12 Fevereiro 2015
“Estou comovido, sem palavras. Não me habituarei mais a puxar um lençol sobre a face dessas pessoas. Acima de tudo quando, como dessa vez, foi possível salvá-los. Se apenas o salvamento tivesse sido adequado. Se os tivéssemos trazidos a bordo de uma embarcação militar, cobertos, aquecidos, revigorados. Pelo contrário, horas e horas de água e gelo sobre as embarcações abertas, molhados por ondas enormes e açoitados pelo vento gelado e pela tempestade. Mortos pelo frio”. Corre entre um leito e outro do poli ambulatório, muito bem equipado, de Lampedusa Pietro Bartolo: diretor sanitário e médico que ainda tem nos olhos o horror daquelas centenas de corpos do naufrágio de 3 e 10 de outubro.
A reportagem é de Alessandra Ziniti, publicada por La Repubblica, 10/02/2015. A tradução é de Ivan Pedro Lazzarotto.
Envolvido em uma coberta térmica de alumínio um jovem, os olhos fixos no teto, é o único que – em poucas palavras sussurradas em um quase inglês – consegue explicar o que aconteceu. “Waves... ten meter.. cold, very very cold... my friends... dead” (Ondas... dez metros... frio, muito muito frio.. meus amigos... mortos). Diz se chamar Hope, como a esperança com a qual, junto a outros 105 companheiros daquela viagem desesperada, havia entrado na viagem da Líbia mesmo que as condições do tempo não fossem seguras.
“Éramos todos homens, a bordo de uma grande embarcação de madeira: não existiam mulheres ou crianças... por sorte. O tempo não estava bom mas não pensávamos de acabar em uma tempestade. Ao invés, depois de sete, oito horas de navegação o barco parou. Existiam ondas muito altas, cada vez mais altas, nove-dez metros, um muro d’água, subíamos e descíamos, subíamos e descíamos. Paralisados pelo medo. Estava certo de que todos morreríamos, jogados na água. Alguns tinham os coletes salva-vidas, tinham pago mais, outros não, mas ficávamos juntos para não cair. Estávamos todos molhados, o frio era terrível, o vento muito forte, chovia granizo, as mãos não tinham mais sensibilidade. Havíamos feito uma ligação por satélite e dado o alarme, mas não chegava ninguém. Depois vimos aquele navio e pensamos que seríamos salvos. Talvez estivéssemos todos vivos”.
Mas o salvamento ainda estava muito longe. O navio de que Hope fala era o mercante Bourbon/Argos. Ainda estava claro no domingo a tarde quando o comando das capitanias de portos de Roma, à quem chegou o pedido de socorro, repassou as coordenadas indicadas pelos migrantes, mais de 100 milhas ao sul de Lampedusa (em águas líbias), dois mercantes que cruzavam a região. “O mar estava com força 8, ondas com nove metros de altura, como um edifício de três andares. As condições do mar prejudicavam”, fala o porta-voz da Capitania dos Portos Filippo Marini. Dos dois mercantes, além do Bourbon/Argos, o Saint Rock nem tentou salvar os migrantes: impossível trazê-los a bordo devido ao enorme risco de fazer virar a embarcação à deriva. Por mais de seis horas, os 105 homens se dão as mãos e bradam. Não entendo porque ninguém os levou a bordo. São mais seis horas de água turbulenta, gelo, pedras de gelo, rajadas de vento com mais de 300km/h. “Alguns de nós não se mexiam mais, talvez já estivessem mortos, talvez apenas desacordados”.
Eram 22:00 de domingo quando depois de uma viagem de seis horas naquele mar em tempestade a primeira embarcação da guarda costeira que havia partido de Lampedusa alcançava o barco à deriva. Mas ainda não tinha acabado. “Nos deram cobertores térmicos e só. As ondas altíssimas nos molhava, água por cima e por baixo, tinha gelo por toda parte, não conseguia mais me mover. Não tinha nada de quente, não tinha um médico, não tinha abrigo. O jovem ao meu lado estava rígido e não se mexia mais. Pensei: ‘Agora eu morro também’”.
Foi necessário que as embarcações com os refugiados chegassem a Lampedusa, após mais seis horas de viagem, mais seis horas ao relento, ao gelo, amontoados na proa da embarcação submetidos a todas ondas invadidas pelo mar. Mas a viagem durou muito mais. Até os barcos da guarda costeira apresentaram problemas. “Isso não é incidente, é homicídio. Fazer as pessoas partirem com esse mar significa mata-las – diz o almirante Giovanni Pettorino – e para os nossos operários um socorro em condições precárias significa arriscar a vida”. Quando, às cinco horas da tarde, depois de 19 horas, a primeira embarcação encosta no molhe Favaloro, começa a trágica contagem. Dos 105 que foram “salvos” às 22:00 da noite anterior, 29 já estavam mortos. Pelo frio. Congelados até a morte. E a raiva de Pietro Bartolo, o médico de Lampedusa explode: “Essa tragédia poderia ter sido evitada. Assim é impossível salvar vidas humanas”.
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“Entre as ondas gigantes, esperamos por horas até que viessem nos salvar” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU