamou de imperialista na ONU em novembro. As relações diplomáticas da Bolívia com os EUA se romperam em 2008, quando o país expulsou tanto o embaixador dos Estados Unidos quanto um representante do Departamento de Administração de Repressão às Drogas dos EUA. A Bolívia é um dos maiores produtores mundiais de cocaína. O papel do papa em intermediar a volta das relações diplomáticas entre os EUA e Cuba estava claramente presente em seu discurso, mas ele habilidosamente deu créditos somente ao papa e a Cuba. “Não foi nenhuma concessão do governo Obama, mas o triunfo do povo cubano e do mundo como um todo”, disse ele. Para Morales, então, o Papa Francisco poderia ser um elo precioso entre a Bolívia e os Estados Unidos.
No final, o discurso é um lembrete de que o Papa Francisco é, cada vez mais, um agente político neste jogo multinível de xadrez. O seu poder e a sua influência detêm particular importância nos países da América Latina há séculos. Este jogo de empurra-empurra de Evo Morales apenas mostra que o Papa Francisco é, realmente, um ator livre neste ambiente.
Esse resultado também carrega um peso especial na medida em que o mundo espera para ver como o Papa Francisco vai se sair com a sua primeira viagem aos EUA, a superpotência capitalista do mundo, especialmente tendo em vista o seu discurso a uma sessão conjunta do Congresso. Aí, os conservadores continuam a levantar dúvidas sobre até que ponto vão, de fato, os laços do papa com o socialismo, e se eles aprovam a sua crítica do capitalismo.
O ex-embaixador Otto Reich, subsecretário de Estado para Assuntos do Hemisfério Ocidental do presidente George W. Bush, diz que a pauta econômica e política do Papa Francisco, em sua viagem à América Latina, foi longe demais. “Este papa cresceu em um país de terceiro mundo que, francamente, é um exemplo do que acontece quando não se tem o capitalismo e a democracia”, diz Reich. “Fiquei bastante otimista quando ele foi nomeado e tenho estado bastante decepcionado com os aspectos políticos e econômicos de seu papado. (...) Ele é uma vítima da educação do terceiro mundo, e a Argentina é um exemplo particularmente triste”.
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O que significa a guinada à esquerda na Bolívia do Papa Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU